Um dos mais raros e, também por isso mesmo, preciosos momentos — de autêntico prazer — que a imprensa escrita me oferece nos dias que correm apresenta-se nos espaços de opinião de José Pacheco Pereira. Irremediavelmente, espero até ao final da semana para poder ler as suas crónicas da Sábado ou o seu artigo de opinião no Público. O mesmo se passa, relativamente à televisão, a irmã mais nova da imprensa escrita, com A Quadratura do Círculo na SIC Notícias.
Desengane-se quem se atrever a induzir daqui que tal estima pelos textos e opiniões produzidos por Pacheco Pereira se deve a uma concordância de opiniões ou posições. Quem acompanha este blog percebe com relativa facilidade a dissonância entre opiniões, os distintos posicionamentos políticos e as diferenças marcantes na própria interpretação da História do Homem. Não obstante, reconheço em Pacheco Pereira aquilo que não reconheço em quase nenhum outro crónico comentador político: independência, honestidade intelectual e cultura. Qualquer uma destas características é rara por si só e a sua interseção resulta num conjunto de escassos elementos, no qual Pacheco Pereira pontifica. Acresce ainda a qualidade superior da sua escrita o que consiste numa espécie de bonificação, também ela rara e não desprezável, ao exercício de leitura dos seus textos.
Hoje, Pacheco Pereira escreve no Público sobre o Liceu Alexandre Herculano, no Porto. Escreve sobre o estado lamentável a que a estrutura chegou e sobre a importância que a memória dos edifícios, das suas paredes e dos seus tetos, tem na nossa identidade. Atrevo-me, nos parágrafos imediatos, a complementar o seu texto com relevante informação.
Ao mesmo tempo que o liceu Alexandre Herculano está a ser votado à degradação, o Estado financia os cursos vocacionais de um colégio privado mesmo ao lado. Basta contornar o quarteirão do lado oposto ao do edifício da Polícia de Segurança Pública e da Direção Regional de Educação do Norte.
Não sei se este colégio se insere no contexto de “contrato de associação” ou não, mas também não é muito relevante para o caso. Os cursos que lá são ministrados, chamemos-lhe assim, naquela secção específica do colégio, são financiados na totalidade por dinheiros públicos.
Faça-se o esforço: não é preciso caminhar muito. É um edifício antigo mas desinteressante, pintado e tratado com descuido, dotado de nenhum tipo de condições particulares para o ensino — uma espécie de casa grande adaptada à pressão. Penetre-se no seu interior para se poder ver melhor.
Não existe uma sala de convívio para os alunos, uma sala de professores ou espaços de trabalho. Não existe nada para além de umas divisórias de escritório onde se colocaram mesas, um quadro e um vídeo-projetor para que se possa fazer de conta que se está na vanguarda das novas tecnologias e, a estes espaços, chamaram-se de salas de aula. Nelas, comprimem-se mais alunos do que aqueles que seria aconselhável e procede-se a uma espécie de encenação que é um entretenimento que dura o número de horas requeridas para se passar o diploma prometido.
É para aqui, para instituições deste género, que são canalizados os dinheiros públicos da educação. É este o poder de escolha, é esta a defesa da escola, na ótica dos privados. O liceu Alexandre Herculano, com todas as condições físicas para fornecer uma educação de qualidade e digna aos alunos, é votado ao abandono e à degradação ao passo que a poucos metros de distância e literalmente nas suas costas subconcessiona-se a um colégio privado sem qualquer tipo de condições — e ninguém quer saber do assunto, com a DREN mesmo ali à beira, do outro lado do quarteirão — o ensino de alunos que poderia ser perfeitamente feito no espaço público com clara mais-valia financeira, para o estado, e educativa para os alunos.
Não me interessa quem tem a responsabilidade sobre o liceu, penso que será a Câmara Municipal do Porto. Não é relevante. A responsabilidade última é sempre do Estado, quer seja para cumprir, quer seja para fazer cumprir. Quer-me é parecer, de modo cristalino, que os “contratos de associação” serão apenas a ponta do iceberg na relação de promiscuidade entre estado e privados no domínio da educação.
Neste, como noutros casos, é preciso falar, é preciso denunciar, é preciso apontar o dedo, para não nos tomarem por parvos, para que saibam que sabemos.