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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Costa a fazer currículo

Ai o Costa vai a Kiev assinar um protocolo qualquer não sei das quantas? Ai é? Faz muito bem, sim senhor. Tem que continuar a preparar a sua vidinha futura, fazer currículo para se poder candidatar a algum cargo importante nesta união europeia decadente, ainda antes do seu mandato de primeiro-ministro acabar. Preocupação com o nosso povo, zero. O que nos vale é não contarmos para nenhuma espécie de campeonato na geopolítica internacional.

É o que nos vale. Ainda assim, devíamos ter mais cuidado. Mandamos muitas bocas, mas não somos exatamente como o papagaio... não temos asas! É sempre engraçado armarmo-nos em valentes às custas dos outros. Costa manda bocas e o povo é que vai pagar por isso. Já estamos a pagar por isso. E a fatura tem tendência a aumentar.

Uma ideia, assim, de repente: e promover a paz? E opôr-se ao alimentar belicista deste conflito?

publicado às 10:55

Refletindo sobre a “bazuca”

Não devemos deixar de assinalar o modo como está a ser colocada a questão sobre os fundos provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência, ou mais geralmente, o modo como todas estas questões relativas à nossa posição no seio da União Europeia são normalmente colocadas. A denominação “bazuca” é, em si mesma, muito esclarecedora. Sobre os fundos, com efeito, recaem as responsabilidades inteiras do nosso futuro coletivo e a sua “aplicação correta” reveste-se, nesse sentido, de uma enorme carga dramática, como se fosse o nosso derradeiro recurso a um estádio de desenvolvimento superior, a par das grandes economias do norte da Europa. Repete-se à saciedade o argumento de que, se não soubermos usar os fundos corretamente, hipotecaremos o nosso futuro.

Se o texto que escrevo agora for uma gota no oceano no universo da opinião publicada, pois que seja. Por muito que resulte grotesco ou surreal o que se seguirá, ainda assim é imperioso que o escreva. Escrevê-lo-ei, pois:

 

Não é uma questão de dinheiro, senhores.

 

Escrito está. É suficiente. Acrescentarei, todavia, a sentença seguinte, apenas para abrir a porta a uma outra profundidade de análise. Aqui vai:

 

O dinheiro que nos dão é pagamento fracionado pela liberdade (alma) que lhes vendemos.

 

Agora já chega. Fui além do que me havia proposto inicialmente. Deixei na mesa matéria suficiente para uma semana de reflexão.

É pena que não haja um debate sobre estas questões de natureza fundamental, primeira, e ficamo-nos sempre pelo debate dos tostões, das aplicações e das pequenas obras, sempre de reforma em reforma de um sistema para que o mesmo permaneça cristalizado no tempo. O resultado de tudo isto, todas as responsabilidades do fracasso inevitável, recairá, todavia, sobre as costas de um impotente sistema político servil as quais, um dia, cederão ao peso do populismo crescente de inspiração autoritária. O fascismo é apenas uma outra forma de capitalismo, não será assim? Estaremos cá para ver. Nós, os nossos filhos e os nossos netos.

publicado às 18:34

Uma cultura enraizada

Começam a vir à tona as contrapartidas gizadas pela União Europeia para nos conceder as generosas verbas previstas para os próximos anos e que compõem a chamada “bazuca”.

 

São de uma estirpe muito particular os inventores destes termos, destes epítetos tão graciosos. Podiam ter chamado de “avença”, “renda” ou, até, “esmola”, mas decidiram-se por “bazuca”, como uma arma potente para destruir qualquer coisa, qualquer coisa de muito mau, no contexto de uma guerra.

 

Como dizia no princípio, começam a vir à tona as contrapartidas para “tanto” dinheiro. Fala-se, por exemplo, num acordo para um plano reformista ao nível do que foi implementado no tempo da troika e no contexto de um plano de continuada liberalização da sociedade. Raquel Varela referia, n'O Último Apaga a Luz, que está prevista, por exemplo, a liberalização das profissões liberais tais como, por exemplo, os profissionais da área da medicina, cuja atividade deixaria de ser regulada pela respetiva Ordem. Já sabemos que, em circunstâncias análogas, só conheceremos os detalhes quando os mesmos estiverem prestes a bater-nos, de modo inevitável, na cara. Para já, ainda é cedo. Quem é que, todavia, precisa deles para ter a certeza do que se está cozinhar?

 

Quando se fala na “bazuca” ou se discutem os dinheiros vindos de Bruxelas notamos uma cultura instalada, solidamente sedimentada ao longo dos tempos, que é de uma falta de patriotismo, de um provincianismo e, fundamentalmente, de uma ignorância aterradores. O pensamento dominante é de que este dinheiro “nos é dado” e, adicionalmente, de que “ainda bem que nos impõem regras, que é para não ser a corrupção do costume”.

