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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

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Desmontando a lavagem cerebral operada no Ocidente a respeito da Venezuela

Hoje apetece-me escrever sobre a Venezuela. O pretexto é a fotografia que se segue.

 

http://venezuelanalysis.com/files/imagecache/images_set/images/2016/04/14600624444589.jpg

 

A fotografia acima foi apresentada como evidência da crise económica da Venezuela e com a escassez aguda de bens. Quando olhamos para a fotografia imediatamente identificamo-la — qual condicionamento pavloviano! — com a crise da Venezuela.

 

Acontece que foi revelado, creio que no início deste mês, que esta fotografia foi na realidade tirada num supermercado de Nova Iorque — sim: a Nova Iorque dos Estados Unidos da América! — pela fotógrafa Allison Joyce da agência Reuters, em vésperas da chegada do furacão Irene em 2011.

 

É absolutamente extraordinário constatar os meios de que o Capital faz uso para a difamação e a desestabilização das economias que lhe fazem frente. Não há limites para a falta de decência!

 

O único pecado do regime bolivariano da Venezuela não é a falta de liberdade ou democracia — de facto, trata-se simplesmente do regime mais democraticamente sufragado de sempre daquele país. O único pecado, como dizia, foi ter posto um fim à oligarquia estrangeira que explorava os seus recursos naturais de forma praticamente gratuita e, portanto, imoral.

 

O tratamento mediático internacional a que é votada a Venezuela é genericamente desconcertante mas já é o tradicional em casos do género. A outra parte do plano do Capital para derrotar a Venezuela reside no ataque às matérias primas, fazendo diminuir os seus preços para valores nunca antes vistos. Trata-se de guerra económica pura e dura.

 

Entretanto, ficam para a História conquistas inapagáveis: a irradicação da miséria e da fome, a potenciação do setor primário, em particular a produção de milho, o investimento substancial na educação, na cultura e na saúde, destacando-se a construção de inúmeras escolas e de hospitais, incluindo centros de investigação médicos na área da oncologia, e a constituição de orquestras e investimento em instrumentos musicais e na música clássica. Isto é que é política e economia! O resto... o resto é oratória oca!

publicado às 22:43

Dizendo as coisas como elas são, para além de todo o preconceito

https://s3-us-west-2.amazonaws.com/nationaljournal/double-dippers/img/Sanders.png

 

Everything we feared about communism — that we would lose our houses, savings, and be forced to labor eternally for meager wages with no voice in the system — has come true under capitalism.

 

Tudo aquilo que temíamos no comunismo — perder nossas casas e posses, nossas economias, ter de trabalhar duro por um salário miserável sem voz no sistema — se realizou graças ao capitalismo.

 

— Bernie Sanders, candidato pelo Partido Democrata às primárias nos Estados Unidos da América

publicado às 19:41

A hipocrisia endémica

Para mim é sempre fascinante observar a hipocrisia latente ao comportamento de tantos e tantos ditos liberais, acérrimos defensores do mercado livre. Escrevo estas palavras a propósito do atual diferendo Rui Moreira - TAP/António Costa, que é uma espécie de constructo mediático destinado, quem sabe, a catapultar, a prazo, a figura de Rui Moreira para outros voos políticos.

 

O diferendo em questão é um som de fundo que, por se prolongar há um par de semanas, começa a tornar-se desagradável. Não percebo o que institucionalmente o Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, tem que ver com a gestão que é feita do Aeroporto de Pedras Rubras ou sequer da TAP. Creio que institucionalmente não existe qualquer relação. A sua posição é, todavia, entendível.

 

É evidente que o tipo de gestão que é feita do aeroporto, seja ela pública ou privada, afeta diretamente a coisa pública, particularmente a coisa pública da região norte. Neste contexto, a estratégia da companhia aérea atualmente mais relevante para a atividade do aeroporto, a TAP, que passa por suprimir diversos voos, tem obrigatoriamente que ser vista com olhos pejados de grave preocupação. E é de todo em todo natural que essa preocupação seja vocalizada na pessoa do presidente da autarquia mais relevante da região norte.

 

Note-se que reside exatamente aqui, no parágrafo anterior, a argumentação de todos os que se opõem à privatização de aeroportos e companhias aéreas.

 

O que não é natural e não é de forma alguma entendível é que alguém que se fez por ser um acérrimo defensor da economia de mercado livre, alguém que se diz um liberal moderno, alguém que afirmava assertivamente categóricas sentenças como que o mercado se devia regular a ele próprio e que o estado devia deixá-lo ser livre, e, neste contexto, detendo já o atual cargo, nunca se opôs à privatização da TAP, venha agora, à primeira decisão estratégica da companhia privatizada, mostrar-se contra.

