Sistema fiscal: um sistema de controlo
Sem darmos bem por isso, sem falarmos ou discutirmos muito o assunto, eis que nos encontramos já perfeitamente mergulhados num sistema burocrático que, qual Big Brother, tudo sabe sobre a nossa vida, sobre as nossas compras, investimentos, poupanças, todo e cada um dos passos que diariamente damos. O sistema E-Fatura é exatamente isto: um sistema de controlo que o exerce sobre cada um dos cidadãos.
Em bom rigor, deveríamos antes dizer que o controlo é exercido sobre cada um dos cidadãos trabalhadores por conta de outrem, sobretudo, mas também sobre os pequenos comerciantes, porque para os outros, para quem vive nas mais altas esferas, nas esferas dos offshores, dos grandes negócios, das lavagens de dinheiro, da corrupção e do tráfico de influências, há toda uma lei à parte.
Estes últimos, podemos dizê-lo com propriedade, não são afetados nem pelo E-Fatura, nem por qualquer outro sistema do género. Vivem nas mais altas esferas. Respiram um ar mais rarefeito, mais puro. Do ponto de vista do sistema, assemelham-se mais a deuses do que aos comuns mortais os quais, cá em baixo, devem ter todos os seus movimentos detalhadamente registados e justificados.
Começa a tornar-se tarde para inverter este caminho trilhado porque existe toda uma filosofia que é injetada nas pessoas de cá de baixo desde tenra idade. O que é difícil inverter é exatamente essa filosofia, essa mentalidade. Cada passo dado é acompanhado de uma ideia de facilitismo do sistema, de “agora vai ser mais fácil preencher o IRS”, e essa ideia é ativamente promotora do caminho. Observe-se que o E-Fatura não é o início do problema, é simplesmente o último update facilitador do sistema fiscal que temos que recolhe informação que, verdadeiramente, não lhe devia dizer respeito.
Ontem, na Quadratura do Círculo, ouvi Pacheco Pereira dizer algo de absolutamente evidente, mas que pouca gente diz, qualquer coisa como “Se amanhã a PIDE voltasse a Portugal teria todo o seu trabalho já feito”. Mas, na realidade, importa perguntar para que seria necessária a PIDE no contexto atual? Por ventura a existência da PIDE justificar-se-ia, na ótica do antigo regime, precisamente pela ausência das estruturas burocráticas e filosóficas que existem e se expandem aos nossos olhos, que tão profundamente implementadas estão nos dias de hoje. Para que é necessária uma polícia política, para que são necessários bufos e delatores, quando existem Facebook, Twitter e afins, quando a maioria dos cidadãos partilha voluntariamente a sua intimidade na rede e expõe publicamente a sua rotina à devassa da sociedade — sendo julgados e catalogados desse modo?
É, portanto, muito importante que se tenha a consciência plena de que esta questão não nos é somente imposta externamente. Todos concorremos coletiva e ativamente para ela. Com efeito, o sistema capitalista dispõe de argumentos que não cessam de me causar o mais profundo espanto: a troco de uma ilusão de facilidade ou de fugaz notoriedade, faz-nos abdicar voluntariamente e sem quaisquer outras contrapartidas do nosso mais basilar direito à privacidade.