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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

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Presidenciais 2026: perspetivas tenebrosas

Faltam ainda três anos para o próximo sufrágio presidencial, mas já se delineiam os contornos do mesmo. E esses contornos são grotescos, as perspetivas tenebrosas.

À direita começa a tornar-se claro o que já se adivinhava: o comentador semanal Marques Mendes já se prepara para avançar. Em tudo muito parecido com Marcelo, um indivíduo com poucas qualidades do ponto de vista político, que colecionou sobretudo derrotas nas disputas públicas que teve, tem ainda contra si a gritante falta de originalidade de estar a copiar o modus operandi que o atual presidente utilizou para chegar a Belém. Se conseguir a eleição — e acredito que consiga — servirá de barómetro para aferir a debilidade assustadora da nossa democracia: uma democracia onde a televisão e o entretenimento formam os candidatos, conferem-lhes popularidade e decidem o resultado das eleições, independentemente da sua capacidade ou mérito. O passo seguinte será, seguramente, colocar algum apresentador ou ator em Belém ou São Bento (o pão nosso de cada dia na “democracia madura” dos Estados Unidos da América, por exemplo).

À “esquerda”, o caso não é tão claro. Fala-se em Augusto Santos Silva e em Mário Centeno. O primeiro tem trabalhado para isso: saiu do governo porque queria voltar ao seu lugar na academia, mas, desde então, continua a colecionar lugares de suma importância. Como Presidente da Assembleia da República, extravasa frequentemente das suas obrigações para simular disputas estéreis com o Chega e afirmar-se como antifascista dos sete costados, cumprindo na íntegra a estratégia subliminar do seu partido para secar a oposição e perpetuar-se no poder, a reboque dos fantasmas da extrema direita. O segundo abandonou o importantíssimo cargo de Ministro das Finanças para seguir a sua carreira e assumir as rédeas do Banco de Portugal. Agora, a ser candidato presidencial, seria uma incongruência novelesca que qualquer eleitorado decente rejeitaria como inaceitável.

A esquerda à esquerda disto continua à deriva. Sem intervenção, sem posicionamento, sem voz. Sabemos bem quem vai continuar a capitalizar politicamente com esta situação.

Faltam ainda três anos. Tenhamos calma. Até lá, ainda pode ser pior.

publicado às 14:13

Marcelo e o poder da palavra

Numa altura em que parece — tenhamos sempre cuidado com o que parece — que a sociedade como um todo se revolta contra Marcelo, permitam-me ensaiar uma posição contrária, como é, aliás, meu habitual timbre — eu, tantas vezes crítico da atuação do presidente. Este governo merece ser demitido, disso não há qualquer dúvida. É um governo que se tem envolvido em tanta situação imprópria que parece ter perdido qualquer vestígio de respeitabilidade. Este caso Galamba é simplesmente a cereja em cima do bolo dos casos que a maioria absoluta tem avolumado, embora, falando estritamente em termos do decoro e da famigerada “ética republicana”, poderíamos dizer que é o bolo em cima das cerejas...

É óbvio que o Presidente poderia ter demitido o governo. Com isso, corria dois riscos: que o PS ganhasse sem maioria absoluta e com a necessidade de encetar sempre belicosas negociações à esquerda para formar governo, num quadro em que é necessário executar projetos e verbas europeias no contexto do plano de recuperação; que a direita ganhasse as eleições, abrindo as portas do governo à extrema direita. Creio que Marcelo não quis correr nenhum destes riscos e não terá querido, sobretudo, prejudicar a sua imagem histórica, a coisa que, julgo, mais preza, o modo como a história olhará para ele.

Em vez de dissolver o parlamento e desmantelar uma maioria absoluta, para todos os efeitos, legitimada popularmente, escolheu, na minha opinião, fazer algo mais inteligente: usar a sua posição, credibilidade e popularidade para explicar pedagogicamente aos portugueses a situação em causa, o que resultou, como não poderia deixar de resultar, num enxovalho mais que merecido a ministro, primeiro-ministro e governo. Esta atitude não só é louvável como é recomendável: a política devia ser mais vezes assim e menos ensopada da hipocrisia do costume.

