Uma outra educação
Se amanhã acontecer uma catástrofe à escala global, uma espécie de Apocalipse bíblico, e sobrarem apenas umas parcas dezenas de exemplares da nossa espécie, o que seríamos capazes de recuperar da nossa civilização? O que seríamos capazes de reconstruir?
Quando pensei pela primeira vez nesta questão fiquei um pouco assustado. A resposta é: muitíssimo pouco. A perspetiva seria a de nos reduzirmos a pouco mais que homens das cavernas. É assustador, mas é a verdade.
Na realidade, o cidadão médio vive o seu dia-a-dia envolto numa estrutura social e tecnológica que o transcende de tal forma que, nem que se dedicasse ao estudo até ao final da sua vida, conseguiria compreender minimamente o seu modo de funcionamento. Mesmo o cidadão letrado acima da média não mais é que um especialista numa determinada área, num determinado segmento de uma área, pelo que sozinho não seria capaz de reproduzir sequer o processo em que se insere laboralmente.
A via de especialização dos saberes pode ser considerada como natural com o progresso da humanidade, pois decorre da impossibilidade potencial de um indivíduo conseguir dominar todo o conhecimento acumulado ao longo dos séculos. Todavia, há mais do que isto.
Há toda uma filosofia inspiradora no ocidente que tem conduzido à especialização do indivíduo não por ser uma inevitabilidade mas por ser uma conveniência. Podemos recuperar os passos dessa tendência desde os primórdios da revolução industrial, ainda antes da “linha de montagem”.
Com efeito, é conveniente que os peões da sociedade, os que constituem a força do trabalho, não saibam tudo e não saibam de tudo, porque, se soubessem, poderiam emitir opinião e poderiam influenciar o processo. Se fossem dotados de alguma cultura geral, poderiam emitir juízos de valor sobre o poder que os governa e convém que o proletariado não tenha poder. Daí a especialização. Daí o privilegiar de uma formação específica relativamente a uma formação geral, abrangente. A ideia é: especializar para limitar.
Entretanto, é mais fácil usar um automóvel, um eletrodoméstico, um telemóvel, e não fazer ideia de como funciona. Sentimo-nos importantes simplesmente pelo ato de usar e por possuir. Se avaria, compra-se outro. Nem vale a pena tentar arranjar. As sociedades humanas abraçaram o projeto de serem conjuntos de ignorantes. Ignorantes com uma formação, ignorantes diferentes dos ignorantes do passado, é certo, mas, não obstante, ignorantes, totalmente incapazes de sobreviverem sozinhos, sem que alguém lhes diga o que fazer, como fazer.
Não acreditam no que vos escrevo? Experimentem fazer a um recém licenciado alguma pergunta sobre uma área diferente da sua. Perguntem-lhe alguma coisa básica sobre animais ou plantas, ou sobre astronomia. Perguntem-lhe sobre a história do país, sobre o 25 de abril de 74. Perguntem-lhe sobre a história da localidade de onde vêm. Vão ficar espantados com as respostas. Ainda noutro dia, um jovem licenciado em Economia com quem falei estava convencidíssimo que a revolução dos cravos tinha sido o fim da monarquia em Portugal.
Por ventura, o mais modesto cidadão do século XIX saberia responder a estas perguntas. Hoje, todavia, os que mais estudos têm não o conseguem fazer.
Resulta, portanto, claro que uma outra educação é a única alternativa para os povos do mundo serem livres, isto é, para deterem os seus destinos nas suas mãos e não passarem pelas suas vidas guiados como animais de carga. Sim, é verdade: não basta viver no ocidente para se ser livre. Não basta haver eleições para se ser livre.