 

De repente, parece que há uma quantidade de pessoas, inocentes puros ou puros malfeitores, que esperava que a privatização da TAP ia deixar tudo na mesma não beliscando nunca o interesse público nacional e regional. Repetem suspeitamente este mesmo género de atitudes, privatização após privatização, agarrados a cadernos de encargos detalhados, perfeitos libretos de óperas bufas, fazendo crer ao povo que o privado é bondoso e altruísta, que se preocupa muito com tudo e todos e, no fim de contas, ainda produz lucros miraculosos.

 

Quando o conto de fadas se desfaz inevitavelmente, aparecem logo muito indignados: “Como é que isto foi acontecer?!”, perguntam, de olhos arregalados e perdidos e o povo, como sempre, desculpa-os e acolhe-os no seu ombro.

 

Os liberais padecem desta hipocrisia endémica: no que lhes diz estritamente respeito são socialistas.

publicado às 11:28

Cinco dias e cinco noites

Deixei passar cinco dias e cinco noites sem escrever aqui no blog. De seguida, deixo algumas notas sobre o que tem acontecido nestes dias.

 

O Partido Comunista tem sido atacado de todos os lados e tem sido alvo de todo o género de argumentação muita dela espumada daquele preconceito secular que se sustenta na inveja e na ignorância. Todos procuram navegar na crista da onda que foi a derrota nas presidenciais. Todos procuram ser os primeiros a anunciar o ambicionado fim do PCP e do movimento comunista em Portugal. De notar, neste particular, a preponderância e o protagonismo de muitas partes que se dizem de esquerda.

 

É interessante notar que o Partido Comunista tem tido nestes dias o espaço mediático que nunca antes teve, ocupando espaço opinativo anteriormente vedado. Servem para este propósito todo e qualquer pretexto, inclusivamente a infeliz adjetivação de Jerónimo, “engraçadinha”, que rapidamente assumiu proporções surreais. Se o que disse Jerónimo não parece interessar a ninguém, muito menos interessará o que Jerónimo realmente terá procurado dizer e sobre isto poder-se-ia discorrer muitíssimo.

 

Mas a contradição reside aqui mesmo. O candidato apoiado pelo Partido Comunista Português obteve escassos quatro pontos percentuais de votação relativa mas, ainda assim, revolvem-se os espectros da comunicação social agoirando a morte do comunismo, apressam os comentários, remoem-se os preconceitos e as difamações fáceis, desmultiplicam-se os ataques. Creio que o Partido Comunista é o único partido português que, com escassos quatro pontos percentuais de votação, assusta e apoquenta tantas e tantas forças contra si.

 

Ao mesmo tempo assistimos serenamente ao processo autodestrutivo deste governo cuja atuação é desconcertante e desprovida de qualquer tipo de estratégia inteligível. A Europa tem um partido bem definido, toma partido e começa agora a falar mais grosso do alto da prepotência do capital que a criou.

 

O governo começa a deixar cair medidas orçamentais, uma atrás da outra, escudando-se na sua própria covardia, isolando-se cada vez mais, encurralado entre a Europa e a esquerda, ambas com acordos na mão. Mas mais relevante é este governo ver-se popularmente diminuído e deslegitimado, facto resultante das últimas eleições e que, ultimamente, traça o seu fim próximo.

 

Passo Coelho, por seu turno, continua a comportar-se como se ainda fosse Primeiro-ministro. O seu discurso é impermeável de realidade e de responsabilidade, de memória ou decência. Fala qual personalidade carregada de virtudes e credora da admiração de todos. Nota-se, contudo, que a atitude e o discurso não são por acaso. Ouvir o povo referir-se a Pedro Passos Coelho chega a ser embaraçoso. O povo prepara-se para empossar o seu próprio carrasco uma vez mais forçando-o a terminar o serviço encetado há mais de quatro anos.

 

O povo é soberano nas suas escolhas mas não é por isso que as suas escolhas deixam de refletir a sua própria natureza, nem o inibem das suas consequências e responsabilidades. E o tempo em que tanto umas como outras serão colhidas como feixes de trigo tenro está para chegar.

publicado às 17:12

A propósito do programa para a década

 

“Um socialista é mais do que nunca um charlatão social que quer, usando um conjunto de panaceias e todos os tipos de remendos, suprimir as misérias sociais, sem fazer o menor dano ao capital e ao lucro.”