 

O que se pode dizer? Que estudem? Adiantará de alguma coisa? Que a nossa posição de submissão económica no contexto da União Europeia nos faz, de facto, credores e não devedores face aos proveitos das grandes economias europeias? Será que adianta dizer isto? E dizer que não se pode defender a democracia para a Bielorrússia num dia e no outro defender a imposição autoritária e não sufragada de políticas decididas por potências externas sobre o nosso povo? Será que adianta? Lamento, mas hoje não me sinto particularmente otimista. Os ignorantes não se cansam em repetir constantemente os seus discos. Eu já me canso rapidamente. E já aí está a religião do povo, prestes a começar com uma homilia cantada tão alto que faz parecer tudo o resto muito pouco importante.

publicado às 14:45

Sobre forças de bloqueio: um capítulo mais na história do governo minoritário que governava como se tivesse poder absoluto

Há qualquer coisa na história do novo aeroporto de Lisboa que incomoda as gentes. O que é, exatamente, é difícil dizer. Em geral, atrevo-me a excluir, desde logo, as negociatas, os interesses económicos privados diretos e indiretos, a questão da localização ou da obra propriamente dita. Muito menos serão também as questões ambientais que, paradoxalmente, em tantas outras questões, como no encerramento da refinaria da Galp de Matosinhos, parece que assumem uma importância superior às próprias questões que advêm das necessidades mais primárias do ser humano, como sejam o assegurar da própria subsistência e futuro.

 

Claro que há grupos da população, mais ou menos diminutos, que se mobilizam em torno de cada uma das questões acima elencadas, mas não creio que nenhuma destas bandeiras sejam efetivamente defendidas pela população em geral. O que me leva a pensar assim? Intuição, simplesmente, levemente alicerçada num raciocínio lógico muito elementar: se assim não fosse, de certeza que cada uma destas questões não se extinguiria tão depressa quanto fosse alumiada na comunicação social, quais fogos de palha saramaguianos.

 

Acho que é exatamente aqui que reside o tal fator «irritante»: era suposto que, por esta altura, não se falasse mais da questão do novo aeroporto. Era suposto que o fogo que queimou há uns tempos se tivesse tornado em fumo dissolvido e espalhado já pelos ventos. As gentes não suportam polémicas não resolvidas em menos de três dias, recorrentemente dos mortos ressuscitadas.

 

Por que se recupera agora, novamente, a questão do aeroporto? Em tempos de combate à pandemia, o governo encontrou no PSD um aliado para mudar a lei que permitiu às autarquias vetar a construção do novo aeroporto. E parece estar tudo a seu favor. Quem ouve a comunicação social percebe que existe um posicionamento dominante favorável à alteração da lei: fala-se, por exemplo, em inadmissíveis forças de bloqueio ao interesse nacional.

 

Deixemos de lado o oportunismo associado a esta iniciativa legislativa, não por uma questão de somenos, porque não é, mas por ser tão descarado que nem vale a pena que percamos tempo falando do assunto — porque o governo não consegue levar a sua avante, arranja uma forma de mudar a lei.

 

Falemos, pois, da lei que se pretende mudar. Devem ou não as localidades poderem pronunciar-se sobre grandes obras nacionais definidas nos seus territórios e que têm o potencial de alterar a vida das suas populações e as dinâmicas sociais? Parece-me evidente que sim. E como deve ser essa forma de pronunciamento? Naturalmente, ninguém espera, com seriedade, que o parecer das autarquias possa ser de natureza meramente retórica. Bem sei que todos nós achamos muito bem os termos da nossa participação na União Europeia onde, objetivamente, todos têm uma palavra a dizer mas, à exceção da Alemanha, as opiniões dos países valem zero. Mas não é bem isso que se pretende numa democracia, não é mesmo?

 

A lei que temos apresenta-se, portanto, como perfeitamente razoável. As autarquias são forças de bloqueio? Claro que são. E qual é o problema? É preciso dizer muito claramente a quem abusa deste argumento que as democracias mais não são que jogos de forças de bloqueio à governação. É precisamente o conjunto de forças de bloqueio que permite distinguir um regime democrático de um não democrático, digamos, autoritário. As forças de bloqueio traduzem, nada mais nada menos, que as diferentes vontades e legítimos interesses que compõem uma sociedade plural e têm fácil solução: o diálogo e a negociação.

 

A questão é que o governo, neste particular, pretende seguir a mesma surpreendente linha com que tem governado desde o início da anterior legislatura: a linha de um governo que quer impor a sua vontade a tudo e a todos sem ceder no que quer que seja. Também aqui, na questão das autarquias, se verifica esta prática: trata-se de mais um capítulo para a história que contaremos às gerações vindouras daquele governo minoritário que governava como se tivesse poder absoluto.

publicado às 10:40

Petrogal: um quase conto de Natal

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image: static.globalnoticias.pt/jn

 

No início desta semana concretizou-se uma tragédia que pairava no ar, já há muitos anos, como um fumo cinzento de ameaça sobre as cabeças de muitas famílias de trabalhadores na região norte do país. A notícia viria a surpreender a todos precisamente no início da semana do Natal: a refinaria de Matosinhos da Petrogal iria encerrar permanentemente a sua laboração deixando numa situação de incerteza, de desemprego imediato ou a prazo milhares de trabalhadores.

