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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Este sistema está a transformar-nos

As pessoas não conseguem entender como este sistema que elegemos para nos organizarmos coletivamente nos está a transformar enquanto seres humanos. A transformação está a ser rápida e dramática.

Quando eu era uma criança era normal brincar na rua com as crianças vizinhas ou, simplesmente, sozinho. Era normal explorar os arredores de bicicleta. Era normal aventurar-me no desconhecido, ser curioso e, até, falar com estranhos, conhecer as pessoas em redor, não obstante os avisos de cautela da mãe e do pai. O que era normal deixou de o ser.

Os tempos, é claro, são outros. Há um trânsito ininterrupto e perigoso nas grandes cidades e nos subúrbios destas. Há também uma outra consciência dos perigos vários que existem, e que não são verdadeiramente novos porque sempre existiram de uma ou de outra forma, em maior ou menor grau, e há um outro cuidado com os mais jovens que desaconselha as liberdades que gozei no passado. As crianças estão, naturalmente, mais controladas e protegidas, fechadas nos seus quartos confortáveis e rodeadas de entretenimento impessoal. Diferenças à parte, todavia, a nota dominante parece ser a da desconfiança.

Em meio século as sociedades tornaram-se dominadas pela desconfiança. É a desconfiança do outro que, em última análise, justifica os medos que nos dominam e que condicionam as nossas ações. Não será assim? De onde vem essa desconfiança que outrora não existia? É evidente que esta pergunta não poderá ter uma resposta definitiva, mas eu arriscaria que esta desconfiança de que falamos advém das próprias vísceras deste mesmo sistema que nos coloca, diariamente, numa luta pela sobrevivência de uns contra os outros, uma existência em que nos vemos como inimigos mútuos e não como parceiros, uma sociedade que coloca o indivíduo à frente do coletivo, um utilitarismo sem sentido que tudo justifica em função do resultado final.

Em cinquenta anos ganhámos muita coisa, pelo menos alguns de nós, em termos de bem-estar e qualidade de vida, mas o que ganhámos, não tendo sido suportado numa lógica de solidariedade e de comunidade, fez de nós indivíduos mais egoístas, mais individualistas e, claro, menos solidários. Este sistema, que podemos chamar de capitalismo, para simplificar, está a transformar-nos. É preciso que tenhamos consciência disto e, também, que tenhamos uma ideia clara do tipo de seres humanos em que nos estamos a tornar.

publicado às 14:49

Sociedade de inquisidores

Causa-me bastante aversão esta sociedade de inquisidores, de moralistas para os outros, sempre para os outros e nunca para consigo mesmos. Os media são, simultaneamente, espelho refletor e agente catalisador destes comportamentos.

 

«Abandonaram um bebé no lixo à saída do hospital!»

 

«Mas não se preocupem, há câmaras de vigilância no local!»

 

«Vamos apanhar a criminosa!»

 

«A polícia já deteve a criminosa!»

 

E julga a jornalista, julga o bombeiro, julga o transeunte ocasional, todos se comportam como agentes da autoridade, carrascos da justiça e, sobretudo, da moralidade!

 

Esperem um pouco... lá está Marcelo no meio aos beijinhos a tudo o que mexe. Quão hipócritas são aqueles “afetos”! Servem para criar um manto de ilusão. As massas encantam-se. Os problemas mantêm-se e agravam-se.

 

Não faço parte — recuso-me com todas as minhas forças! — desta sociedade que, com os seus dedos indicadores em riste, nem soletrar sabe a palavra solidariedade, incapazes de se colocar no lugar do outro, quanto mais de lhe estender a mão e o ajudar a reerguer-se. No fim do dia, ou da semana, ainda vão à missa rezar e fazer a apologia do contrário do que são.

publicado às 16:55

Consciência de si

Desde muito cedo, quando este blog ainda mal tinha acabado de ser lançado, criei a tag “consciência de si” para classificar as temáticas de alguns dos primeiros posts que ia escrevendo. Volvidos mais de quatro anos sobre esses posts, a tag “consciência de si” é uma das mais usadas neste blog. Parece que quase tudo quanto escrevo acaba por levar esta etiqueta. Não se trata de uma questão estilística, no entanto.