— Friedrich Engels

 

Encontrei esta citação atribuída a Friedrich Engels, um dos pais do Marxismo, proferida em pleno século dezanove, e achei-a extraordinariamente pertinente pois qualifica, com aguçada capacidade de síntese, o que em bom rigor as propostas do centro-esquerda europeu oferecem na atualidade e que, na verdade, sempre ofereceram: a ilusão de que as coisas podem ser alteradas sem que nada de substantivo se modifique no que aos alicerces da sociedade diz respeito. É tão brilhante que vou relê-la uma vez mais.

 

O programa para a década do PS é, quanto muito, exatamente isso, uma redistribuição das parcas migalhas que já cabem hoje às classes trabalhadoras, enquanto que o pão continua, por inteiro, nas mãos das classes dominantes.

publicado às 09:16

Porquê o Socialismo, por Albert Einstein

“Estou convencido de que só há uma forma de eliminar estes sérios males [do capitalismo], nomeadamente através da constituição de uma economia socialista, acompanhada por um sistema educativo orientado para objectivos sociais. Nesta economia, os meios de produção seriam detidos pela própria sociedade e seriam utilizados de forma planeada. Uma economia planeada, que adeque a produção às necessidades da comunidade, distribuiria o trabalho a ser feito entre aqueles que pudessem trabalhar e garantiria o sustento a todos os homens, mulheres e crianças. A educação do indivíduo, além de promover as suas próprias capacidades inatas, tentaria desenvolver nele um sentido de responsabilidade pelo seu semelhante em vez da glorificação do poder e do sucesso na nossa atual sociedade.”

 

— Albert Einstein, artigo de 1949 da Monthly Review. O texto integral e original poderá ser consultado aqui.

publicado às 17:05

A natureza do capitalismo aos olhos dos doentes hepáticos

O capitalismo é uma forma de governação económico-social extraordinariamente bem sucedida no que à implantação e à aceitação deste sistema diz respeito. Parte dessa aceitação se deve, especialmente, ao modo como o sistema é percecionado pelas massas populares. Com efeito, mais do que um sistema capaz de proceder eficazmente a uma manutenção do poder económico nas mãos dos monopolistas de uma forma limpa, transparente e aparentemente justa, mais do que isso, o sistema nutre de uma imagem tão quente e acolhedora quanto possível junto das classes mais desfavorecidas pelo próprio jogo económico.

 

Steinbeck, o escritor norte americano, dizia, curiosamente, o seguinte:

 

“Socialism never took root in America because the poor see themselves not as an exploited proletariat but as temporarily embarrassed millionaires.”

 

Traduzindo aproximadamente:

 

“O socialismo nunca formou raízes na América porque os pobres vêem-se a si próprios não como proletários explorados mas como milionários atravessando um período difícil.”

 

Acho que Steinbeck acertou no alvo em cheio, não apenas do ponto de vista da situação americana mas também relativamente ao caso geral. O capitalismo tem exatamente isto: a capacidade de encher de sonhos a todos por mais irrealizáveis e improváveis que estes possam ser. E isto, sem qualquer laivo de ironia, é maravilhoso.

 

É, contudo, nos momentos mais difíceis, naqueles momentos quando acordamos do sonho, em que vemos a verdadeira face da sereia que nos encantou, a verdadeira natureza do capitalismo.

 

Os doentes portugueses com Hepatite C estão a vê-la agora, vítimas de um sistema que não se inibe de negociar, de produzir lucros, de fazer dinheiro, com o que quer que seja, ultrapassando todos os limites do que é razoável do ponto de vista humano. Até mesmo com a saúde das pessoas. É isto o capitalismo. E por cada pessoa doente que morre por não lhe chegar um medicamento a tempo, aumentam as margens de lucro dos milionários das farmaceuticas.

 

É isto o capitalismo.

 

publicado às 11:55

A história é contada pelos vencedores das guerras

Houve um tempo em que tive um professor genial. Uma vez, imediatamente antes de uma aula principiar, trocámos dois dedos de conversa sobre literatura. Eu falava-lhe de um romance histórico de cuja leitura havia considerado assaz interessante, ao que o professor retorquiu dizendo que não lidava bem com obras que misturavam ficção com realidade. A minha resposta, contrariamente ao que é comum, escapou-se célere pela boca fora, quase não passando pelo sítio onde é verdadeiramente importante que passe: o cérebro. Disse-lhe, então, que toda a “realidade” é, ela própria, uma ficção. Uma história contada pela boca daqueles que vencem os conflitos e as guerras.