 

Mesmo sobre a faixa costeira de Leça da Palmeira, a refinaria havia sido construída como um grande projeto de autonomia energética e de desenvolvimento do país e, durante muitos anos, assumiu-se como uma unidade de refinação ímpar na península ibérica, laborando com uma eficácia que outras unidades espanholas não conseguiam acompanhar. Quando a indústria do concelho de Matosinhos foi sendo, paulatinamente, destruída, quando o setor da pesca foi sendo dizimado entre o final da década de oitenta e o início da década de noventa, a troco de uns sacos de dinheiro fácil da União Europeia, a refinaria de Leça da Palmeira resistiu como um pilar sólido, não apenas do concelho de Matosinhos, mas de toda a região norte, um pilar de emprego com perspetivas e direitos, um pilar de desenvolvimento económico, de produção e de retribuição efetiva em impostos para a nação fruto de uma atividade abundante e permanentemente lucrativa.

 

Por ventura, o problema da empresa seria esse mesmo: empregar muitos trabalhadores com direitos que já nem se equacionam no panorama do trabalho em Portugal, dar lucros e pagar impostos. O que está na moda é empresas muito tecnológicas que empregam meia dúzia de estagiários e pagam os impostos noutro país. Se calhar, o problema era este.

 

Do mesmo modo, estas memórias que tenho da refinaria encontram apenas paralelo com o apetite voraz das várias administrações camarárias PS em explorar aquela zona de implementação da Petrogal para imobiliário apetecível à beira mar. Desde sempre, praticamente, desenvolveu-se uma vontade permanente em fechar a refinaria, erguendo-se as bandeiras ambientais de conveniência e questões de segurança para as populações que a própria autarquia autorizou que se implantassem em redor da fábrica. Por mais do que uma vez, foi a união e a resistência dos trabalhadores da fábrica, dos operários que lhe davam vida, que impediu que a refinaria fosse encerrada e, desse modo, obrigaram o país a continuar a retirar fartos dividendos da sua atividade, ainda mais nas fases não muito longínquas em que o preço dos derivados do petróleo estiveram em alta.

 

O capital, todavia, dispõe de recursos ilimitados para levar o seu barco a bom porto. Os sucessivos governos, sempre ao serviço do poder burguês, foram privatizando a empresa, alienando capital e participações, contribuindo e patrocinando gestões cada vez mais ruinosas, que fizeram com que a empresa fosse perdendo mercado e que foram justificando que a mesma fosse reduzindo gradualmente a sua produção. Agora, com uma pandemia caída do céu e as pressões europeias a propósito da descarbonização, a tanga do momento, que mais não são do que uma descarada reorganização do poder económico e do controlo das fontes energéticas no seio da união em favor, como sempre, da Alemanha, decidiu-se encerrar a refinaria de Matosinhos e concentrar a pouca produção restante na refinaria de Sines em vésperas do Natal. A União Europeia, sempre generosa, avança, tal como outrora, com maços de notas para indemnizar trabalhadores e calar qualquer fogacho de protesto.

 

Há aqui algumas questões que gostava de sublinhar.

 

Primeiro, gostava de sublinhar que Portugal é o único país pertencente à União Europeia que encerra uma refinaria de petróleo. Em Espanha e na Alemanha, particularmente, nenhuma refinaria será encerrada. O nosso futuro estará, pois, entre o idealismo impossível de uma sociedade movida a eletricidade e o pragmatismo de uma situação de maior (total) dependência energética relativamente ao exterior. Estaremos aqui, se estivermos de boa saúde, para observar as consequências desta decisão.

 

Segundo, que novamente vamos alegremente enganados no canto da sereia da União Europeia. Depois de terem votado os nossos campos ao abandono, para sermos obrigados a importar tudo o que comemos, depois de nos obrigarem a abater a nossa frota pesqueira e nos porem a comer peixe espanhol, depois de nos forçar a desindustrialização do país e de nos condenarem a sermos um país de serviços e sem autonomia e soberania económica, tudo a troco de grandes sacos de dinheiro, novamente achamos todos muitíssimo bem que, a troco de uns fundos para a ecologia e descarbonização, que acabemos com um dos últimos exemplares de indústria que ainda detínhamos. Os jornais praticamente não deram importância ao assunto que passou praticamente despercebido para a maioria dos portugueses.

 

Terceiro, que o povo, claro está, vai sofrer amargamente com esta decisão, mesmo que hoje ache muito bem, mesmo que não tenha a mínima noção do que se está a passar e que ache que a política não tem interesse nenhum. A refinaria de Matosinhos da Petrogal implicava quase dois mil empregos diretos, mas implicava muitos mais indiretos, todos eles que se desmultiplicavam em consumo que sustentava muito comércio e restauração na zona norte do país. A este propósito as declarações do ministro Matos Fernandes foram de uma leviandade arrepiante e, mais geralmente, a forma como patrocinou a resolução desta situação ficará marcada na história deste governo e da economia do país como um exemplo de má gestão, não tenho a mais pequena dúvida sobre o assunto.