 

Uma das coisas que mais me fascina na humanidade é a frequente falta evidente desta qualidade. Não temos consciência do que somos. Não conseguimos observar a nossa condição desde fora, desde longe. Fruto talvez da nossa ilimitada imaginação, somos capazes de criar qualquer mundo fantástico, qualquer história ficcional, de imaginarmos o que quer que queiramos ser, e, nesse processo, perdemos a noção do chão que pisamos, de onde estamos, do que somos e de para onde vamos.

 

Paralelamente, julgamo-nos sempre de outro modo diverso do que aos outros. Somos diferentes e especiais. O que se diz dos outros não se aplica à nossa pessoa. Porque a nossa pessoa é diferente. Porque a nossa pessoa é especial.

 

Escrevo estas palavras a propósito de umas declarações que li de Bolsonaro, o energúmeno que se prepara para ascender ao poder no Brasil. Disse ele, com todas as palavras, que “vamos fuzilar a pretalhada”, “acabar com os subsídios” [da pretalhada] e que vai imperar “a lei do lombo” [para a pretalhada].

 

Esqueçamos, por ora, para não arruinar a prosa, o caráter ofensivo e racista da palavra. O que mais me fascina no meio disto tudo é pensar que Bolsonaro vai ganhar as eleições num país onde a esmagadora maioria da população é mulata ou negra, o que me leva a admitir o óbvio: quando os negros ou mulatos ouvem a palavra “pretalhada”, devem pensar que é para os outros, para o amigo do lado. Deve haver sempre alguém com a tez mais escura, afinal. Os brasileiros acham que “pretalhada” é para os outros. Cada brasileiro deve considerar-se branco, caucasiano até. Os outros todos é que são negros!

 

Vem-me à memória aquela frase de John Steinbeck:

 

“O socialismo nunca formou raízes na América porque os pobres vêem-se a si próprios não como proletários explorados mas como milionários atravessando um período difícil.”

 

E vem-me também à memória aquele poema de Bertold Brecht:

 

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

 

O ser humano é assim mesmo. Nunca é connosco. É sempre com os outros. Quando reparamos que é connosco é sempre tarde demais. Não temos consciência do que somos.

publicado às 15:04

A verdade do avesso

O caso Raríssimas é um excelente exemplo de como a discussão pública em torno dos mais variados temas é um rodilho com excesso de infantilidade e falta de seriedade e de pragmatismo. O debate em torno da Raríssimas foi e continua a ser exatamente assim, misturando sentimentalismos mais ou menos hipócritas com julgamentos subjetivos e pouco contextualizados de modo a não se discutir nada do que seja essencial. E o que é essencial é este sistema de capitalismo de estado burguês.

 

Em primeiro lugar, sejamos sérios: qual é a novidade do caso Raríssimas? Quantos de nós já não ouvimos tantas histórias semelhantes de associações similares? É que, não sendo sérios connosco próprios, como podemos sê-lo na discussão do caso?

 

Em segundo lugar, quem se pode verdadeiramente espantar com este caso? Não foi o estado e muitos de nós individualmente que confiámos o nosso dinheiro nas mãos de uma associação que, em boa verdade, não tem — nem tem que ter, diga-se — nenhum tipo de responsabilização ou de supervisão da sua atividade? Do que é que esperávamos, afinal?

 

É que a questão é mesmo esta: a nossa sociedade escolhe confiar em privados, que não são eleitos nem se submetem a qualquer tipo de sufrágio ou de controlo, para servir o bem público. Eu sempre pensei que esta era a definição prática da palavra estado, mas parece que tenho andado enganado.

 

Estamos aqui à espera para ver se neste processo alguém será constituído arguido, se alguém será acusado e se alguém será condenado ­— são coisas diferentes. Preparem-se para uma boa espera. O problema em causa não tem, à partida, nada de ilegal: é, antes sim, moral.

 

Moral!

 

Mas nós confundimos tudo, confundem-nos, lançam-nos areia para os olhos, levam-nos nesta dança histérica durante uma ou duas semanas que é para que nada de substancial seja alterado e para nos darmos conta disto mesmo.

