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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Uma vez mais, a Alemanha

Nos últimos anos têm-se vindo a multiplicar os protestos populares na Roménia, sobretudo nas suas cidades mais cosmopolitas com expoente máximo na capital Bucareste. A razão de ser de tais manifestações é uma corrupção governamental crescente tão vergonhosa, que o primeiro-ministro local chegou ao descaramento de influenciar o processo legislativo para evitar ser preso ou julgado pelos seus crimes de lesa-pátria. O povo saiu à rua em força, gritou com toda a força que guardava nos pulmões, mas à parte da Roménia, ninguém aqui, na Europa civilizada, ouviu o que quer que fosse, escassas notícias foram impressas sobre o assunto, nenhum comentário foi emitido no noticiário sobre a situação, nenhum vestígio de indignação. Absolutamente nada.

 

Um pouco mais a norte, no enfiamento do mesmo meridiano, a pouco mais de quinhentos quilómetros, a Bielorrússia tem vindo a ser tema de conversa desses mesmos jornais e noticiários de televisão. Aparentemente, as eleições locais geraram suspeita. Aparentemente, tem havido manifestações diárias de dezenas, não, centenas!, não, milhares!, não, dezenas de milhares!, não não, centenas de milhares! — assim é que é! —, reprimidas pelo estado. Há opositores políticos encarcerados e outros no exílio. Há isso e há muito mais. O pacote que os media nos oferecem nestes contextos é já bem conhecido e aplica-se de modo notável neste caso particular. A Bielorrússia, provavelmente o país mais ordenado e organizado da Europa, com uma taxa de crime praticamente nula, está convertida no inferno na Terra, pelo menos, a confiar no que nos dizem os nossos canais informativos.

 

O meu problema não é eu ter um certo afeto pela Bielorrússia e não ter assim tanta afinidade pela Roménia. Afinidades, como os amores, não se discutem, nem se escolhem. Ademais, não ponho as mãos no fogo pela liderança atual da Bielorrússia, nem tomo esse país como um modelo a seguir. Mas isso também não é para aqui chamado, não será assim? Se calhar o nosso problema é precisamente este: permitimos sermos guiados pela emoção em vez da razão e essa será a chave para quem nos governa conseguir perpetuar os seus poderes, manipulando-nos constantemente e, assim, sobrevivendo a cada eleição e a cada escândalo.

 

O meu problema é a diferença de critério, são os dois pesos e as duas medidas, porque não é só a Ucrânia que está entre a Roménia e a Bielorrússia, há algo de mais substantivo que separa estes dois países e que justifica as evidentes diferenças de tratamento aplicadas a um e a outro.

 

Qualquer observador atento da realidade política internacional que não conheça as lengalengas contadas usualmente a propósito da criação das comunidades várias que deram origem à União Europeia, dirá que o objetivo principal desta última terá sido coser na perfeição um manto protetor feito à medida da Alemanha. Com esse manto chamado União Europeia, a Alemanha foi capaz de camuflar os seus interesses expansionistas fazendo uma espécie de reset àquilo que foi a memória coletiva mundial pós duas guerras mundiais. Tudo na União Europeia, as suas regras, as suas políticas produtivas comuns, as suas distribuições de renda, a moeda única, a admissão de novos membros, etc, tudo foi feito na justa medida dos melhores interesses germânicos. Até mesmo em termos de política externa, a Alemanha encontrou um intermediário ideal que, falando em nome do grupo, defende, de facto, os seus interesses.

 

A diferença é esta. A Roménia já se libertou da influência russa desde o início dos anos noventa e, com isso, entregou, paulatinamente, todos os seus recursos naturais, todo o seu património empresarial nas capazes mãos alemãs. A Roménia está, portanto, do lado certo. Já a Bielorrússia é talvez o derradeiro aliado europeu da Rússia e mantém em seu poder a exploração dos seus recursos e a organização do seu país. A Bielorrússia está, como é evidente, do lado errado da História. Daí, as gritantes diferenças de tratamento.