 

Tem sido sempre assim. Olhando em retrospetiva pelo lençol de factos que conhecemos da humanidade comprovamos, facilmente, que sabemos muito pouco das nações vencidas, dos povos dominados e subjugados. E que mesmo esses povos que ainda subsistem, residuais, sabem muito pouco de si próprios. Uma vez vencidas as guerras, o lado que se sobrepõe trata de encetar um processo de afirmação sobre os derrotados que passa por uma propaganda de demonização dos mesmos, com vista à dominação total de consciências. Foi assim com os grandes impérios da antiguidade que, já naqueles tempos, procederam a massivos processos de aculturação das regiões dominadas. Foi assim com boa parte das religiões dominantes que se apropriaram de alguns elementos das anteriores, adaptando-os, e achincalharam outros. Quem não reconhece na figura do diabo do cristianismo vários elementos das divindades pagãs? Os cascos e os chifres de Baco, o tridente de Neptuno, as características de Vulcano ou Plutão? Foi sempre assim. E é assim com os impérios contemporâneos também.

 

Tornámo-nos mais sofisticados. A passagem dos tempos trouxe-nos isso. Criámos a psicologia e do seu ventre nasceu, quase de imediato, o comportamentalismo (behaviorismo). Este segmento da psicologia trouxe-nos uma compreensão mais fina do comportamento não apenas do indivíduo per si mas do indivíduo no contexto social. O comportamentalismo iluminou-nos o entendimento do comportamento das massas e as máquinas de propaganda contemporâneas bebem desse conhecimento como elixir mágico que lhes permite incutir subliminarmente os pensamentos precisos que pretendem e extrair as reações esperadas. Fazem uso também das ferramentas de comunicação que foram desenvolvidas e que tornam capaz uma disseminação rápida e eficaz da mensagem, como nunca havia sido possível. Os povos do mundo contemporâneo constituem-se como verdadeiros ratos de laboratório destas ciências.

 

Surgiu-me esta breve reflexão a propósito do aniversário da queda do muro de Berlim. Não é surpreendente verificar o tratamento jornalístico que é dado ao acontecimento, às suas repercussões e implicações, não somente em termos de geopolítica, mas sobretudo no que à evolução política e social, que tem existido em cada país desde então, diz respeito. Não pensem que me coloco a favor dos regimes de leste que se fecharam atrás daquela “cortina de ferro” simbolizada naquele muro. A sua queda foi, bem entendido, um momento marcante da história do Homem e deve ser recordada como tal. Não obstante, seria importante que a reflexão deixasse, de uma vez por todas, o seu tom marcadamente vexatório e se tornasse um pouco mais ponderada e inteligente. Porque aqueles regimes tinham também as suas virtudes para lá do autoritarismo que nos enubla a visão. Gostava que se falasse um pouco mais delas e não apenas dos pecados cometidos que já sabemos de cor. Gostava que se falasse um pouco da educação e da formação; da irradicação da fome, da pobreza e da mendicidade; da assistência médica e dos recordes muito positivos atingidos nos números da esperança média de vida e na mortalidade infantil; mas também que se referissem os períodos de efervescência na arte e na cultura, em geral, disseminadas por toda a população e não disponíveis somente para as elites. Gostava que se discutisse isso e muito mais com inteligência e bom senso. Porque repito: ninguém quer o pior daquele mundo. Mas acontece que o melhor daquele mundo ainda não foi sequer aproximado pelo melhor que este mundo em que vivemos nos oferece. E a falta desse contraponto, que foi destruído com a destruição do muro de Berlim, retirou-nos essa capacidade de olharmos para nós próprios de forma crítica, com a intenção de nos melhorarmos, de melhorarmos o sistema, de construirmos algo novo. Esse sonho, que animou os povos durante o vigésimo século, foi, em parte, destruído com o muro. Nos dias de hoje, a esmagadora maioria do povo olha para o estado capitalista como algo acabado, como um ponto de chegada, e isso é, realmente, uma tragédia.

 

A história é contada pelos vencedores das guerras. O meu professor parou e refletiu um pouco. Depois, soltou uma gargalhada: «Tens razão».

 

publicado às 12:50

O clamor

Existe um clamor nas sociedades, um clamor que fermenta e cresce a cada dia, em cada comentário, a cada ideia partilhada, em cada dedo de conversa trocada. Existe um clamor por menos estado, por menos impostos e por uma sociedade mais liberal do ponto de vista económico. É um clamor que se percebe em parte, mas apenas em parte.