 

Quarto, que esta tragédia tenha acontecido com um governo PS ao leme, não me causa nenhum espanto. Como tenho aqui referido e como os meus leitores não podem ignorar, a minha opinião sobre os governos PS é tão negativa como a que tenho dos governos mais à direita, completamente serventuários do capital, contribuindo ativamente e continuamente para o desequilibrar da balança económica contra o povo proletário. O que nunca poderia imaginar é que o fim da Petrogal de Matosinhos viesse a ser ditado por um governo apoiado pelo Partido Comunista Português e pelo Bloco de Esquerda. Isto nunca poderia imaginar e deixa-me absolutamente desolado. Mesmo depois de todas as diferenças que mantenho com a direção que a esquerda, em geral, tem tomado nos últimos anos, mesmo depois de todas as incongruências, de todas as traições ao ideário revolucionário, nunca poderia imaginar que a Petrogal de Matosinhos, símbolo derradeiro de uma região e de um país, pudesse ver o seu fim decretado por um governo suportado parlamentarmente pelo PCP e pelo BE. Morrerei com esta espinha atravessada na garganta.

 

Este Natal será mais triste para alguns. Será vivido sob o signo da incerteza e da insegurança e não sobejará grande ânimo para antecipar o ano novo que há de chegar. Os próximos Natais, todavia, serão muito tristes para muitos, mesmo que, passados um, dois, dez anos, eles já não saibam ou já não se lembrem porquê.

publicado às 14:27

TAP: um réquiem anunciado

Quando tudo estiver feito e acabado, quando o processo de desmantelamento, perdão, restruturação, estiver concluído, sempre no estrito cumprimento dos desmandos da União Europeia, como bons alunos que somos, a TAP ficará reduzida a uma posição que será demasiadamente frágil para que algum dia volte a ser minimamente viável e preponderante no mercado da aviação civil.

publicado às 09:31

O aumento do salário mínimo e outros assuntos

1. É fascinante ver a quantidade de economistas, pseudo-economistas e economistas de facto, de comentadores, de jornalistas, que conseguem, ainda hoje, preencher o espaço mediático com a ideia de que um aumento do salário mínimo traria como consequência direta o desemprego e a falência de muitas empresas. É, assim, como que o triunfo da boçalidade económica, de ideias cristalizadas por mais de mil anos desde a idade das trevas, incapazes de conceber uma economia intercomunicante, inter-relacionada em que os salários mais não são que vales de consumo direto na economia. Será impossível fazê-los entender que qualquer aumento dos salários é dinheiro diretamente injetado na economia, no consumo, nas próprias empresas? E justamente hoje, quando a queda da nossa economia está diretamente relacionada com a quebra no consumo provocada pelos regimes de layoff e dos despedimentos que cortaram o poder de compra às populações? Neste particular, Rui Rio perde toda a credibilidade ao fazer-se a voz política defensora desta corrente de opinião.

 

2. Não deixa de ser irónico que o setor que mais paga salários mínimos, o setor do retalho, das grandes superfícies, seja precisamente o setor que mais tem lucrado com a crise pandémica. Ainda assim, o setor empresarial une-se a uma só voz contra qualquer aumento do salário mínimo.

 

3. No contexto atual, o aumento do salário mínimo, em linha com qualquer outro direito laboral, pode ter um significado prático limitado. Depois de todas as transformações operadas em sede do Código de Trabalho, a verdade é que ao patronato não faltam alternativas para contornar qualquer incremento nos direitos dos trabalhadores. Vivemos uma era onde, na prática, é possível a eternização de um vínculo precário, onde contratos individuais, situações excecionais recorrentes, bancos de horas e afins servem para evitar o cumprimento da lei, constituindo-se como exceções que fazem a regra no dia-a-dia dos trabalhadores portugueses. A um recibo-verde não adianta a bondade ou a abundância de lei. Em boa verdade, não adianta nada.

 

4. A lei da oferta e da procura, tão pomposamente declamada pelas autoridades intelectuais do capitalismo, viemos a saber afinal, na semana que passou, que não é mais do que retórica sem verificação prática. Se há mais oferta do que procura, os preços descem; se há mais procura que oferta, os preços sobem. Simples, claro, fácil de entender. Só que não. Uma escola portuguesa viu-se obrigada a fechar portas porque ficou sem cozinheira e ninguém se candidatou ao lugar. Foram oferecidas melhores condições de trabalho? Não. Serão os mesmos quinhentos e tal euros limpos. A lei da oferta e da procura é um embuste. Só funciona num sentido, para retirar direitos aos trabalhadores ou para fazer-nos pagar mais pelos bens e serviços de que precisamos.

 

5. A União Europeia, cheia de boas intenções, anuncia ao mundo intenções de estabelecer dentro das suas fronteiras um salário mínimo europeu. Desde o Bloco de Esquerda, muito dado a encaixar fantochadas vindas de Bruxelas, que a generalidade das forças políticas se regozijaram com o anúncio. No quadro atual marcado por fortíssimas assimetrias entre as economias da zona euro, o estabelecimento de um salário mínimo europeu estaria entre o radicalmente revolucionário e perfeitamente inconsequente. Honestamente, nem sei como poderia ser feito sem ser acompanhado por fortes transferências de capital entre as economias mais fortes e as mais fracas, coisa absolutamente surreal no atual contexto. O que sairá deste anúncio, se é que alguma coisa dele sairá, estará mais próximo da constituição de uma referência para as economias mais fortes, ávidas por acolher a mão de obra migrante, para poderem pagar o mínimo possível e, desse modo, baixar os custos de produção e a fasquia do nível de vida das suas populações. Estarei enganado? Estaremos cá para observar o que se vai passar.

publicado às 18:49

Uma vez mais, a Alemanha

Nos últimos anos têm-se vindo a multiplicar os protestos populares na Roménia, sobretudo nas suas cidades mais cosmopolitas com expoente máximo na capital Bucareste. A razão de ser de tais manifestações é uma corrupção governamental crescente tão vergonhosa, que o primeiro-ministro local chegou ao descaramento de influenciar o processo legislativo para evitar ser preso ou julgado pelos seus crimes de lesa-pátria. O povo saiu à rua em força, gritou com toda a força que guardava nos pulmões, mas à parte da Roménia, ninguém aqui, na Europa civilizada, ouviu o que quer que fosse, escassas notícias foram impressas sobre o assunto, nenhum comentário foi emitido no noticiário sobre a situação, nenhum vestígio de indignação. Absolutamente nada.

