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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

A regionalização que se prepara

A raiz de toda a propaganda está no processo de representação, na capacidade de sintetizar a coisa através de um símbolo. A propaganda dedica-se a criar universos imaginários suscitados por uma ideia e com a capacidade de a representar, de lhe dar um corpo, uma manifestação em coisa palpável, de tal modo que a ideia passa a ser a representação que se faz dela.

Neste sentido, é sempre avisado questionar os conceitos em discussão, mormente antes da discussão ter lugar. De que é que estamos a falar, exatamente? A que nos referimos? Isto vale para os conceitos mais abstratos como liberdade ou democracia, mas também para outros menos abstratos como igualdade e ainda outros que parecem ser muito concretos e bem definidos como regionalização.

O debate da regionalização que ocupou algum do espaço mediático nos anos noventa referia-se a um instrumento de descentralização do investimento público, o qual, já na altura, encontrava-se perfeitamente concentrado na região de Lisboa em evidente prejuízo para as demais regiões. A regionalização apresentava-se, assim, como uma forma de melhor distribuir verbas e de aplicá-las regionalmente de um modo mais participativo e democrático. Essa regionalização seria importante, mas não necessária para se atingirem esses fins que eram apresentados à vista.

Devemos entender bem esta diferença. A política de desinvestimento e de abandono do interior, das zonas rurais, em favor das zonas costeiras e das grandes metrópoles, particularmente a capital, em redor da qual se foi acumulando uma maioria esmagadora e insustentável de população, tem sido uma política sistemática, bem dirigida e racionalmente orquestrada pelos sucessivos governos. Não se tratou de nenhuma inevitabilidade. Foram medidas concretas, aceleradas no novo milénio, penduradas nas sucessivas crises capitalistas como justificativas oportunistas. Devemos ter consciência disto antes de prosseguirmos.

Avancemos, pois, no desenrolar da história. Neste fim-de-semana, António Costa, no seu eticamente reprovável duplo papel de primeiro-ministro e candidato ao cargo, promete um referendo a propósito da regionalização para 2024 na sequência do processo de descentralização levado a cabo pelo PS para as autarquias. Este é, portanto, um momento importante que nos deve levar a parar e a refletir, a questionar e reconstruir os nossos imaginários sobre o tema.

António Costa fala na regionalização como uma consequência de um processo de descentralização bem feito, processo esse que, sabemo-lo bem, nada mais tem sido do que um processo de desresponsabilização do estado, de pulverização das suas valências, de precarização das condições de trabalho dos servidores públicos, de diminuição das verbas alocadas para as funções essenciais do nosso estado e de decadência dos serviços públicos em geral. Correndo o risco de cometer a maior das injustiças, as evidências apontam para uma regionalização que se prepara em moldes distintos da regionalização que se pretendia nos anos noventa: um mega processo generalizado e legalmente instituído que podemos descrever como a “subcontratação” dos serviços essenciais do estado pelas suas várias sucursais (regiões) que, depois, farão a gestão desses serviços como bem entenderem. Compreenderá este processo, como é natural, um subfinanciamento crónico, estruturalmente instituído, democraticamente protegido, a salvo de escrutínio popular, mais ou menos mitigado pela identificação da cor política da região com a cor política do governo central.

O povo queixar-se-á, claro, mas será um queixume mal direcionado, dirigido aos que administrarão escassas verbas. As regiões esquecidas hoje, continuarão votadas à decadência com a regionalização, porque para que tal não acontecesse, o estado central teria que retirar verbas à grande Lisboa para as dedicar às regiões com cento e poucos habitantes, mas isso poderia fazê-lo agora, nada o impede, não precisava nem de regiões, nem de mais governantes, secretários ou burocracia. Mas as prioridades do estado central têm sido outras, a saber: encerramento de escolas, hospitais, correios, serviços públicos e até mesmo freguesias. Portanto, nada disto parece ser muito coerente, talvez porque as intenções com a regionalização não coincidam com a propaganda que a acompanha.

Na verdade, o erro é nosso em esperar de um governo burguês qualquer política que não seja em essência burguesa, isto é, que não vise a acumulação final do capital e a concentração do poder económico nas mãos da burguesia que se vai divertindo enquanto o povo, por sua vez, se entretém a discutir as migalhas que caem ao chão.

publicado às 10:05

Subconcessionando

“Hoje, eu e a esposa tomámos uma decisão. Isto de criar um filho, de lhe dar sustento e educação, é muito dispendioso. É mesmo o que se poderá chamar um investimento a fundo perdido. Retorno, nem vê-lo! Quando o magano tiver idade suficiente nunca mais lhe pomos a vista em cima e, ainda bem, porque a alternativa seria pior e eu não nasci para sustentar mandriões. Bem vistas as coisas, gasta-se uma pipa de massa durante dezoito anos, pelo menos, da qual não vemos um tostão de volta.

 

Dizia eu que tomámos uma decisão. Esta brincadeira já dura há tempo demais. A decisão é de, em face do exposto, subconcessionar a criação do nosso filho a uma empresa privada que se nos apareceu com bom preço de oferta.

