Testemunho
“Eu e a minha companheira somos professores. Todos os dias levantamo-nos às seis horas da manhã para começarmos a trabalhar às oito e um quarto. E todos os dias, antes das oito e um quarto, temos que colocar a impressão digital naquele aparelho cinzento-escuro, quase preto, com um díodo que emite uma luz vermelha como um laser. É o “picar o ponto” dos tempos modernos. Ela vai para a escola dela e eu vou para a minha. Só nos voltamos a ver depois das oito da noite.
Trabalhamos a recibos-verdes, ao minuto. Não é à hora. É ao minuto. Eles contam os minutos de aulas ou formação, porque aquilo que eu dou agora chama-se de formação. E quando vou ao quarto de banho não é formação nem direito. Não recebo quando vou ao quarto de banho, nem quando me desloco de uma escola para a outra. Sim, porque também não dou aulas apenas numa escola.
O que ganhamos não é mau. Não é mau quando comparamos com o salário mínimo. Mas depois há que colocar algum de lado para a segurança social, todos os meses. Ah: e também para o IRS. É melhor colocar algum de lado para o IRS se não para o ano a pancada será forte demais. Este ano que passou tive que pedir dinheiro aos meus pais. Para o ano quero ver se não peço. Mas o mês ainda não acabou e eu já ando de bolsos vazios... O que a gente ganha é muito mau. O que a gente ganha é uma merda.
Mas não é por isto que escrevo. Escrevo pelo que referi no início. Todos os dias eu e a minha companheira levantamo-nos às seis e meia da manhã, despedimo-nos às oito da manhã e só nos voltamos a ver depois das oito da noite. Tentamos ir para a cama às onze, tentamos dormir. Durante o fim-de-semana trabalhamos um pouco mais, pelo menos uma manhã ou uma tarde, para ganhar uns euros mais. No restante vamos fazer as compras da semana e tentamos limpar a casa que mal nos vê, que mal vemos. Tenho saudades de a abraçar e de lhe dizer que a amo. Digo-o todos os dias, mas não o digo com cabeça. Digo-o de cor porque ando cansado e ela ouve-me e sorri de cor porque também ela anda cansada. Tenho saudades de sentir os beijos que lhe dou.
Dá-me vontade de rir quando se fala em falta de natalidade em Portugal. Eu e a minha companheira trabalhamos os dois das oito da manhã até às oito da noite e não somos ricos o suficiente para o luxo de termos um filho que seja. Mas mais do que isso, mais do que o dinheiro que custa ter um filho, não temos tempo. Não temos tempo para nos amarmos, não temos energia. E se assim é, como poderemos ter tempo para amar um filho? Como poderemos ter tempo para o criar, para o educar?
Quando se fala em falta de natalidade em Portugal dá-me vontade de chorar. Porque nós não somos um caso isolado. Não somos a exceção à regra. Nós somos a regra neste país. E todos nós, a minha geração, a nossa geração, aceitamos estas políticas, esta distribuição de riqueza e de tempo, porque o tempo também é riqueza.
Até quando?
Quando esse dia chegar espero não me ter esquecido do sentido das palavras e voltar a sentir “meu amor” cada vez que lhe digo “meu amor”. Espero poder envolvê-la no meu abraço e senti-la comigo e não noutro lado qualquer. Espero que esse dia chegue a tempo de termos um filho como um homem e uma mulher devem ter um filho e não como dois animais que procriam apenas porque lhes dá a vontade. Espero que chegue a tempo esse dia, antes de ser velho demais e ela velha demais, antes de sermos cadáveres. Se não chegar a tempo, ficará para a próxima vida, ficará para a eternidade o beijo e o abraço que deixei de lhe dar, o sorriso e o olhar que deixei de receber. Ficará para sempre o “meu amor” que tão poucas vezes lhe disse ao ouvido.”