 

É que — reparem bem — se a Raríssimas é culpada de esbanjar o dinheiro da Segurança Social em vestidos e camarão, também a Sonae e a Jerónimo Martins são culpadas de acumularem os fabulosos lucros que todos os anos garantem lugares de destaque aos seus líderes nas listas de milionários deste mundo, porque esses mesmos lucros são obtidos às custas de operadores de caixa colocados pelo Centro de Emprego e pagos pela Segurança Social — será que há alguém que está a ler estas palavras que desconhece esta realidade?!

 

Mais: apesar das benesses que estas e outras empresas recebem da Segurança Social, que somos todos nós, não organizarão também os seus cocktails de camarão? Não comprarão também os seus carros de serviço de luxo? É que é a mesma coisa! Onde está a moralidade? Onde está a diferença? A diferença é que no caso da Raríssimas o povo tem pena dos meninos doentes, tem pena das vítimas. A diferença é o sentimento que salta à vista. O problema não é a Raríssimas. O problema é o sistema. O problema é o capitalismo.

 

Mas nós não somos sérios nem quando a coisa nos bate de frente. E mais, escolhemos ser infantis na forma como encaramos a coisa. Ao mesmo tempo que a maioria de nós vê no estado um demónio usurpador de liberdades — em muitos casos com fundadas razões — olhamos para os privados, nomeadamente nestas "instituições de solidariedade", como anjos puros sem qualquer tipo de interesse próprio. Parece que não crescemos desta infantilidade endémica e preferimos antes continuar a ver a verdade do avesso.

publicado às 18:51

Paternidade

O caminho de cada um de nós não se principia no dia em que nascemos. É anterior a esse momento. Nós somos os continuadores de algo maior que nos transcende. Não interessa se disso temos ou não consciência. É mesmo assim.

 

Muitos dos problemas das sociedades começam exatamente aqui, na falta de consciência disto mesmo que escrevo. Somos para aqui paridos, abandonados cada um à sua sorte, sem saber de onde vimos, quanto mais para onde vamos, sem termos consciência do que somos, sem ideia do que devemos ser, ambicionar ou construir.

 

Paternidade é, acima de tudo, isto que acabei de escrever: não deixar que os filhos cresçam órfãos de ideias, órfãos da sua própria história, como se fossem corpos inanimados de alma, enjeitados à sua própria sorte.

 

Dedico este texto ao meu Pai, por ser o melhor Pai que um homem pode ser.

Por me dizer:

 

“Filho, tu vens daqui.

Vês?

Percorremos este caminho que se estende nas nossas costas com as nossas dificuldades, com o nosso trabalho.

Vês?

Mas chegámos até aqui, onde estamos agora.

E os teus avós são estes. E os teus bisavós aqueles ali.

E estes aqui são os nossos valores: a solidariedade, o trabalho, a amizade, o caráter, a integridade, a honra.

É disto que nós somos feitos. É este o nosso património. Não são casas, nem contas, nem carros, nem cordões de ouro. É isto aqui — dizia ele, sentado ao meu lado, apontando para o peito —. É isto aqui.

É disto que tens que pôr em cada coisa que faças ao longo da tua vida.”

 

Amanhã é o Dia do Pai. Sem a celebração de um significado substantivo, transformador, para o conceito de paternidade, repete-se neste dia um ritual capitalista sem sentido, de consumo frívolo, de celebração de coisa nenhuma. Os filhos oferecem presentes aos pais para expressar a sua gratidão por simplesmente terem sido gerados, por terem sido postos ao mundo.

 

Não, Pai: eu agradeço-te pelo que me deste e pelo que ainda hoje me dás, pelo que é invisível mas ao mesmo tempo tão essencial porque me dá força e sentido para eu ser quem sou e o que almejo ser. Agradeço-te, Pai, por não ser hoje um indigente no campo da família, dos valores ou as ideias, por ter uma estrutura que me suporta a todo o instante, que toma parte e que é parte de mim em todas as minhas escolhas. Agradeço-te, Pai, por me teres dado uma família. E agradeço-te, também, por não ter começado do zero, por poder ser continuação, como se o meu corpo e mente transportassem o que é teu e o que é da Mãe, o que é dos avós e dos bisavós.

 

A nossa existência, Pai, não é em vão.