 

Não o fizemos, todavia, de modo a despachar o problema de qualquer jeito. Não. Primeiro fizemos o nosso trabalho de casa, a prospeção do mercado. Solicitámos vários orçamentos, enviámos diversos e-mails, e o que mais barato resultou foi esta empresa que acabámos por escolher. Em boa verdade, a empresa oferece ainda alguns extras bem interessantes, como atividades de lazer e extracurriculares e outras coisas que tais para o catraio se entreter.

 

Adoro o sistema capitalista. Faz do inimaginável realidade. Quem é que poderia pensar que isto poderia ser possível? Delegar as nossas responsabilidades num terceiro é mais eficaz e sai mais barato na carteira. Afinal, a empresa é profissional e está melhor preparada do que nós para a criação do nosso filho. Agora, substituem-nos nas aborrecidíssimas reuniões de encarregados de educação na escola, são eles que ouvem o que nos custava tanto dantes ouvir, tomam nota das asneiras que o miúdo faz ao longo do ano e disciplinam-no da melhor maneira. Funciona melhor assim: como não há uma relação de proximidade, o miúdo ouve e aceita as reprimendas melhor do que se fossemos nós a ter que o fazer. Todos ficam a ganhar.

 

E não se pense, por um minuto que seja, que as vantagens não se ficam por aqui. Se o miúdo não comer e passar fome, a culpa não é nossa. Se o miúdo andar sujo, a culpa não é nossa. Se o miúdo fizer alguma asneira, a culpa não é nossa. Essencialmente, a culpa nunca é nossa. A subconcessão a uma empresa reputada e que presta todas as garantias prévias salvaguarda-nos de qualquer problema. Se a empresa presta o serviço em condições, isso é outro problema que não é, seguramente, nosso.

 

Que ideia brilhante! Amanhã à noite, vamos jantar à conta do que já poupámos com esta ideia. Quem nos dera ter-nos lembrado de fazer isto mais cedo. Devíamos ter prestado mais atenção quando as empresas começaram a fazê-lo mundo fora, ainda na década de noventa, desmantelando os seus serviços e subconcessionando-os a outras empresas satélite. Hoje, não há quem assuma responsabilidade seja pelo que for e o serviço que custava dez, agora custa cinco. Não interessa se tem ou não tem qualidade. No subconcessionar é que está o ganho!”

publicado às 23:44

Viajar no tempo

DeLorean, a máquina do tempo de Regresso ao Futuro

 

Mais amiúde do que se possa imaginar, e sem dar imediatamente por isso, embarco numa viagem temporal que me conduz ao passado ou ao futuro.

 

Justamente numa destas manhãs solarengas de fim-de-semana dei comigo de regresso ao passado. Nestes dias de meados de 2015, o Brasil debate-se acesamente com a questão da “terceirização” do trabalho. O termo nada me dizia e não me suscitou curiosidade imediata. Vim a saber, nessa iluminada manhã de domingo, que o termo brasileiro “terceirização” esconde, afinal, um conceito assaz conhecido por todos os portugueses e pode ser interpretado como um sinónimo de subcontratação.

 

A subcontratação tem sido implementada ativamente em Portugal há já vários anos que, todos juntos, perfazem mais de uma década e tem que ver com a delegação de determinados serviços necessários ao funcionamento de uma empresa ao cuidado de uma outra empresa que os oferece ao melhor preço. Esta intromissão de uma terceira parte no processo da prestação de serviços conduziu, em Portugal, a uma diminuição substancial dos custos do trabalho que se traduziram em ganhos imediatos para as empresas acompanhados de diminuições progressivas da qualidade dos serviços prestados e, igualmente, perdas concretas dos rendimentos dos trabalhadores, reais prestadores dos serviços em causa.

 

Esta lógica, subjacente ao processo de intermediação, é tão evidente que me abstenho de a explicar em detalhe, talvez por preguiça, ou talvez por estar cansado de ver, no meu país, entre outras coisas, a falta de higiene em que caíram os serviços públicos, como os hospitais ou as universidades, ou até mesmo a assustadora diminuição dos níveis de responsabilidade e segurança de empresas ditas de alta segurança e vitais para o nosso país.

 

Por tudo isto, assistir ao debate em torno da “terceirização” no Brasil resulta como uma viagem de regresso ao passado. Nós viemos de lá, desse mesmo sítio onde o povo brasileiro se encontra agora, no que a este assunto particular diz respeito.

 

Mas nem só de viagens ao passado vive este DeLorean. Num outro dia, já não me lembro se de manhã, se de tarde, se de noite, se solarengo ou cinzento taciturno, uma amiga, vinda do coração de Inglaterra, contou-me que as salas de aulas londrinas já vêm equipadas de panic buttons (botões de pânico) sob as mesas dos professores, vítimas de ataques frequentes dos seus pupilos. Neste particular, vemos nos ingleses o nosso futuro imediato mesmo ao virar da esquina.

publicado às 11:11

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