 

A Roménia não é, bem entendido, o único exemplo que podemos fornecer. Aliás, o retrato traçado sobre a Roménia poderia ser reproduzido com muitas semelhanças relativamente a muitos outros países vizinhos. Desde o final da guerra fria, cada país do leste europeu que descobriu e se converteu às maravilhas do capitalismo do ocidente foi um país que engrossou o protetorado alemão. E sentem-se bem desse modo. Não se importam de já não terem fábricas suas, nem companhias aéreas, nem matérias primas. Adoram imaginar-se alemães. A Alemanha está efetivamente a conseguir pela via económica o que nunca conseguiu pela via militar.

 

Nos últimos dias, tivemos conhecimento do envenenamento de mais um opositor de Putin, desta feita em solo germânico. Pela forma como a notícia nos é apresentada, não restam quaisquer dúvidas para ninguém de que a Rússia será a culpada. Se assim é, será possível reconhecer também a total incompetência dos russos nestes envenenamentos que nunca cumprem plenamente os seus intentos, deixando sempre as vítimas vivas e um rasto de provas irrefutáveis. É estranho. E neste mar de estranhezas sucessivas, alimentadas ora por americanos, ora por britânicos, ora por franceses, ora por alemães, prosseguem estes últimos um rumo fixo e determinado de dominação ideológica e económica do leste europeu.

publicado às 18:01

A História do pensamento único

Era já domingo há algumas horas. Uma luz trémula amarelava o espaço. Procurava escapar, ainda, ao final do dia anterior e ia, assim, dando clicks aleatórios no ecrã, em busca de não sei bem o quê. O país entrou já no seu período sazonal merecido de estupidificação. Este ano não há campeonato do mundo ou europeu, mas o futebol inunda o espaço mediático. Como sempre. Discute-se o nada, horas a fio.

 

No DN vim a descobrir uma entrevista de Ernest Oberländer Târnoveanu, diretor do Museu Nacional de História da Roménia. A propósito da sua visita ao nosso país para inaugurar uma exposição sobre os principados romenos, patente no Mosteiro da Batalha, Târnoveanu falou ao DN sobre alguns aspetos gerais da história do seu país. O título da entrevista era, desde logo, prometedor: A independência romena não foi um presente dado pelos russos.

 

O que despertou o meu interesse àquela hora avançada era precisamente saber mais sobre esta animosidade, sobre este ódio, que parece visceral, que os romenos nutrem pelos russos. Não é sentimento que seja exclusivo dos romenos, diga-se. Ao longo das minhas viagens, encontrei semelhante animosidade em países como República Checa, Eslováquia, Hungria, Bulgária, Polónia e, também, nos três irmãos do Báltico, Estónia, Letónia e Lituânia.

 

A entrevista tem algumas partes com interesse como não poderia deixar de ser. A história da Roménia está intimamente ligada ao império romano, à sua cisão e, particularmente, à sua metade oriental resultante, o império Bizantino de Constantinopla, mais tarde chamado Otomano aquando da conquista pelos turcos. Como naturais guardiões do Danúbio, avenida que liga as extremidades da Europa, os principados que deram origem à Roménia contemporânea assumiram desde sempre uma relevante importância estratégica comercial e, daí, a história daquele lugar sobre a barriga da Europa é repleta de desventuras e acontecimentos fascinantes.

 

Não desiludindo as minhas expetativas, Târnoveanu é lesto a incluir os russos na conversa. Os russos são pintados como uma espécie de inimigos mortais, as suas ações são revestidas de duplicidade e de infâmia, ao passo que os romenos, investidos de uma certa incapacidade ou inocência, vão sendo permanentemente enganados e roubados. Este quadro atinge o seu apogeu com o comunismo e a era de domínio soviética. Nas palavras de Târnoveanu: “Foi uma pilhagem em larga escala, maior ainda que as pilhagens turcas e mongóis juntas”. Atente-se bem na hiperbolização utilizada, pois ela é marcante no que concerne ao revestimento ideológico da narrativa.