Não se trata de uma atitude frouxa, como muitos apressadamente e irrefletidamente a qualificaram, bem pelo contrário. Com o seu discurso, com o poder das suas palavras, Marcelo revelou elevado sentido de estado e colocou em evidência a “qualidade” de alguns dos membros do executivo. Deixo aqui a questão que me parece mais relevante: que género de pessoa ouve o discurso de Marcelo e não se demite imediatamente? Que valores é que o podem continuar a mover? É sobre isto que muitos portugueses, no final do dia, ficarão a pensar.

Que as oposições, sobretudo à esquerda que são as que mais me interessam, estejam aliviadas por evitarem eleições antecipadas, isso é outra questão, mas é uma que devia ser motivo de embaraço para as forças políticas em causa e grave sintoma do seu estado atual de morbidez e definhamento.

publicado às 15:29

Foi tempo de mais

O único problema do chumbo deste orçamento de estado foi não ter acontecido há mais tempo:

  1. Foi tempo de mais de carta branca ao PS para este cristalizar as políticas sociais e laborais da troika e da direita.
  2. Foi tempo de mais de desrespeito, de falta de integridade e caráter nas negociações que manteve com os seus parceiros à esquerda corporizados nas cativações orçamentais regulares e crescentes e em promessas jamais cumpridas.
  3. Foi tempo de mais de adiamentos, de “para o ano é que vai ser”, ao mesmo tempo que os serviços públicos caíam na lama e no descrédito.
  4. Foi tempo de mais de malabarismo fiscal para disfarçar mais impostos sobre quem trabalha.
  5. Foi tempo de mais de medo do papão da direita que, em boa verdade, não teria feito muito pior se tivesse no lugar do PS.
  6. Foi tempo de mais de chantagem e ameaça, foi tempo de mais de uma esquerda refém da social-democracia burguesa. Historicamente, foi um tempo negro para a esquerda em Portugal.

Foi tempo de mais. Seis anos é tempo de mais. O único problema do chumbo deste orçamento de estado foi não ter acontecido há mais tempo.

Primeira nota: foi o PS que quis governar assim; foi o PS que não quis acordos ou aproximações de princípio; era o PS que não tinha maioria absoluta; era ao PS que se exigia que encontrasse o apoio parlamentar maioritário que não tinha. A responsabilidade de tudo o que aconteceu é do PS. Faltam bases objetivas e racionais a quem anda pela comunicação social a espalhar o contrário e ao povo que repete esta cançoneta sem pensar. PCP e Bloco não precisam de se preocupar muito com esta linha de argumentação: ela é alimentada por pessoas que nunca votaram (e dificilmente o farão) à esquerda.

Segunda nota: em todo este processo, o comportamento do Presidente da República foi impróprio, procurando condicionar a sucessão dos eventos e as negociações quando deveria ter-se limitado a promover o encontro entre as partes e a saudável discussão dos temas. Pelo contrário, ameaçou a dissolução da Assembleia da República de forma precipitada e injustificada, sem ouvir as partes, sem consultar o Conselho de Estado, sem considerar outras alternativas, numa clara tentativa de forçar a aceitação de um orçamento de estado que não tinha o acordo da maioria da Assembleia da República. Acresce ainda a inaudita e absolutamente irregular audiência concedida ao candidato à liderança do PSD. Não lhe chega meter-se diariamente em “bicos de pés” para fingir ser o chefe do governo de Portugal que não é: também tem que meter o dedo nas eleições internas dos partidos políticos. É admirável, contudo, como, sabendo de tudo, metendo o seu dedo em tudo, consegue sempre escapar às responsabilidades quando as coisas dão para o torto.

