Sinto-me magoado. Falo de verdade: sinto-me magoado. Existe uma dor dentro de mim, que vive dentro de mim, dentro do meu corpo, que sinto como uma presença fria entre os pulmões, o coração e o estômago. Desliza por ali, fria, por vezes gelada, e eu sei que é tristeza em forma de desespero.
É um sentimento que, todavia, não é genuinamente meu, vem de fora, é-me impingido, injetado, de todos os lados, por toda a parte, aonde quer que eu vá, por todos com quem troco duas palavras. Explicar-me-ei melhor: esta tristeza é reação ao mundano que me agride.
Por muito que os acontecimentos se repitam, por muito que essa repetição seja recorrente e que essa recorrência seja mais e mais acelerada, parece que o mundo persiste num conjunto de reações acéfalas, incapaz delas evoluir. Parece que não há aprendizagem qualquer sobre a semelhança dos acontecimentos, sobre as suas causas, e persiste-se no abraço da ignorância plena, da cultura do medo, do estímulo ao racismo, à xenofobia, à intolerância. Para qualquer lado que nos viremos é isto que podemos observar, é disto que inspiramos, doses massivas disto, ferindo os pulmões como lâminas finas e afiadas.
É natural que assim seja, porque não querendo tratar das razões dos problemas, restam apenas o racismo, a xenofobia e a intolerância como armas derradeiras de conservação do poder. É apenas disso que se trata, bem entendido: perpetuar o mais possível os mecanismos de exploração dos povos, de escravização da mão de obra, continuando para isso a destruir socialmente sociedades inteiras, incitando e alimentando conflitos e guerras sempre que tal seja necessário.
O que não deveria ser natural perante a repetição de factos e de acontecimentos, não obstante, era esta aceitação popular generalizada, este acolher tenebroso da dialética do medo. Se pensarmos bem, todavia, também isto é compreensível. O povo está cada vez mais identificado com a cultura da posse, inspirado na avareza mais pura, educado a preceito e formado com honras na teologia do capital. A palavra solidariedade foi apagada do dicionário dos povos. E quão importante é esta palavra, não apenas para o remedeio dos problemas, mas sobretudo para a sua prevenção!
Não há nada de mais irónico do que constatar, para além de qualquer dúvida, que em nenhum momento da História como hoje o povo foi tão eficazmente manietado agindo em perfeito acordo com os mais íntimos interesses do poder vigente e contra os seus próprios interesses. Nem na idade média, a das trevas, nem nos negros tempos da inquisição ou da escravatura — o poder descobriu a forma perfeita e, sublinhe-se, inatacável de escravizar os povos do mundo: dar-lhes a liberdade de escolha sob o véu ilusório da igualdade.