 

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publicado às 23:33

Os eventos do fim-de-semana

Depois de um auspicioso princípio — com a vitória do Brexit —, este fim-de-semana que passou acabou de uma forma que deixou um travo amargo na minha boca. Deitei-me tarde no domingo e adormeci com a forte convicção de que, em Espanha, o Unidos Podemos cresceria para se tornar na segunda força política.

 

Havia uma esperança consubstanciada de que a coligação entre Podemos e Esquerda Unida seria capaz de coletar pequenas percentagens por toda a Espanha e transformá-las em lugares no parlamento. A realidade, todavia, não deixou de ser cruel, nem que por um dia apenas, e acordei para ela, na segunda-feira.

 

Em Espanha, podemos dizê-lo para abreviar, ficou tudo mais ou menos na mesma, que é o mesmo que dizer que ficou tudo péssimo. Nenhuma consequência minimamente visível foi trazida a qualquer uma das forças partidárias, talvez excetuando aquela abjeção a que chamam de Ciudadanos que levou uma forte machadada em votos. No mais, tudo sensivelmente igual.

 

O problema está não no que aconteceu mas no que não aconteceu: o PSOE não foi severamente penalizado e o Unidos Podemos não cresceu. Este singular facto demonstra cabalmente que o povo espanhol, pelo menos o que está mais à esquerda no espectro político, não está virado para grandes mudanças de paradigma. Quer as coisas como estão e como sempre estiveram. Neste particular, é risível quando nos chamam, a nós, portugueses, o povo dos “brandos costumes”.

 

Pelo contrário, e a concorrer com o anterior, o PP, com seu mentecapto líder, viu a sua votação reforçada. Isto não é algo de somenos sobretudo após toda a panóplia dos recentes escândalos envolvendo os ministros do governo espanhol de gestão.

 

Esta sequência de eventos faz-me pensar que o que aquilo que o povo realmente quer é o Bloco Central. Aqui, em Portugal, também o queriam e ficaram muito revoltados quando tal não aconteceu. Chamaram Geringonça e outros nomes feios ao que veio a acontecer. Mas reforço: se a Geringonça fosse uma perspetiva clara e viável antes das eleições, acredito que o povo ter-se-ia expressado de forma muito diferente.

 

Observação: ainda sobre o Brexit, gostava de perceber o que leva um português a defender a União Europeia quando, há dias, ouviu o presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, colocar de lado sanções à França dizendo “A França é a França”, ao mesmo tempo que Portugal é diariamente ameaçado com essas mesmas sanções.

 

Por cá, ocorreu a convenção do Bloco de Esquerda. A vaia que dedicaram à delegação do Syriza é triste mas expectável, em certa medida. Começando pelo fim, é expectável porque traduz a reação mais natural do Bloco à camisa de forças em que se meteu quando apoiou cegamente aquele partido grego e a ele se colou enquanto foi politicamente interessante. Agora, perante a evidência da realidade política, o Bloco sentiu necessidade de se descolar do Syriza e, diga-se, fê-lo da pior das formas. E é por isso mesmo que é triste: o Bloco mostrou aqui a sua completa e endémica imaturidade política, não obstante os anos que já leva enquanto partido.

 

Destaco ainda mais uma bomba mediática que, como não poderia deixar de ser — estamos a falar do Bloco de Esquerda —, tinha que ser lançada: a questão do referendo à União Europeia ou ao Tratado Orçamental. Esta bomba, completamente infundada do ponto de vista constitucional e desmontada por António Filipe, deputado comunista, para além de visar o mediatismo, como é timbre característico do Bloco, é mais um absurdo ideológico. Falamos de um partido que nunca colocou em causa a permanência de Portugal no Euro, quanto mais na União Europeia! Não há muito mais a dizer sobre o assunto: o Bloco cavalga a onda do mediatismo, seja ela qual for. Neste momento, essa onda chama-se Brexit.

publicado às 09:24

E, portanto, prosseguimos vendo futebol.

Por vezes, parece que andamos todos coletivamente à procura de pretextos que nos distraiam da nossa vida, como se esta fosse — e seguramente será em muitos casos — verdadeiramente insuportável. Agora temos sensivelmente vinte dias de futebol, de seleção nacional, pela frente. Não se fala noutra coisa, nas televisões, nas rádios e nos jornais. Não há mais vida para além do futebol. Se não forem jogos em direto, são análises aos mesmos ou antevisões aos que se seguem. Ou, então, comentadores a comentarem-se a si próprios. Fala-se e escreve-se sobre literalmente nada.