 

Um pouco mais a norte, no enfiamento do mesmo meridiano, a pouco mais de quinhentos quilómetros, a Bielorrússia tem vindo a ser tema de conversa desses mesmos jornais e noticiários de televisão. Aparentemente, as eleições locais geraram suspeita. Aparentemente, tem havido manifestações diárias de dezenas, não, centenas!, não, milhares!, não, dezenas de milhares!, não não, centenas de milhares! — assim é que é! —, reprimidas pelo estado. Há opositores políticos encarcerados e outros no exílio. Há isso e há muito mais. O pacote que os media nos oferecem nestes contextos é já bem conhecido e aplica-se de modo notável neste caso particular. A Bielorrússia, provavelmente o país mais ordenado e organizado da Europa, com uma taxa de crime praticamente nula, está convertida no inferno na Terra, pelo menos, a confiar no que nos dizem os nossos canais informativos.

 

O meu problema não é eu ter um certo afeto pela Bielorrússia e não ter assim tanta afinidade pela Roménia. Afinidades, como os amores, não se discutem, nem se escolhem. Ademais, não ponho as mãos no fogo pela liderança atual da Bielorrússia, nem tomo esse país como um modelo a seguir. Mas isso também não é para aqui chamado, não será assim? Se calhar o nosso problema é precisamente este: permitimos sermos guiados pela emoção em vez da razão e essa será a chave para quem nos governa conseguir perpetuar os seus poderes, manipulando-nos constantemente e, assim, sobrevivendo a cada eleição e a cada escândalo.

 

O meu problema é a diferença de critério, são os dois pesos e as duas medidas, porque não é só a Ucrânia que está entre a Roménia e a Bielorrússia, há algo de mais substantivo que separa estes dois países e que justifica as evidentes diferenças de tratamento aplicadas a um e a outro.

 

Qualquer observador atento da realidade política internacional que não conheça as lengalengas contadas usualmente a propósito da criação das comunidades várias que deram origem à União Europeia, dirá que o objetivo principal desta última terá sido coser na perfeição um manto protetor feito à medida da Alemanha. Com esse manto chamado União Europeia, a Alemanha foi capaz de camuflar os seus interesses expansionistas fazendo uma espécie de reset àquilo que foi a memória coletiva mundial pós duas guerras mundiais. Tudo na União Europeia, as suas regras, as suas políticas produtivas comuns, as suas distribuições de renda, a moeda única, a admissão de novos membros, etc, tudo foi feito na justa medida dos melhores interesses germânicos. Até mesmo em termos de política externa, a Alemanha encontrou um intermediário ideal que, falando em nome do grupo, defende, de facto, os seus interesses.

 

A diferença é esta. A Roménia já se libertou da influência russa desde o início dos anos noventa e, com isso, entregou, paulatinamente, todos os seus recursos naturais, todo o seu património empresarial nas capazes mãos alemãs. A Roménia está, portanto, do lado certo. Já a Bielorrússia é talvez o derradeiro aliado europeu da Rússia e mantém em seu poder a exploração dos seus recursos e a organização do seu país. A Bielorrússia está, como é evidente, do lado errado da História. Daí, as gritantes diferenças de tratamento.

 

A Roménia não é, bem entendido, o único exemplo que podemos fornecer. Aliás, o retrato traçado sobre a Roménia poderia ser reproduzido com muitas semelhanças relativamente a muitos outros países vizinhos. Desde o final da guerra fria, cada país do leste europeu que descobriu e se converteu às maravilhas do capitalismo do ocidente foi um país que engrossou o protetorado alemão. E sentem-se bem desse modo. Não se importam de já não terem fábricas suas, nem companhias aéreas, nem matérias primas. Adoram imaginar-se alemães. A Alemanha está efetivamente a conseguir pela via económica o que nunca conseguiu pela via militar.

 

Nos últimos dias, tivemos conhecimento do envenenamento de mais um opositor de Putin, desta feita em solo germânico. Pela forma como a notícia nos é apresentada, não restam quaisquer dúvidas para ninguém de que a Rússia será a culpada. Se assim é, será possível reconhecer também a total incompetência dos russos nestes envenenamentos que nunca cumprem plenamente os seus intentos, deixando sempre as vítimas vivas e um rasto de provas irrefutáveis. É estranho. E neste mar de estranhezas sucessivas, alimentadas ora por americanos, ora por britânicos, ora por franceses, ora por alemães, prosseguem estes últimos um rumo fixo e determinado de dominação ideológica e económica do leste europeu.

publicado às 18:01

A deusa

Ontem fui ao Pireu com Gláucon, filho de Aríston, a fim de dirigir as minhas preces à deusa e, ao mesmo tempo, com o desejo de ver de que maneira celebravam a festa (...)