Terceira nota: para o papel politicamente medíocre do PAN, o partido que faz da abstenção a tudo o que mexe a sua regra dourada porque, em boa verdade, não tem posição bem definida sobre nada que não se mova sobre quatro patas, vem criticar quem tem a coragem de assumir uma posição, de quem ainda tem princípios e ideais — bem sei que é coisa que vai rareando — e se bate por eles. Neste particular, o PAN assemelha-se à direita que diz que a pior coisa que poderia acontecer a Portugal era haver uma crise política, como se ela própria não tivesse votado contra um orçamento de estado que poderia muito bem ter sido proposto por si. Nestes debates, se há coisa verdadeiramente indigerível é a hipocrisia oportunista e descarada.

publicado às 10:09

Comentário à aprovação da eutanásia

Os cinco projetos-lei sobre a eutanásia foram aprovados. Todos os progressistas devem-se congratular e, por uma vez que seja, admirar o parlamento que temos. É de assinalar, todavia, a dificuldade que existe e persiste em fazer aprovar uma lei que visa unicamente dar uma liberdade às pessoas, liberdade essa, sublinhe-se, que não influi, nem belisca minimamente, a liberdade dos demais. Quem quer fazer uso da eutanásia faz, e sob circunstâncias extremamente específicas. Quem não quer, não faz. Ninguém é obrigado a fazer. É tão simples quanto isto e, contudo, tão difícil foi fazer aprovar a lei.

 

Sobre a eutanásia gostaria de destacar ainda o seguinte.

 

Primeiro, claro, a argumentação absolutamente detestável do ponto de vista lógico por parte dos oposicionistas à medida. Foi uma mistura entre um discurso utópico, da defesa de um mundo idílico onde tais práticas não teriam lugar, e um discurso moralista religioso que nos dias de hoje, por esta ou aquela razão, ninguém leva muito a sério.

 

Segundo, notar como os níveis de hipocrisia, nesta discussão, bateram todos os recordes desde que há registos. Destacam-se, neste particular, as ordens profissionais dos médicos e dos enfermeiros, representantes dos cidadãos que estão na primeira fila do auditório desta dramática e terrível película que passa todos os dias, a todas as horas, em todos os hospitais deste país, onde “eutanásias” informais são aplicadas a cada instante. Não há juramento de Hipócritas, perdão, Hipócrates, que lhes valha. O que nos vale, a nós, é que estas ordens não representam, nesta matéria, a maioria dos seus profissionais, estando mais preocupadas em fazer a defesa de um certa ordem social-religiosa que ainda vigora do que fazer a representação dos seus membros.

 

Terceiro, observar a incoerência ideológica da direita política em geral, com exceção parcial da Iniciativa Liberal, sempre tão obcecados na liberalização da sociedade, na defesa de uma suposta liberdade individual do cidadão, na implosão de um estado controlador das liberdades mas que, quando há uma medida concreta, agarra-se com unhas e dentes ao mais bafiento conservadorismo religioso e esquece-se do que anda a apregoar nos outros trezentos e sessenta e quatro dias do ano.

 

Quarto, apontar a inexorável desilusão com a posição já esperada do Partido Comunista Português, posição essa absolutamente injustificada do ponto de vista ideológico ou de qualquer outro. Sublinha-se também o embaraço, a vergonha de ver o PCP, partido histórico, sólido e coerente, a levar uma ensaboadela monumental, mas justificada e merecida, do líder do PAN, essa abstração parlamentar, essa inexistência política. O PCP atingiu, na passada semana, o ponto mais baixo da sua existência em democracia. E o mais dramático é que ninguém, dentro do PCP, deu por isso.

 

O processo não acaba aqui, bem entendido. Segue-se a fase da elaboração de um texto comum que seja sólido e robusto, mas antevê-se, também, alguma luta que se prepara adiante e que pode ser algo de relativamente sério ou, simplesmente, um estrebuchar final dos derrotados. Nessa fase, o Presidente da República poderá assumir-se como uma figura chave para forçar um referendo de circunstância que vise atrasar ou, no pior cenário, bloquear o processo.

 

publicado às 10:26

Uma lâmina de dois gumes

A vitória de Rio nas últimas eleições internas do PSD constitui um alívio para todos aqueles que fazem gosto em alguma decência no panorama político nacional. É benéfico que se entenda a oposição a Rio como ela deve e merece ser entendida e não como uma natural disputa democrática no seio de um partido político.