 

Antes da seleção foram outras realidades, outros acontecimentos, que preencheram o espaço mediático. Depois do futebol virão outros pretextos, talvez mais futebol que parece ser de uma qualidade inesgotável. Em cada um deles despejamos todas as nossas angústias e cada uma das nossas esperanças.

 

Não é compreensível. É impossível explicar ou compreender este processo de transferência da nossa vida para uma realização artificial e completamente externa como é o futebol. Ainda se o futebol fosse uma manifestação coletiva desportiva da nação, então poder-se-ia compreender o fenómeno na ótica de um espírito nacionalista ferrenho. Mas o futebol é uma manifestação profundamente corrompida pelo sistema capitalista. Os jogadores são colocados sobretudo em função do potencial negócio que possam gerar mais do que por qualquer outra coisa. Nem a nacionalidade é hoje um obstáculo. Esqueçam a bandeira e o hino. Tudo revolve em torno do dinheiro. Todavia, o povo acompanha o fenómeno de uma forma muito pouco saudável, alimentado por uma comunicação social que, nestes momentos, revela a sua verdadeira face decadente.

 

Os resultados do futebol são vividos, portanto, em extremos, numa espécie de transtorno bipolar. As vitórias são festejadas com histeria e delírio. As derrotas são recebidas com depressão profunda. Nada disto parece fazer muito sentido. Mas no final do dia, configura-se muito mais fácil ir para a cama e adormecer a pensar nos golos da seleção ou nas opções do selecionador para o próximo jogo, do que pensar no que realmente é necessário enfrentar no dia seguinte, na vida real.

 

Por ventura, a explicação reside aqui: sentimo-nos tão amarrados, tão presos, tão condenados, à vida que levamos, sentimos que não temos poder para fazer o que quer que seja, que despejar a adrenalina em algo tão fútil quanto o futebol parece ser a única coisa razoável a fazer. Isto é o resultado de vivermos voltados para o nosso próprio umbigo, de sermos criados dessa forma, individualista, egoísta e seguidista, de não nos apoiarmos solidariamente, comunitariamente, uns nos outros. Porque o poder para fazermos algo acerca das nossas vidas reside em nós próprios tanto quanto está nos que nos rodeiam. Como estamos tão formatados desta forma individualista, esta realidade está vedada aos nossos olhos. E, portanto, prosseguimos vendo futebol.

publicado às 20:23

As mães de hoje em dia são ridículas

As mães de hoje em dia são ridículas. É uma generalização, bem o sei. É algo abundantemente injusto de se dizer, também tenho consciência disso. E, todavia, é preciso que se diga! É preciso que se diga a plenos pulmões!

 

Peço encarecidamente ao leitor, portanto, que não disperse já, que continue comigo, nestas linhas, um pouco mais.

 

Nem todas as mães são ridículas mas, hoje em dia, uma boa parte delas é. O que lhes atribui a classificação de ridículo é, com efeito, o que lhes atribui a condição de mãe. O ridículo nota-se na forma como tratam os filhos. Observem um pouco. Prestem atenção. Provavelmente uma grande parte de vós sabe perfeitamente ao que me refiro. As mães contemporâneas tratam os filhos como se eles fossem bonecos e como se, elas próprias, fossem meninas com idade para brincar com bonecos.

 

Para estas mães, os seus filhos são muito literalmente o centro do universo e estes crescem e desenvolvem-se a acreditar piamente nisso mesmo. Esta crença interfere decisivamente no desenvolvimento das amizades e do espírito de solidariedade e de camaradagem entre pares. Mais: esta crença afeta seriamente a construção de uma certa ideia de igualdade. Questionamo-nos frequentemente sobre a razão de ser do crescente individualismo das sociedades ocidentais. Questionamo-nos frequentemente sobre a razão de ser desta sociedade competitiva e desumana em que vivemos. Por ventura, a resposta achar-se-á aqui e não noutro lugar.