— A República, início do Livro I, Platão

 

As derradeiras semanas do ano político de 2019-2020 trouxeram consigo o anúncio de mais um dos milagres da deífica União Europeia que, omnipresente, preenche cada recanto do nosso espaço político e, omnisciente, controla cada um dos passos que podemos dar. É verdade que esta divindade não preza o valor da novidade, manifestando-se sempre, repetitivamente, do mesmo modo. Os seus sopros sobre a nossa mortal poeira fazem-se sempre nos mesmos moldes, ou seja, através de muitos milhões de milhares de euros. Não há surpresa, nem é preciso. O que faz, faz bem e é eficaz para maravilhar as massas ínscias e admiradas.

 

Para o governo português, o anúncio de nova aparição da deusa nas nossas desgraçadas vidas vem no momento certo. A fé é forte entre nós, mas convém não perder o ânimo, pois a divindade mantém-se, por vezes, tempo demais afastada dos fiéis ou adota em demasia aquela atitude castigadora tão à moda do Antigo Testamento. O milagre era exatamente o que o povo, que se volvia eurocético em demasia, precisava como um bálsamo refrescante e renovador das almas.

 

A deusa é, também, generosa para com os seus presbíteros. António Costa, por exemplo, desesperava por este favor, como de água para matar a sua sede. Foi mais um ano marcado por uma inépcia assustadora para antecipar e lidar com problemas anunciados, mas o governo lá sobreviveu, dançando entre os pingos da chuva, escapando a qualquer responsabilidade, o que parece ser a sua principal “qualidade”. O desgaste, todavia, é real e, não obstante a inexistência de oposição política, começava a notar-se. Quantos meses mais de consultas e cirurgias adiadas, de serviços públicos congelados, de lay-offs e desemprego poderão os portugueses aguentar afinal? Nada como um conjunto alargado de investimentos e obras públicas para mitigar a crise económica em que estamos metidos e ainda não percebemos, injetar dinheiro fresco na economia, cerrar os olhos com força e imaginar que isto tudo se resolve com consumo interno e medidas Keynesianas que, em boa verdade, nunca resultaram em parte nenhuma do globo.

 

Até aqui a história tem muito de belo e de idílico e um viveram felizes para sempre deveria-se-lhe seguir, pelo menos para a maioria de nós, porque quando a coisa rebentar nas nossas caras — e rebentará — contentar-nos-emos com um qualquer bode expiatório para carregar de culpas e sacrificar para mal dos nossos pecados.

 

É fastidioso escrever sobre uma realidade tantas e tantas vezes repetida. Os milagres da deusa revelam-se sempre truques de ilusionismo barato e os seus presentes — quais Cavalos de Troia — provam ser sempre envenenados. Se o passado fosse, para nós, um mestre, a primeira pergunta seria: a troco de quê? Muitos foguetes seriam poupados, muitas garrafas de espumante permaneceriam invioladas, muitas celebrações — perigosas e desaconselhadas em tempos de pandemia — seriam evitadas, fosse essa importante pergunta produzida. Mas não é. E talvez esteja bem assim: para a maioria de nós vale mais festejar em antecipação do que não festejar nunca.

 

Comecemos pelo facto de que, por cada euro dado pela União Europeia, Portugal ter que se endividar para adicionar igual quantia ao investimento. Em tempos em que os juros são praticamente inexistentes, vem-me à memória a velha fábula em forma de poema da aranha que convida a mosca para a sua sala. Endividemo-nos, pois, e rezemos à deusa e aos santos mercados para que estes não se lembrem de, do dia para a noite, começar a cobrar juros incomportáveis para o nosso país. Este filme não é original: é um remake do que vimos em 2011 onde, então, uma crise da dívida seguiu-se a um incentivo, vindo da União Europeia, ao endividamento e ao investimento públicos.

 

O que vem depois também não é inédito. Aliás, todas as dádivas da deusa foram acompanhadas de exigências de fé resoluta, que é como quem diz de renúncia absoluta do nosso livre-arbítrio, da nossa autonomia e soberania. Desta feita, novamente nos subjugamos em toda a linha aos planos económicos da Alemanha — a predileta da deusa, porque não somos todos iguais perante Ela. Chamam-se de “economia verde” e é preciso realmente muita fé para crer que deles brotará, nas nossas praias, qualquer coisa que seja bondosa e sumarenta, pelo menos para nós.

 

Há também o pacote de impostos, de taxas e de taxinhas que se pretende implementar no plano europeu, mas não sei se também serão verdes ou de uma outra cor qualquer. A história repete-se. A União Europeia tem sido muito boa para isto: líderes nacionais incapazes fazerem brilharetes com os seus povos ao mesmo tempo que os enterram em dívidas e vendem as suas almas a troco de uns euros. Seria uma boa altura para os velhos, que já conhecem o filme de cor, chegarem-se à frente e falar. Caso contrário, continuaremos a ser guiados por uma certa juventude para a qual tudo é novo e promissor, tudo é anúncio de um amanhã de esperança. E o ciclo continuará.