 

Montenegro não se perfilava apenas como um mero salteador do poder. Esta contenda não brotou apenas de uma inexorável sede de poder feita indómita pelo oportunismo da ocasião que se proporcionou após as eleições legislativas. Não. Montenegro, qual general fiel ao seu imperador caído, corporizava o regresso ao passado mais sinistro do PSD, o partido da troika, da austeridade como elemento definidor e formador de uma espécie de caráter coletivo, da ignorância das ideias acabadas e de uma arrogância concomitante. Para além disso, seria também o regresso da histeria, da crítica fácil a tudo o que acontecesse, de uma oposição desprezível e tóxica. Rio, com todas as falhas que tem, com todos os “defeitos” ideológicos de que é portador na perspetiva da esquerda é, pelo menos, alguém respeitável e sério, avesso a espalhafatos e a folhetins. Rio é, pelo menos, alguém com quem se pode falar e isto não é de somenos importância.

 

Todavia, como parece ocorrer com todas as coisas da vida, não há bela sem senão, nem feia sem sua graça, a vitória de Rio transporta manchas negras nas suas margens, manchas cujo alcance contaminador parece ser de difícil previsão a esta distância à qual nos situamos mas que, porém, ali escorrem e se vão acumulando manifestas e inequívocas. A que manchas me refiro?

 

O contexto político português é, ao contrário do que possamos pensar, de uma delicadeza preocupante. Com efeito, politicamente falando, vivemos um tempo de poderes virtualmente indisputados: a presidência da república é ocupada por uma das figuras mais universalmente aceites de sempre e que se prepara para uma reeleição sem opositores; no parlamento, uma coligação informal, mas concreta, de partidos parece ter concedido ao PS eterna carta branca para formar executivo, independentemente deste lograr um maior ou menor número de votos, e governar a seu bel-prazer, ainda que ninguém consiga perceber bem a razão de ser da coisa, o que ainda a mantém viva e a sustenta.

 

Este aparente unanimismo que tomou a política portuguesa, e para o qual a reeleição de Rio, por constituir um tipo de oposição responsável, indiretamente concorre, é dissimulador da existência de uma massa concreta de pessoas que ideologicamente não se reveem no status quo, que não se sentem representadas politicamente ou que simplesmente já não conseguem suportar mais o “politicamente correto” perfeitamente desencaixado com a realidade que todos os dias enfrentam. Estas pessoas tendem, tragicamente, a confluir para uma espécie de saco político que, avidamente, as recolhe e cresce no panorama nacional: o Chega de André Ventura.

 

Existem vários sinais preocupantes que não devemos deixar escapar. O Chega tem tido mais tempo de antena nos canais mediáticos que toda a esquerda junta. O seu líder marca a agenda política e a imprensa estende-lhe um palco permanente para plasmar as suas palavras de ordem populistas e demagógicas. Nada, nenhuma evidência do passado, nenhuma contradição, nenhuma incoerência, nenhum defeito de caráter parece afetar a crescente popularidade de Ventura que, à semelhança do que Trump dizia há um tempo, podia dar um tiro a alguém no meio da rua que, ainda assim, continuaria a crescer nas intenções de voto. Com o PSD com uma liderança moderada, o CDS defunto e a Iniciativa Liberal a assumir-se cada vez mais como uma espécie de nado-morto político, com a putativa candidatura “única” de Marcelo à presidência da república que se avizinha — dificilmente PS, PSD e CDS apoiarão outros candidatos e dificilmente a esquerda encontrará uma figura alternativa a Marcelo que seja simultaneamente coerente com o passado recente da “geringonça” —, Ventura prepara-se para capitalizar sobre a sua própria candidatura, sobre o seu próprio movimento, todo o voto divergente e obter uma votação expressiva que pode ajudar a catapultar o Chega no panorama nacional como uma relevante força política de extrema direita.