 

Quando estas crianças, enfim, descobrem não ser o centro do universo como lhes prometeram durante toda a sua infância, que não são uma espécie de diamentes que merecem constante polimento, ficam muito admiradas e deprimidas com o mundo. Todavia, este despertar para o mundo real será sempre parcial. Subsistirá sempre uma certa forma de ver a sociedade, individual, egoísta, uma forma de avaliar o outro e os outros por contraponto ao seu próprio interesse. Estas são as sementes nefastas que ficam para erigir a sociedade destas crianças feitas, inevitavelmente, homens. Este é o problema.

 

Há quem diga que esta forma de criar e de educar das mães contemporâneas advém do facto destas atingirem a maternidade muito mais tarde nas suas vidas. Quando no passado as mulheres eram mães antes dos vinte, agora são-no mais perto dos quarenta. É talvez um sentimento de singularidade que supera qualquer outro no nascimento do filho que faz com que a mãe adquira traços de superproteção. Pode ser que muitas das mães contemporâneas vejam nos seus filhos uma possibilidade de realização pessoal algo doentia que talvez não existisse no passado. Pode ser isso ou pode não ser nada disto.

 

Há uma outra possibilidade: podem ser os pais. Há uma passagem em A Leste do Paraíso que me pôs a pensar.

 

Adam aquiesceu e os dois rapazes saíram a correr. Samuel seguiu-os com o olhar.

— Parecem ter mais de onze anos — disse ele. — Se bem me recordo, os meus filhos, aos onze anos, eram mais traquinas. Estes dois parecem adultos.

— A sério? — perguntou Adam.

— Acho que sei porque é — disse Lee. — É que não há mulher nenhuma em casa para gostar das crianças. Não me parece que os homens apreciem muito as crianças, e por isso estes rapazes nunca perceberam que vantagem tinham em se portarem como tal, pois nada tinham a ganhar com isso. Gostava de saber se isto é bom ou mau.

in A Leste do Paraíso, John Steinbeck

 

 

Realmente, parece que os pais contemporâneos deixaram um pouco a sua condição de pais. Parece que faz falta às crianças de hoje em dia terem aquela figura de alguma severidade e intransigência nas suas vidas, para conhecerem limites, para respeitarem regras, para com elas formarem o seu caráter.

 

Acaso o problema não estará no facto das mães de hoje em dia serem ridículas. Se calhar sempre o foram em dosagem possivelmente diferente. Por ventura, o problema estará nos pais que, hoje em dia, não sabem qual o seu papel, desempenhando muitas vezes as funções de uma espécie de segunda mãe em vez das de um pai.

publicado às 11:45

Isto muda devagar

“Tu, que és professor, tens que ajudar a mudar isto”.

“Mudar? A que te referes?”

“Esta juventude... Só se fores tu a incutir-lhes os bons valores.”

“Faço o que posso.”

“Só se fores tu... para isto ir mudando... devagarinho...”

“Mas sabes?”

“O quê?”

“Isto dos bons valores não é coisa que se ensine.”

“Explica?”

“Ajuda, claro, mas não é coisa que se ensine. Quer dizer: com o Português e a Matemática.”

“Hum?”

“O sentido de solidariedade, de justiça, de igualdade, vêm de cá de dentro, daqui... do coração. Ou os tens ou não os tens.”

“Mas ajuda saber umas coisas...”

“Claro! Mas olha: o vinte e cinco de abril de setenta e quatro parece que foi ontem, mas já passaram quarenta e dois anos!”

“É verdade.”

“E nestes anos o que aconteceu? Acaso consideras que esta nova geração, a mais e melhor formada de todas as gerações, é mais solidária, mais justa e mais igualitária?”

“Não me parece.”

“A mim também não.”

“O que fazer, então?”

“Continuarei a fazer o meu trabalho, a minha parte.”

“Isto muda devagar.”

“Devagarinho.”

“Tão devagar que às vezes até parece que anda para trás.”

“Mas não anda.”

“Não, não anda.”

 

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publicado às 16:43

Os fantasmas de Kafka revisitados à luz dos dias de hoje

Em 1925 é editado pela primeira vez o romance O Processo (Der Process) do autor checo Franz Kafka, no ano imediatamente seguinte ao da sua morte. O livro, que teria sido escrito entre 1914 e 1915, constitui uma das obras primas de Kafka e reflete a sua obsessão com a máquina burocrática dos estados, monstros que oprimem a liberdade do cidadão anónimo e esmagam a sua individualidade.

