Uma ânsia
Ontem vi um velhote trémulo, muito trémulo, que cedia com as mudanças de direção do vento. O velhote encontrava-se agarrado, débil mas resolutamente, a uma marreta comprida, mais comprida e rija do que ele próprio. Esteve uma hora ou mais a arremessá-la custosamente, a intervalos regulares, contra uma grande pedra que emergia no seu quintal em perfil com uma horta de couves verdes.
Ali esteve o velhote durante uma hora ou mais. A mim pareceu-me a tarde inteira. Fechei as cortinas da janela para afastar aquela visão do pensamento, mas continuava a ouvir as pancadas. Ouvia as pancadas regulares e elas ouviram-me a mim, também, já que vieram dormir comigo esta noite. Sonhei com o velhote. Arfava com dificuldade a cada pancada. No final, a grande pedra quase não se modificou. Terá adquirido, no processo, faces mais arredondadas. Parecia um elipsoide imperfeito ou, melhor, uma espécie de ovo de Colombo feito de pedra. De cada vez, em cada repetição, a marreta erguia-se um pouco mais devagar e esgares de dor desenhavam-se, um pouco mais marcados, na face do velhote.
Porquê?
Porque é que o velhote fazia aquilo? Porque escolhia gastar algumas das últimas batidas do seu fraco coração com aquelas inúteis marretadas? Uma insatisfação permanente? Um sentimento, uma ânsia, uma necessidade de utilidade? Ou para provar, a si mesmo e aos outros que, como eu, o observavam, a posse e o domínio físico sobre a sua propriedade?
A pedra por lá continua na margem daquele quintal de couves verdes. Está ali, repousa agora, como sempre esteve, como espantalho de um feno de pedra a guardar o quintal.