 

publicado às 18:30

A História do pensamento único

Era já domingo há algumas horas. Uma luz trémula amarelava o espaço. Procurava escapar, ainda, ao final do dia anterior e ia, assim, dando clicks aleatórios no ecrã, em busca de não sei bem o quê. O país entrou já no seu período sazonal merecido de estupidificação. Este ano não há campeonato do mundo ou europeu, mas o futebol inunda o espaço mediático. Como sempre. Discute-se o nada, horas a fio.

 

No DN vim a descobrir uma entrevista de Ernest Oberländer Târnoveanu, diretor do Museu Nacional de História da Roménia. A propósito da sua visita ao nosso país para inaugurar uma exposição sobre os principados romenos, patente no Mosteiro da Batalha, Târnoveanu falou ao DN sobre alguns aspetos gerais da história do seu país. O título da entrevista era, desde logo, prometedor: A independência romena não foi um presente dado pelos russos.

 

O que despertou o meu interesse àquela hora avançada era precisamente saber mais sobre esta animosidade, sobre este ódio, que parece visceral, que os romenos nutrem pelos russos. Não é sentimento que seja exclusivo dos romenos, diga-se. Ao longo das minhas viagens, encontrei semelhante animosidade em países como República Checa, Eslováquia, Hungria, Bulgária, Polónia e, também, nos três irmãos do Báltico, Estónia, Letónia e Lituânia.

 

A entrevista tem algumas partes com interesse como não poderia deixar de ser. A história da Roménia está intimamente ligada ao império romano, à sua cisão e, particularmente, à sua metade oriental resultante, o império Bizantino de Constantinopla, mais tarde chamado Otomano aquando da conquista pelos turcos. Como naturais guardiões do Danúbio, avenida que liga as extremidades da Europa, os principados que deram origem à Roménia contemporânea assumiram desde sempre uma relevante importância estratégica comercial e, daí, a história daquele lugar sobre a barriga da Europa é repleta de desventuras e acontecimentos fascinantes.

 

Não desiludindo as minhas expetativas, Târnoveanu é lesto a incluir os russos na conversa. Os russos são pintados como uma espécie de inimigos mortais, as suas ações são revestidas de duplicidade e de infâmia, ao passo que os romenos, investidos de uma certa incapacidade ou inocência, vão sendo permanentemente enganados e roubados. Este quadro atinge o seu apogeu com o comunismo e a era de domínio soviética. Nas palavras de Târnoveanu: “Foi uma pilhagem em larga escala, maior ainda que as pilhagens turcas e mongóis juntas”. Atente-se bem na hiperbolização utilizada, pois ela é marcante no que concerne ao revestimento ideológico da narrativa.

 

Não deixa de ser surpreendente que um país, ou conjunto de principados, permanente sob domínio ou influência de estrangeiros, permanentemente cobiçado e invadido, seja por turcos otomanos, seja por austro-húngaros ou polacos, eleja os russos como alvo, mais que primordial, das suas antipatias e dos seus ódios.

 

Tomo a liberdade de adivinhar o pensamento que assalta agora mesmo o meu caro leitor neste ponto da sua leitura: este Amato, por ser comunista, não consegue ver o quanto o comunismo suprimiu aqueles povos de leste. Adivinhei? Deixem-me assegurar-vos, pois, que a minha posição neste texto não se inspira na ideologia e de ideológica apenas se apossa da lógica para construir pensamento sobre o assunto.

 

Quando me dedico ao estudo e reflexão das páginas da História só uma coisa tem o condão de me arrepiar o ser. Essa coisa é o pensamento único, os factos indiscutíveis e insofismáveis, as verdades evidentes. O tema em questão é um bom exemplo disto mesmo: na Roménia, assim como noutros países, é difícil encontrar uma pessoa capaz de tecer um elogio que seja ao regime pró-soviético que vigorou no seu país. É quase como se houvesse um pacto silencioso entre todos, uma história combinada de antemão. Acreditem que eu dou de barato que em muitos desses regimes foi feita muita coisa desprezível e repugnante, mas é difícil de acreditar que apenas tenha sido feito isso e que nada de positivo resulte quando se olha sobre o ombro para esses tempos. Em seguida, deixo alguns pontos que me fazem duvidar da verdade destes discursos. Centrar-me-ei no exemplo romeno, embora os argumentos possam ser igualmente aplicados noutros contextos.

 

Em primeiro lugar falemos do passado, isto é, do passado anterior ao regime comunista pró-soviético na Roménia. Como já foi dito, a região a que hoje se chama Roménia foi consecutivamente dominada politicamente por poderes estrangeiros. Desses sucessivos domínios resultou uma terra ocupada por uma espécie de camponeses nómadas, que se refugiavam nos bosques, nas montanhas e nos vales dos rios, sempre em movimento, sem nunca se fixarem. Em meados do século XX, a Roménia era pouco mais que um país retirado da idade das trevas, de um cristianismo ortodoxo extremamente conservador, uma sociedade em tudo medieval, pouco evoluída tecnologicamente, pouco civilizada e parada no tempo.