 

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Neste sentido, não é surpreendente que o personagem principal seja designado apenas por Joseph K., ou seja, por um nome próprio, Joseph — um nome, aliás, extraordinariamente comum no mundo cristão —, e uma inicial K. como indicadora de apelido, claramente subvalorizando-o desta forma. Para o autor, o personagem principal, que muitos consideram uma personificação do próprio Kafka, é importante sobretudo por constituir-se como um representante do cidadão anónimo e não pelas suas características particulares.

 

http://s10.postimg.org/a8mcjk8u1/RAFH.jpg

Kafka, que nasceu numa parte do império austro-húngaro, viveu durante o seu auge e assistiu à sua dissolução no pós primeira grande guerra, conta a história da perseguição surreal a um trabalhador de um banco, o tal Joseph K., que se vê, de um momento para o outro, alvo de um processo, desconhecendo por completo as razões para tal. Joseph K. luta desesperadamente e cegamente — pois tudo o que o rodeia escapa à sua compreensão e controlo — contra um autoritarismo burocrático que parece amordaçá-lo cada vez mais, envolvendo-o numa teia artificial de culpa que, qual areia movediça, por mais que resista, acaba por levar a melhor sobre ele, resultando ultimamente na sua execução.

 

Recentemente, surpreendeu-me ler semelhantes preocupações numa passagem de A Leste do Paraíso (East of Eden), de John Steinbeck, um autor que muito estimo:

 

A nossa espécie é a única criadora e dispõe de uma só faculdade criadora: o espírito individual do homem. Dois homens nunca criaram nada. Não existe colaboração eficaz em música, em poesia, nas matemáticas, na filosofia. Só depois de se ter dado o milagre da criação é que o grupo o pode explorar. O grupo nunca inventa nada. O bem mais precioso é o cérebro isolado do homem.

(...)

Eis o que penso: o espírito livre e curioso do homem é o que de mais valioso há no mundo. E por isto me baterei: a liberdade para o espírito de tomar a direção que lhe apetecer. E contra isto me baterei: qualquer ideia, religião ou governo que limitar ou destruir a noção de individualidade.

— John Steinbeck, A Leste do Paraíso

 

Quem tiver a curiosidade de ler a passagem completa percebe que estas palavras surgem no contexto dos princípios da Guerra Fria e expressam precisamente a mesma preocupação obsessiva de Kafka para com os estados burocráticos esmagadores das individualidades. Era uma altura de choque civilizacional, da ascensão de medos, do medo pelo desconhecido. Não deixa de ser, todavia, surpreendente. É absolutamente compreensível, bem entendido, mas é, para mim, surpreendente.

 

Surpreende-me ler estas preocupações escritas desta forma pelo autor de As Vinhas da Ira, entre outras magníficas obras. Surpreende-me que a valorização dos sentidos de camaradagem e de fraternidade, tão engradecidos nas suas primeiras obras, sejam tão negligenciados, tão colocados de lado, ao longo das linhas supracitadas, no que à elevação do indivíduo diz respeito. É que a passagem que citei é um bom exemplo de como podemos dizer algo de genuinamente verdadeiro — quem não concorda que o coletivo tem o potencial de esmagar as individualidades? — de uma forma desprovida de um mínimo bom senso.

 

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Importa sublinhar, contudo, o facto do primeiro parágrafo da citação encontrar-se carregado de conclusões falsas. Podemo-lo comprovar facilmente. A ciência, em geral, nunca evoluiu tanto como nos dias de hoje, suportada numa colaboração cada vez mais ampla e generalizada de cientistas de diversas áreas. É, portanto, falso dizer-se o contrário. É claro que tudo tem origem, analisando de forma sintética, num só indivíduo, não em dois ou três, mas num apenas. A questão não está aí, mas antes em saber se essa ação individual de descoberta, que Steinbeck qualifica como “miraculosa”, poderia ocorrer por si só, sem o contacto com os outros que o rodeiam. É que o milagre está, em minha opinião, precisamente aí, nos outros, e não atrás, onde é mais óbvio, no indivíduo descobridor. Essa é a razão de ser do facto desta era contemporânea colocar-se a anos luz relativamente a todas as outras no que diz respeito a inovação científica e, até, artística. Os cientistas e os artistas não são mais os bichos isolados da Idade Média que faziam tudo por tudo para esconder a sua arte e as suas descobertas até que estivessem prontas e que delas pudessem extrair algum sustento. Pelo contrário, são antes a face visível de um todo criativo.