 

É neste sentido que a reeleição de Rio pode constituir-se como uma espécie de lâmina de dois gumes. Se Montenegro tivesse vencido, talvez isso fosse pior para Ventura que, assim, teria que dividir o espaço mediático populista com um concorrente de peso, com experiência e provas dadas na matéria. É verdade, também, que a derrota de Montenegro parece ser apenas uma antecâmara adequada para uma reentrada triunfal de Passos Coelho na cena política, reentrada essa que já anda a ser preparada ao detalhe. Ainda assim, é tempo demais que se dá a Ventura que se vai alimentando, todos os dias, até ao ponto de não podermos deixar mais de o ignorar ou, simplesmente, de mudar de passeio quando o encontramos de frente na rua.

publicado às 10:32

Fogos de palha

Passa quase um mês desde a última entrada neste blog. Esta ausência acabou por se prolongar mais do que esperava. A questão não está tanto na falta de assunto para comentar, nem tão pouco na ausência de tempo para o fazer. Sendo ambos argumentos válidos, não tem sobrado em mim a energia suficiente para me sentar à secretária, ligar o computador, “logar” no blog e escrever. Não tenho tido a paciência para participar desta sociedade de fogos de palha, tomando emprestadas as sempre acuradas palavras de Saramago. Todos os dias há um fogo novo a arder muito, um fogo de altas labaredas enegrecendo os céus que pairam sobre as nossas cabeças. No dia seguinte o céu permanece negro, mas já não é fumo do mesmo fogo, é doutro, entretanto ateado.

 

Tenho a impressão que este estado de coisas, este clima social, nunca terá sido tão carregado como é hoje, mas poderei estar enganado. Para tal clima — nascido da histórica fundação da geringonça que boa parte da sociedade ainda não terá engolido (sem grandes razões, todavia) —, contribuirá decisivamente a ação política do Presidente da República, catalisadora destes fogos que se espalham. O Presidente não se comporta como um incendiário, bem entendido, mas dispondo-se a comentar tudo o que lhe é lançado, mordendo sempre o irresistível isco que lhe é estendido desde a ponta dos microfones, comentando o que é coerente e o que é incoerente, o que é razoável e o que não o é, tem o condão de elevar cada amostra de boato ou mexerico às gordas maiúsculas das primeiras páginas das notícias.

 

Muito se escreveu neste mês que passou sobre o caso dos familiares no governo. Inclusivamente, atribuíram-lhe a pomposa mas não menos patética designação de familygate. Comentar isto? Não, obrigado. Ganhem juízo e, sobretudo, tomem qualquer coisa para a memória, para a coerência e para a hipocrisia. Analisem os governos passados e, mais importante, analisem as nomeações para lugares, esses sim, realmente importantes no mundo dos negócios e das empresas que vivem de mamadas regulares nas tetas estatais. Estudem, tomem atenção e conheçam a árvore genealógica do poder politico-económico em Portugal. No contexto da mais sórdida e imoral promiscuidade entre os poderes político e económico, esta situação não é mais que anedótica. Depois, parem de alimentar o mexerico sem importância e, sobretudo, não se contentem com fingidas alterações à lei para que tudo permaneça como está. Porque é mesmo disso que se trata: um fogo de palha. Amanhã tudo estará esquecido e um novo fogo terá sido ateado para não darmos fé disso mesmo.

publicado às 11:55

Os afetos não são neutros

No próximo dia 9 de julho cumprir-se-ão dois anos e quatro meses da presidência dos afetos de Marcelo Rebelo de Sousa, mas parece não ter sido tempo bastante para o povo entender bem o alcance da coisa. Isto dos afetos, dos beijinhos óbvios e dos abraços fáceis, tem o condão de entreter as massas e traz consigo, dentro de cada abraço, aquela ideia da política apartidária, acima de qualquer disputa e controvérsia, da política da razão e da verdade que toda a gente considera, mas ninguém o admite frontalmente, ser só uma. Que belos animais democráticos que nós somos! A política dos afetos é, bem entendido, a expressão máxima do populismo mais vil, porque é a política do é e não é, quando, de facto, é.

 

Veja-se bem o que se passa hoje. O Marcelo dos afetos, dos beijos e dos abraços, não tem um minuto da sua agenda sem fim para falar com os professores deste país que estão em greve há um mês. Marcelo, que se diz professor, não demonstra um pingo de preocupação, ou simplesmente empatia, pelos problemas da classe à qual tem sempre tanto orgulho em dizer que pertence.

