O estado da academia
Tenho acompanhado com interesse e curiosidade a contenda que tem oposto Raquel Varela, figura pública, interveniente no espaço de opinião e investigadora destacada na área de História, ao jornal Público. É surpreendente constatar que, aquilo que aparentemente começou como um lamentável ataque pessoal e difamatório de um meio de comunicação social a uma personalidade que ousou criticá-lo, se tornou num caso ético-moral no que diz respeito à investigação científica e ao estado geral da academia no país e, até, no mundo.
Para se defender do ataque que o seu impressionante currículo foi alvo, a investigadora e professora universitária limitou-se a apresentá-lo e a descrevê-lo no contexto das boas práticas às quais toda a academia adere. A defesa cabal, todavia, teve o condão de destapar a face de como é feita investigação nos dias de hoje, como se sobe na carreira universitária, como se constroem currículos.
Em cinco anos, a investigadora regozija-se nas suas redes sociais com o facto de ter publicado 41 artigos, 23 livros e supervisionado 25 estudantes de pós-graduação, numa pequena parcela de um currículo verdadeiramente extraordinário, pelo menos do ponto de vista quantitativo. Mas fiquemo-nos por estes cinco singelos anos que terão alegadamente servido de base para o concurso que esteve na origem do putativo processo de difamação de que está a ser alvo: são, em média, mais de 8 artigos por ano, mais de 4 livros por ano e exatamente 5 orientações por ano! A defesa cabal de Raquel Varela esbarra numa inexorável parede chamada de realidade: pensar que uma pessoa pode produzir este tipo de trabalho para além da sua atividade regular enquanto docente universitária, já para não falar das inúmeras e regulares participações em espaço público, é algo de absolutamente surreal. Apetece dizer que, em cinco anos, seria difícil sequer ler completamente a obra produzida, quanto mais pesquisar, estudar, escrever e publicar — note-se, a este respeito, que a burocracia envolvida na publicação de um artigo numa revista científica com arbitragem é coisa para demorar, por si só, anos.
Este texto de opinião, sublinho-o, não tem em Raquel Varela nenhum alvo: apenas utiliza o seu caso como pretexto para refletir sobre o modo como funciona a investigação científica em Portugal e no mundo. Raquel Varela joga o jogo conforme as regras do mesmo. Acredito que não tenha feito rigorosamente nada de errado. Nada a distingue da generalidade dos investigadores. É o sistema de publicação colaborativa massiva, no qual participam dezenas de investigadores que depois se perfilam como coautores dos trabalhos, mesmo que a sua colaboração seja eventualmente residual. É a desmultiplicação de uma mesma ideia pelo número maior possível de artigos, nos mais variados formatos. O que conta são os números e os números finais justificam os meios.
A academia está convertida nesta selva de publicações, nesta escrita à pressão estilo copy-paste, nesta exigência por resultados numéricos para se poder apresentar em powerpoints bonitos para justificar dotações estatais, bolsas de investigação e prestígio académico. O conteúdo da investigação, a qualidade da mesma resultam desfocados no meio da profusão de publicações. Quem é que realmente se interessa pelo sumo da coisa? Quem é que se dá ao trabalho de ler o que está lá escrito? Ninguém: o que interessa é o número de publicações, o nome e o prestígio das revistas.
Tudo isto funciona muito bem se ninguém começar a mexer no sistema. Se se começar a mexer, então tudo é passível de ser questionado. É tudo legal. Se calhar, até pode ser considerado ético, tão transformadas que estão as instituições de ensino superior. De moral é que tem muito pouco.
Por toda a parte, o polvo capitalista estende os seus tentáculos, infetando, como um vírus, cada divisão da ação humana. Mesmo as mais nobres caem corrompidas, trocam a qualidade pela quantidade, sucumbem a números sem significado e sem alma, sujeitam-se aos interesses de quem pode e de quem manda. O estado pandémico que atravessamos tem-se constituído como um boa plataforma para se entender o quão baixo chegou a credibilidade da academia, perfeitamente perdida em estudos contraditórios e em encruzilhadas de interesses.
Há certos domínios que deveriam estar imunes ao poder e à tentação do capital. O problema é que o capitalismo é coisa que não se pode circunscrever, que cresce e que se desenvolve sem controlo e que, quando damos conta, já tudo tomou sob a sua influência. Isto é algo que a esquerda nova, social democrata, a das agências de supervisão e de controlo, a dos escalões e das taxas devia prestar mais atenção. É impossível controlar o monstro.