 

É um clamor que se desmonta a muito custo pois, por mais argumentos inteligentes que possamos jogar no debate, é algo que nasce de dentro, de um certo instinto primário e não necessariamente de uma qualquer articulação intelectual. Mas é um clamor que se extingue no momento preciso, a que todos aliás chegamos eventualmente, em que se nos deparamos numa situação de necessidade: um desemprego duradouro, uma catástrofe natural destruidora de bens ou até mesmo uma doença justificativa de tratamentos médicos dispendiosos e/ou continuados.

 

Nesse momento preciso, perdemos a noção do alimento que nutria esse clamor que nos consumia. Nesse preciso momento entendemos até outras coisas menos triviais que, até aí, não conseguíamos perceber. Entendemos, por exemplo, como é que um homem com um euro de salário pode ser mais rico do que um com mil. Percebemos bem. Só que aí já é tarde demais. Olhamo-nos ao espelho e não reconhecemos a face. Apenas vemos um mendigo.

publicado às 23:23

O sistema social europeu e o aumento do salário mínimo nacional

O surgimento do sistema social europeu, chamemos-lhe assim, é mais complexo do que aquela ideia normalmente veiculada de uma geração mais ou menos espontânea. Um conjunto de líderes europeus, na ressaca dos regimes de índole fascista finados com o epílogo da segunda grande guerra, arquitetaram um sistema de garantias sociais que fosse capaz, por si, de manter sob controlo as camadas mais desfavorecidas da população e evitasse, assim, a repetição da história. Esta narrativa, até certo ponto verdadeira, carece de autenticidade e, até mesmo, de genuinidade.

 

Em boa verdade, o tal sistema social é pensado em claro contraponto ao regime social que dava plenos passos, então, nas sociedades socialistas de leste europeu. É que, naquela altura, uma parte substancial do povo ouvia as notícias dos viajantes que chegavam, dos marinheiros que aportavam dos barcos vindos do oriente europeu e, ainda que contra as pregações conservadoras locais, imaginavam sociedades onde todas as necessidades básicas eram garantidas. Ouviam e imaginavam: educação, pão, saúde, habitação, cultura. Tudo isto, num contexto de ausência total ou parcial de satisfação destas necessidades. E é neste sentido, e não noutro, que o estado social europeu foi erguido, não tanto para combater o regresso dos regimes fascistas mas sobretudo para combater a ascensão, naquela altura galopante, do comunismo na Europa. Seguramente que não encontramos qualquer coincidência entre as datas do fim do bloco de leste e do início imediato do desmantelamento do estado social europeu consubstanciado nas políticas de austeridade, crise após crise, e na destruição das suas estruturas de financiamento.

 

Importa, neste ponto, chamar a atenção para um pormenor fundamental da engenharia do sistema social europeu: a solidariedade. Com efeito, este é um sistema solidário e que, tendo em consideração, ainda que de forma implícita, o conceito de luta de classes, mobilizava o capital das classes dominantes para sustentar as necessidades das classes mais desfavorecidas, nomeadamente as trabalhadoras. O estado social europeu assumia-se, assim, como uma forma ativa de redistribuição da riqueza e de equilíbrio económico.

 

E é neste contexto que tem que ser analisado e entendido o recente acordo pelo aumento do salário mínimo nacional. O aumento nominal, em si próprio, peca apenas por ser escasso. O valor do salário mínimo deveria ser aquele que, na justa quantidade, permitisse a um cidadão viver dignamente, no âmbito dos seus diversos domínios, na sociedade em que se insere. Mas este aumento não só é insuficiente neste contexto como se apresenta como uma clara subversão do conceito. Efetivamente, a troco deste pequeno aumento o estado concede às classes acumuladoras de capital uma substancial redução na taxa social única, leia-se uma diminuição efetiva das contribuições solidárias para o sistema por parte das classes patronais. Isto quer dizer que este aumento já não se traduz numa mobilização de capital interclasses, no sentido do equilíbrio e da justiça económica e social, mas antes o contrário com o sistema social a passar a ser cada vez mais sustentado pelos próprios destinatários ficando estes com rendimentos cada vez mais reduzidos e pondo em causa a sustentabilidade do próprio sistema.

 

Desde sempre que as classes dominantes se opuseram a qualquer aumento do salário mínimo. Desde sempre e pelas razões óbvias de manutenção do poder. Não deixa de ser irónico que essas mesmas classes encontraram num aumento simbólico do salário mínimo todo o dinamite necessário para implodir o sistema social solidário português.

publicado às 20:04

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