Café antropológico
Hoje tomava o café no sítio do costume e falava com o empregado que me atendia, um tipo simpático que trabalha uma obscenidade de horas consecutivas todos os dias. O tema era o terrorismo e os ataques recentes na Bélgica. O tema era esse mas até podia ser outro qualquer, em boa verdade.
“A solução para isto era fazer grandes muros em redor dos países e correr com os muçulmanos daqui para fora”, dizia ele. Eu disse-lhe: “o problema está nas gerações e gerações de emigrantes desenraizados, arrumados em guetos, a ganhar metade pelo seu trabalho do que um belga ganha”. Mas ele não concordou com o que eu disse e retorquiu com uma meia-dúzia de disparates aos quais nem me dei ao trabalho de responder.
Enquanto terminava o café, via o ser impaciente em que se tornara. A impaciência nascia da minha concessão do duelo. Ele sentiu que estava a ser desconsiderado. Enrubesceu e prosseguiu, acabrunhado, mudo, com a sua labuta.
Da minha parte não havia muito mais a fazer. Quando discuto com alguém não carrego preconceitos ou pré-julgamentos sobre o meu interlocutor para o debate. Apraz-me trocar ideias com todos sobre o que quer que seja e a todos trato por igual. Mas ali não havia mesmo mais nada a fazer. Não havia nada mais a retorquir. O meu interlocutor já sabia tudo sobre o assunto e não estava muito interessado na minha opinião. Se ele pudesse, ele mesmo sairia do seu posto de trabalho e erigiria com os seus próprios braços os muros de que me falava, tal era a sua convicção.
Porque é que são normalmente as pessoas que mais trabalham, as que mais são exploradas pelo seu próprio trabalho, as mesmas que nutrem os sentimentos mais invejosos para com o próximo? Porquê? E, acrescento, porque são também os mais resignados, os mais conformados e os menos sonhadores? Porque razão são estes usualmente os menos camaradas e solidários para com os colegas e os mais bajuladores dos seus patrões?
Estas questões deveras intrigam-me e, acredito, nelas radica o sucesso e a aceitação do sistema capitalista entre os povos do mundo, em geral. Na resposta a estas perguntas figurará a chave para uma inversão de mentalidades e de sistema.