Uma questão de social-democracia
Gostava de discorrer um pouco sobre um ponto que considero que esta campanha eleitoral teve a virtude, mesmo que por mero acaso ou imponderável acidente, de iluminar. Refiro-me à questão ideológica dos partidos que compõem o espectro político nacional.
A questão veio ao de cima quando a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, afirmou em entrevista de pré-campanha, que o programa do seu partido, tido pela maioria inculta do povo português como um partido de extrema-esquerda, era, afinal, social-democrata.
Quem acompanha a minha escrita sabe bem que nada disto me surpreende, nem um pouco, indo exatamente de encontro ao que penso. As propostas do Bloco, independentemente da multiplicidade de tendências que possam coabitar no seu seio, são de cariz marcadamente social-democrata, de natureza meramente redistributiva, keynesianas até, se preferirmos. Dito de outro modo, trata-se de um partido do sistema que procura corrigir o sistema e não transformá-lo. E o sistema é o sistema capitalista burguês.
Durante esta semana, soubemos também do apoio de um reputado economista português, Ricardo Paes Mamede, à CDU. Nas redes sociais, o economista elencou as cinco razões porque votaria CDU, não obstante as diferenças ideológicas que mantinha com a coligação que integra PCP e Verdes. Ricardo Paes Mamede é daquelas escassas personalidades que vale a pena ouvir e ler no panorama nacional. Pessoa culta, ilustrada e estudiosa, fala e escreve de forma fundamentada e faz uso de uma argumentação lógica que é muito rara nos dias de hoje. A respeito do título deste texto, vem-me à memória uma monumental lição que Ricardo Paes Mamede deu, há umas semanas, ao triste e ínscio João Miguel Tavares acerca do conceito de social-democracia do qual este último fazia boçal uso.
Confesso que, quando tomei conhecimento do apoio de Ricardo Paes Mamede à CDU, desencadeou-se dentro de mim um sentimento de profunda alegria. Em primeiro lugar, pela personalidade em causa. Em segundo lugar, porque a ideologia comunista precisa exatamente de gente com qualidade intelectual, e particularmente da área económica, que a defenda não na base do chavão e das palavras de ordem, mas na base da argumentação racional.
Com o passar do tempo, todavia, a minha alegria esmoreceu-se, pelo menos em parte. Ricardo Paes Mamede não é um economista marxista, é social-democrata assumido e alguma coisa tem que estar seriamente errada quando sociais-democratas apoiam comunistas. É que os sociais-democratas têm em vista a correção dos defeitos do sistema capitalista através de apoios, subsídios e intervenções estatais. Os comunistas lutam pela transformação do sistema, pelo derrube do capitalismo, pela criação de uma sociedade nova e diferente, com diferentes alicerces filosóficos. Os sociais-democratas atuam a jusante; os comunistas agem a montante. A interseção é vazia, não há ponto de encontro, não há compromisso possível. A menos que algo esteja muito distorcido.
Então, dei por mim a refletir que o problema será do nosso panorama político que está tão empurrado para a direita que os sociais-democratas foram deixando cair a máscara de tempos ideologicamente mais quentes e assumiram-se como descarados liberais, enquanto que os partidos de esquerda foram circunscrevendo a sua veia revolucionária aos seus inflamados discursos, deixando para as suas práticas apenas umas envergonhadas medidas sociais-democratas.
É por isso que eu considero um pouco triste e bastante surreal ver os mais destacados líderes do PCP, o Partido Comunista Português, vangloriarem-se nas redes sociais com o apoio de Ricardo Paes Mamede. Eles não entendem, não conseguem ver que o apoio de um social-democrata ao seu partido acaba por ser um atestado passado a uma doença ideológica grave que afeta o seu país e o seu partido. Para um comunista, o apoio de Ricardo Paes Mamede não deve ser motivo de particular orgulho, mais do que aquele que advém de um qualquer anónimo.
Por ventura, a culpa será minha. Será erro meu acreditar ainda que o PCP mantém intacta a sua espinha dorsal revolucionária e transformadora da sociedade. Mas essa é, afinal, a única razão pela qual voto e votarei CDU nas próximas eleições. Ao contrário de Ricardo Paes Mamede, não preciso de cinco razões para votar CDU, não preciso de fazer um rol, não preciso de as elencar, apenas preciso de uma razão: acreditar na transformação da sociedade, numa sociedade de paz, fraternidade e cultura, livre do capitalismo ou qualquer uma das suas versões de exploração dos homens.
A minha razão é acreditar que a CDU representa este meu sonho, mesmo que na CDU o sonho possa servir apenas para animar festas e discursos e seja convenientemente esquecido no pragmatismo inexorável e desprezível das opções que se tomam sobre a inércia dos dias.