Houve um tempo em que tive um professor genial. Uma vez, imediatamente antes de uma aula principiar, trocámos dois dedos de conversa sobre literatura. Eu falava-lhe de um romance histórico de cuja leitura havia considerado assaz interessante, ao que o professor retorquiu dizendo que não lidava bem com obras que misturavam ficção com realidade. A minha resposta, contrariamente ao que é comum, escapou-se célere pela boca fora, quase não passando pelo sítio onde é verdadeiramente importante que passe: o cérebro. Disse-lhe, então, que toda a “realidade” é, ela própria, uma ficção. Uma história contada pela boca daqueles que vencem os conflitos e as guerras.
Tem sido sempre assim. Olhando em retrospetiva pelo lençol de factos que conhecemos da humanidade comprovamos, facilmente, que sabemos muito pouco das nações vencidas, dos povos dominados e subjugados. E que mesmo esses povos que ainda subsistem, residuais, sabem muito pouco de si próprios. Uma vez vencidas as guerras, o lado que se sobrepõe trata de encetar um processo de afirmação sobre os derrotados que passa por uma propaganda de demonização dos mesmos, com vista à dominação total de consciências. Foi assim com os grandes impérios da antiguidade que, já naqueles tempos, procederam a massivos processos de aculturação das regiões dominadas. Foi assim com boa parte das religiões dominantes que se apropriaram de alguns elementos das anteriores, adaptando-os, e achincalharam outros. Quem não reconhece na figura do diabo do cristianismo vários elementos das divindades pagãs? Os cascos e os chifres de Baco, o tridente de Neptuno, as características de Vulcano ou Plutão? Foi sempre assim. E é assim com os impérios contemporâneos também.
Tornámo-nos mais sofisticados. A passagem dos tempos trouxe-nos isso. Criámos a psicologia e do seu ventre nasceu, quase de imediato, o comportamentalismo (behaviorismo). Este segmento da psicologia trouxe-nos uma compreensão mais fina do comportamento não apenas do indivíduo per si mas do indivíduo no contexto social. O comportamentalismo iluminou-nos o entendimento do comportamento das massas e as máquinas de propaganda contemporâneas bebem desse conhecimento como elixir mágico que lhes permite incutir subliminarmente os pensamentos precisos que pretendem e extrair as reações esperadas. Fazem uso também das ferramentas de comunicação que foram desenvolvidas e que tornam capaz uma disseminação rápida e eficaz da mensagem, como nunca havia sido possível. Os povos do mundo contemporâneo constituem-se como verdadeiros ratos de laboratório destas ciências.
Surgiu-me esta breve reflexão a propósito do aniversário da queda do muro de Berlim. Não é surpreendente verificar o tratamento jornalístico que é dado ao acontecimento, às suas repercussões e implicações, não somente em termos de geopolítica, mas sobretudo no que à evolução política e social, que tem existido em cada país desde então, diz respeito. Não pensem que me coloco a favor dos regimes de leste que se fecharam atrás daquela “cortina de ferro” simbolizada naquele muro. A sua queda foi, bem entendido, um momento marcante da história do Homem e deve ser recordada como tal. Não obstante, seria importante que a reflexão deixasse, de uma vez por todas, o seu tom marcadamente vexatório e se tornasse um pouco mais ponderada e inteligente. Porque aqueles regimes tinham também as suas virtudes para lá do autoritarismo que nos enubla a visão. Gostava que se falasse um pouco mais delas e não apenas dos pecados cometidos que já sabemos de cor. Gostava que se falasse um pouco da educação e da formação; da irradicação da fome, da pobreza e da mendicidade; da assistência médica e dos recordes muito positivos atingidos nos números da esperança média de vida e na mortalidade infantil; mas também que se referissem os períodos de efervescência na arte e na cultura, em geral, disseminadas por toda a população e não disponíveis somente para as elites. Gostava que se discutisse isso e muito mais com inteligência e bom senso. Porque repito: ninguém quer o pior daquele mundo. Mas acontece que o melhor daquele mundo ainda não foi sequer aproximado pelo melhor que este mundo em que vivemos nos oferece. E a falta desse contraponto, que foi destruído com a destruição do muro de Berlim, retirou-nos essa capacidade de olharmos para nós próprios de forma crítica, com a intenção de nos melhorarmos, de melhorarmos o sistema, de construirmos algo novo. Esse sonho, que animou os povos durante o vigésimo século, foi, em parte, destruído com o muro. Nos dias de hoje, a esmagadora maioria do povo olha para o estado capitalista como algo acabado, como um ponto de chegada, e isso é, realmente, uma tragédia.
A história é contada pelos vencedores das guerras. O meu professor parou e refletiu um pouco. Depois, soltou uma gargalhada: «Tens razão».