 

É curioso perceber o olhar algo terno que os romenos contemporâneos dedicam a esses tempos e a admiração que especialmente dedicam aos ocidentais que sempre os dominaram. Não se pronunciam grandes críticas, não se apontam dedos. É uma história que é aceite na sua plenitude porque formou o caráter e a identidade comuns a todos os povos romenos.

 

Já é revelador, todavia, perceber que os romenos raramente se referem aos alemães e, particularmente, a Hitler e ao nazismo. Nesta entrevista que dá o mote a esta reflexão, Târnoveanu não os refere uma única vez. Por que é que eu adjetivo o facto de revelador? A Alemanha nazi, na antecâmara para a Segunda Guerra Mundial, começou por invadir e ocupar uma série de países na Europa central e de leste: Áustria, Hungria, Polónia, Roménia e Bulgária, entre outros. Estes países serviram como passadeira vermelha para o Terceiro Reich se colocar às portas da Rússia antes de a invadir sem uma prévia declaração de guerra. Os recursos desses países — e isto, sim, trata-se de um facto indesmentível — foram totalmente usurpados e colocados ao serviço do exército nazi. Admira-me que, na sua entrevista, Târnoveanu não dedique uma única palavra a este assunto. Admira-me que não reconheça a evidência da exploração do seu país pelo regime ideologicamente mais hediondo de que há memória. Adiante.

 

Quando o exército vermelho libertou a Roménia, juntamente com muitos outros países, do jugo nazi, foi instaurado um regime socialista pró-soviético. Durante esse regime a Roménia atingiu os mais elevados índices de bem estar e de desenvolvimento da sua história. Não existe comparação possível relativamente a domínios como a educação, a cultura, a saúde, a habitação, o trabalho ou o aquecimento. Os russos dotaram o país das estruturas necessárias para o catapultar para a era moderna como casas, escolas, universidades, hospitais, canalização ou condutas de aquecimento. Índices como a mortalidade na infância, a esperança média de vida ou a alfabetização falam pelo que foi feito nessa altura e pelo que nunca havia sido feito anteriormente, particularmente pelos admirados ocidentais. A Roménia deixou de ser um país de camponeses incultos para se tornar num país de escritores e cientistas.

 

A independência romena não foi um presente dado pelos russos? Talvez não, Sr. Târnoveanu. O que os russos deram aos romenos foi muito mais do que independência. Por que razão Târnoveanu, ou qualquer um dos conterrâneos que representa, não é capaz de reconhecer qualquer uma destas virtudes? Por que é que, pelo contrário, prefere deixar frases como aquela a propósito dos soviéticos: “Foi uma pilhagem em larga escala, maior ainda que as pilhagens turcas e mongóis juntas”?

 

Já sabemos que, na opinião dos romenos, no tempo dos nazis ou de outros que os precederam não aconteceram grandes “pilhagens”. E hoje em dia, como é? Sim, porque o comunismo já abandonou a Roménia há uns bons trinta anos. Não sabem? Deixem-me que vos diga, então: a Roménia não tem nada de seu, nem empresas, nem recursos, nem serviços; os seus vastíssimos recursos fósseis são drenados para as grandes potências capitalistas mundiais que deixam ficar pequenas migalhas à população romena; o povo vive miseravelmente mas agora pode dizer, com orgulho e propriedade, que tem ricos e que vive em democracia e liberdade. Acresce ainda que encontrei na Roménia as mais obscuras igrejas ortodoxas de toda a Europa, igrejas mal iluminadas, repletas de fieis divididos por género, com um culto perfeitamente retrógrado, com as mulheres tapadas da cabeça até aos pés de onde apenas um singular olhar inquisidor sobre os turistas, desobedientes ao seu código ético, conseguia escapar.

 

Ao mesmo tempo, atualmente a Roménia empenha-se com todas as suas forças para que a acolham na família da União Europeia. A adesão à NATO foi instantânea, mas a União Europeia é mais exigente. Por parte da Roménia, dado o seu quadro histórico, seria de esperar alguma cautela e até aversão à dominação estrangeira, mas tal não se verifica. Pertencer ao clube dos países ricos é uma ilusão muito apetecível. Bem fariam se olhassem com olhos de ver para o exemplo português.

 

Podia ainda falar de Ceausescu e das marcadas diferenças e divergências entre o regime comunista romeno e a União Soviética, que também concorrem para o desmascarar deste discurso parcial e desequilibrado pintado a uma só cor. Podia, mas o texto já se prolongou para além da conta.

 

Termino reconhecendo o quão fácil é, portanto, entender a razão de ser do pensamento único romeno. Como se costuma dizer, o coração quer o que o coração quer. E o que o coração quer é igreja, poucas obrigações de estudar ou trabalhar, pouco trabalho, dinheiro fácil, sonho americano, poder ser rico, ou melhor, poder ter mais dinheiro que o vizinho ao lado. E é por isso que os russos são o demónio. É por isso que o comunismo foi horrível, ao contrário de qualquer outro poder incluindo o nazismo. Ernest Oberländer Târnoveanu é uma personalidade simbólica, porque é mais do que o diretor do Museu Nacional de História da Roménia: é uma espécie de clérigo deste pensamento dominante. Ave ocidente. Ave livre mercado. Ave capitalismo.

publicado às 15:22

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