 

Não obstante o texto já ir longo, ainda não cheguei ao ponto que me fez principiar a sua escrita. É que há nestas preocupações com as máquinas burocráticas, tanto as de Kafka como as de Steinbeck, nas quais reconheço tanto de legitimidade quanto de transversalidade à generalidade das populações, uma ideia subliminar de que se trata de uma condição dos estados, como que um sintoma de uma doença de autoritarismo e controlo estatal, própria de governos com poder a mais, de sistemas de governação perversos e dominadores. Ainda hoje, parece-me transparente que esta ideia influencia determinantemente as opções democráticas das populações, condicionando as suas escolhas no sentido de limitação do poder aos estados e aos governos.

 

Ora, é contra esta ideia subliminar que me oponho. É contra esta ideia omnipresente que escrevo este texto.

 

Há uns tempos encomendei uma cozinha a uma grande empresa multinacional. Encomendei cada peça e a respetiva montagem. Os custos foram pagos previamente e na sua totalidade e ficou combinado a obra ficar pronta ainda antes da Páscoa. Pois acontece que faltou uma peça, o acabamento foi sendo sucessivamente adiado, foram perdidas manhãs de trabalho da minha parte em intermináveis esperas para que as equipas viessem fazer o serviço, serviço esse que ficou concluído apenas a meio desta semana que agora terminou. Não houve direito a nenhuma compensação pelo atraso. Todas as reclamações foram recebidas com superior escárnio e desinteresse: afinal, a grande companhia nada tinha que ver com a empresa de montagem subcontratada para o efeito...

 

Serve portanto este relato verídico pessoal como exemplo para o que deixámos que a nossa sociedade se tornasse, governados pela tal ideia subliminar de Kafka e de Steinbeck. É que, cegados por essa ideia, horrorizados com a possibilidade de que os estados se embriagassem de poder, entregámo-lo, ao poder, numa salva de prata, aos interesses privados que cresceram e proliferaram como grandes companhias internacionais. O poder reside por completo nas suas mãos. Encontra-se bem plasmado nos contratos de prestações de serviços que assinamos, seja para encomendar uma cozinha, serviço de televisão e internet, ou qualquer outra coisa. Basta proceder à sua leitura. Todos os interesses dos capitalistas, ao contrário dos nossos, encontram-se bem salvaguardados.

 

E em caso de conflito, e aqui reside a parte mais interessante, todos os fantasmas de Kafka são ressuscitados mais autênticos e concretos do que nunca: trata-se do indivíduo isolado contra a máquina burocrática, não a do estado, mas a das grandes corporações, com as suas equipas de advogados dedicadas, todo um estado a legislar em seu benefício, e todo um sistema judicial ajuizando, com jurisprudência adequada, em seu favor.

 

Ao crescer, as grandes corporações foram multiplicando o seu poder e tomaram o estado democrático para si próprias, detendo-o amarrado a uma trela curta segura pelo seu firme punho fechado. Os fantasmas de Kafka são, afinal, muito mais reais assim, em estados fracos manietados pelos interesses económicos burgueses, no que noutra configuração qualquer. A máquina burocrática esmagadora da individualidade do cidadão, a besta terrível que devora as liberdades individuais, nunca conheceu tamanho poder pois age sob a capa da democracia, escondendo-se atrás daquela ideia subliminar do “papão estatal”.

 

Com isto não advogo a tese de que a máquina burocrática estatal é melhor do que a máquina burocrática corporativa. Bem vistas as coisas, até poderão ser consideradas faces da mesma moeda. A diferença é outra: a primeira é subordinada ao nosso voto, à nossa escolha democrática. A segunda, não. A segunda é uma forma de fascismo não declarado.

publicado às 13:50

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