 

Não deixa de ser surpreendente que um país, ou conjunto de principados, permanente sob domínio ou influência de estrangeiros, permanentemente cobiçado e invadido, seja por turcos otomanos, seja por austro-húngaros ou polacos, eleja os russos como alvo, mais que primordial, das suas antipatias e dos seus ódios.

 

Tomo a liberdade de adivinhar o pensamento que assalta agora mesmo o meu caro leitor neste ponto da sua leitura: este Amato, por ser comunista, não consegue ver o quanto o comunismo suprimiu aqueles povos de leste. Adivinhei? Deixem-me assegurar-vos, pois, que a minha posição neste texto não se inspira na ideologia e de ideológica apenas se apossa da lógica para construir pensamento sobre o assunto.

 

Quando me dedico ao estudo e reflexão das páginas da História só uma coisa tem o condão de me arrepiar o ser. Essa coisa é o pensamento único, os factos indiscutíveis e insofismáveis, as verdades evidentes. O tema em questão é um bom exemplo disto mesmo: na Roménia, assim como noutros países, é difícil encontrar uma pessoa capaz de tecer um elogio que seja ao regime pró-soviético que vigorou no seu país. É quase como se houvesse um pacto silencioso entre todos, uma história combinada de antemão. Acreditem que eu dou de barato que em muitos desses regimes foi feita muita coisa desprezível e repugnante, mas é difícil de acreditar que apenas tenha sido feito isso e que nada de positivo resulte quando se olha sobre o ombro para esses tempos. Em seguida, deixo alguns pontos que me fazem duvidar da verdade destes discursos. Centrar-me-ei no exemplo romeno, embora os argumentos possam ser igualmente aplicados noutros contextos.

 

Em primeiro lugar falemos do passado, isto é, do passado anterior ao regime comunista pró-soviético na Roménia. Como já foi dito, a região a que hoje se chama Roménia foi consecutivamente dominada politicamente por poderes estrangeiros. Desses sucessivos domínios resultou uma terra ocupada por uma espécie de camponeses nómadas, que se refugiavam nos bosques, nas montanhas e nos vales dos rios, sempre em movimento, sem nunca se fixarem. Em meados do século XX, a Roménia era pouco mais que um país retirado da idade das trevas, de um cristianismo ortodoxo extremamente conservador, uma sociedade em tudo medieval, pouco evoluída tecnologicamente, pouco civilizada e parada no tempo.

 

É curioso perceber o olhar algo terno que os romenos contemporâneos dedicam a esses tempos e a admiração que especialmente dedicam aos ocidentais que sempre os dominaram. Não se pronunciam grandes críticas, não se apontam dedos. É uma história que é aceite na sua plenitude porque formou o caráter e a identidade comuns a todos os povos romenos.

 

Já é revelador, todavia, perceber que os romenos raramente se referem aos alemães e, particularmente, a Hitler e ao nazismo. Nesta entrevista que dá o mote a esta reflexão, Târnoveanu não os refere uma única vez. Por que é que eu adjetivo o facto de revelador? A Alemanha nazi, na antecâmara para a Segunda Guerra Mundial, começou por invadir e ocupar uma série de países na Europa central e de leste: Áustria, Hungria, Polónia, Roménia e Bulgária, entre outros. Estes países serviram como passadeira vermelha para o Terceiro Reich se colocar às portas da Rússia antes de a invadir sem uma prévia declaração de guerra. Os recursos desses países — e isto, sim, trata-se de um facto indesmentível — foram totalmente usurpados e colocados ao serviço do exército nazi. Admira-me que, na sua entrevista, Târnoveanu não dedique uma única palavra a este assunto. Admira-me que não reconheça a evidência da exploração do seu país pelo regime ideologicamente mais hediondo de que há memória. Adiante.

