As recentes negociações da União Europeia com um seu estado membro não aderente ao euro, o Reino Unido, são de uma relevância extraordinária. Como todos os acontecimentos de extraordinária relevância, o resultado de tais negociações foi genericamente ignorado pela comunicação social.
Nem comentadores, nem ninguém. A notícia, dada como subestimada nota de rodapé de enfadonho jornal, mereceria outro tratamento, outra análise e aprofundada discussão.
Assume particular relevo, no contexto dos tratados assinados no seio da União, considerados ao extremo de suas literais interpretações para países de marginal importância como Portugal, que um estado membro possa garantir, por acordo, o incumprimentos desses contratos e reverter a lógica de poder que reina para todos os outros, isto é, que possa subjugar todas as decisões europeias ao crivo do seu próprio parlamento, da sua própria autonomia, da sua própria lei.
Resulta desde logo lúgubre que discutamos este ponto desta forma, quando deveria ser a norma e não a exceção que qualquer estado formalmente soberano pudesse discutir as decisões conjuntas europeias no seu parlamento através dos representantes do seu povo. Miseravelmente, assim nos encontramos a discutir o natural como se o natural fosse absurdo, visto a União Europeia ser este castelo de absurdos que é para não lhe chamar outra coisa pior, do género, império autoritário e despótico contemporâneo, ou uma versão de quarto Reich que se impõe e domina todos os outros não pelo poder das armas mas pelo poder do capital e da dívida.
A questão que se coloca, contrariamente ao que foi sendo timidamente suscitado, não é por que razão se obsequia aos Britânicos tais privilégios, mas antes pelo contrário, por que razão não usufruem todos os estados membros da União Europeia, formalmente pares iguais, de tais prerrogativas que deveriam ser naturais e ordinárias porque se constituem, afinal, como os eixos da soberania de qualquer estado.
As parcas vozes que tocaram com acanho no assunto esforçaram-se por esquadrinhar — imagine-se! — justificações desconexas em favor de tal tratamento desigual. Entre outros, referiram a situação dos refugiados, que hipoteticamente atinge com maior gravidade Inglaterra, e invocaram um certo estatuto singular do arquipélago britânico face ao continente europeu.
Acresce ainda em pertinência tal discussão pelo contexto económico atual de países como Portugal, verdadeiros escravos de tratados que, como grilhões e grilhetas, impedem o seu crescimento económico e os amarram a um serviço de dívida insustentável, indefensável, absurdo.
No final do dia, entende-se bem as razões porque tal discussão nunca teve lugar, de todo, ou por falta de lucidez, ou por falta de capacidade, ou até por falta de seriedade: convém ao poder burguês que governa a Europa a não discussão do assunto, convém que este passe despercebido.
Agora, volvidas uma ou duas semanas sobre o resultado das negociações, já ninguém fala sobre o assunto. A coisa aconteceu e morreu em pouco mais que um dia, qual fugaz ciclo de vida da libelinha, abafada já pela retórica capitalista de cumprimento do serviço da dívida que continua pujante, como sempre, jactante em cada jornal, em cada rádio, em cada televisão, megafones do sistema.