 

Quando o exército vermelho libertou a Roménia, juntamente com muitos outros países, do jugo nazi, foi instaurado um regime socialista pró-soviético. Durante esse regime a Roménia atingiu os mais elevados índices de bem estar e de desenvolvimento da sua história. Não existe comparação possível relativamente a domínios como a educação, a cultura, a saúde, a habitação, o trabalho ou o aquecimento. Os russos dotaram o país das estruturas necessárias para o catapultar para a era moderna como casas, escolas, universidades, hospitais, canalização ou condutas de aquecimento. Índices como a mortalidade na infância, a esperança média de vida ou a alfabetização falam pelo que foi feito nessa altura e pelo que nunca havia sido feito anteriormente, particularmente pelos admirados ocidentais. A Roménia deixou de ser um país de camponeses incultos para se tornar num país de escritores e cientistas.

 

A independência romena não foi um presente dado pelos russos? Talvez não, Sr. Târnoveanu. O que os russos deram aos romenos foi muito mais do que independência. Por que razão Târnoveanu, ou qualquer um dos conterrâneos que representa, não é capaz de reconhecer qualquer uma destas virtudes? Por que é que, pelo contrário, prefere deixar frases como aquela a propósito dos soviéticos: “Foi uma pilhagem em larga escala, maior ainda que as pilhagens turcas e mongóis juntas”?

 

Já sabemos que, na opinião dos romenos, no tempo dos nazis ou de outros que os precederam não aconteceram grandes “pilhagens”. E hoje em dia, como é? Sim, porque o comunismo já abandonou a Roménia há uns bons trinta anos. Não sabem? Deixem-me que vos diga, então: a Roménia não tem nada de seu, nem empresas, nem recursos, nem serviços; os seus vastíssimos recursos fósseis são drenados para as grandes potências capitalistas mundiais que deixam ficar pequenas migalhas à população romena; o povo vive miseravelmente mas agora pode dizer, com orgulho e propriedade, que tem ricos e que vive em democracia e liberdade. Acresce ainda que encontrei na Roménia as mais obscuras igrejas ortodoxas de toda a Europa, igrejas mal iluminadas, repletas de fieis divididos por género, com um culto perfeitamente retrógrado, com as mulheres tapadas da cabeça até aos pés de onde apenas um singular olhar inquisidor sobre os turistas, desobedientes ao seu código ético, conseguia escapar.

 

Ao mesmo tempo, atualmente a Roménia empenha-se com todas as suas forças para que a acolham na família da União Europeia. A adesão à NATO foi instantânea, mas a União Europeia é mais exigente. Por parte da Roménia, dado o seu quadro histórico, seria de esperar alguma cautela e até aversão à dominação estrangeira, mas tal não se verifica. Pertencer ao clube dos países ricos é uma ilusão muito apetecível. Bem fariam se olhassem com olhos de ver para o exemplo português.

 

Podia ainda falar de Ceausescu e das marcadas diferenças e divergências entre o regime comunista romeno e a União Soviética, que também concorrem para o desmascarar deste discurso parcial e desequilibrado pintado a uma só cor. Podia, mas o texto já se prolongou para além da conta.

 

Termino reconhecendo o quão fácil é, portanto, entender a razão de ser do pensamento único romeno. Como se costuma dizer, o coração quer o que o coração quer. E o que o coração quer é igreja, poucas obrigações de estudar ou trabalhar, pouco trabalho, dinheiro fácil, sonho americano, poder ser rico, ou melhor, poder ter mais dinheiro que o vizinho ao lado. E é por isso que os russos são o demónio. É por isso que o comunismo foi horrível, ao contrário de qualquer outro poder incluindo o nazismo. Ernest Oberländer Târnoveanu é uma personalidade simbólica, porque é mais do que o diretor do Museu Nacional de História da Roménia: é uma espécie de clérigo deste pensamento dominante. Ave ocidente. Ave livre mercado. Ave capitalismo.

publicado às 15:22

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