 

Mas o mesmo se tem passado em cada greve deste país, dos têxteis, dos transportes, do setor da saúde ou da energia. Marcelo, que se vai desmultiplicando em viagens, em aparições e comentários públicos a tudo o que acontece, por mais despropositado que seja — incluindo os jogos da seleção de futebol —, em selfies parolas, abraços e beijinhos superficiais, nunca, até ao momento, teve um ato de genuína preocupação para com os problemas e angústias dos trabalhadores deste país, dos verdadeiros responsáveis por se diminuir os défices e por se aumentar as exportações ou outros índices económicos.

 

Por ventura, um mandato inteiro não será suficiente, nem dois, nem três, se acaso existisse a possibilidade, para que o povo compreenda isto: os afetos não são neutros. Têm cor. Assumem posição. E essa posição é a do poder económico burguês. Os beijinhos e os abraços, esses, servem apenas para embalar as massas, condenadas a uma condição de servidão sem fim à vista.

publicado às 11:29

Duas razões para não escrever

De vez em quando, recebo mensagens que perguntam porque não escrevo mais frequentemente. Em resposta a essas mensagens apresento, de seguida, duas razões essenciais.

 

A primeira é a ausência de tempo e energia para escrever tão frequentemente quão desejaria e porque, ao contrário do que os leitores possam imaginar, este blog não é o centro da minha vida, nem de perto, nem de longe. Existe uma grande quantidade de outras coisas que me despertam o interesse e eu acho que isso é também enriquecedor dos textos e opiniões que constam deste espaço.

 

Kasper Gutman, o famoso personagem do clássico de cinema noirA Relíquia Macabra (título original: The Maltese Falcon), dizia a Sam Spade, o detetive protagonizado por Humphrey Bogart, que desconfiava do homem calado, porque este geralmente escolhia a hora errada para dizer as palavras erradas. Para ele, falar não podia ser praticado de forma judiciosa, a menos que se falasse o bastante.

 

Escrever, como falar, tem que ser praticado de forma abundante para poder ser feito judiciosamente. Tendo a divergir, contudo, de Gutman num ponto: quem fala e escreve demais, a toda a hora e a todo o momento, tem propensão para produzir comunicações de pouco valor e para dizer o que não quer e o que é irrefletido. Não dando um passo atrás antes de falar, não dedicando uma boa dose de reflexão sobre os temas, nem empregando um olhar vasto, como um abraço à realidade em redor, é impossível emitir opinião em qualidade, em amplitude de contexto e de bom-senso.

 

Este é um problema bem visível, por exemplo, no nosso Presidente da República: um comunicador voraz, experimentado, constante e absorvente do espaço mediático, mas uma a uma, as suas intervenções são de um vazio retumbante. Não é por acaso que o Presidente fala, fala, fala muito, fala disto e daquilo, do atual e do passado, pronuncia-se sobre tudo mas, no fim de contas, ninguém sabe bem o que ele disse, nem sabe quais as consequências do que disse para a sua situação, ou seja, o que ele diz não interessa muito. O que fica para lá de todo o infindável jorro de palavras do Presidente é uma, e somente uma, única palavra, a palavra “afeto”, como um leitmotiv ensurdecedor de toda a controvérsia, de toda a discussão, de todo o debate, e, claro, os fonéticos e teatrais abraços e beijos que distribui pela população.

 

A segunda razão porque não escrevo tanto quanto desejaria é a falta de paciência para lidar com a repetição. Por exemplo, há um ano escrevi este texto sobre a Lisbon Web Summit que hoje poderia repetir aqui na íntegra. Passou um ano e a febre em torno desta tonteira, deste disparate megalómano de gente preguiçosa, incapaz e intelectualmente infértil ainda se tornou maior, mais demente, mais pestilente.

 

Isto é bem compreensível, na verdade. É a febre do empreendedorismo, daquela ideia falsa que o capitalismo tão bem sugere de que é possível fazer dinheiro a partir do nada, de necessidades artificiais, vendidas através de um website apelativo ou de uma app qualquer. No fundo, bem lá no fundo, é aquela ideia tão atrativa de que é possível triunfar fazendo de burros o resto da malta, impingindo-lhes necessidades que nunca tiveram antes, extorquindo-lhes rendas por esses serviços de que nunca antes precisaram, frequentemente com criação minimal de emprego e com domicílio fiscal no exterior. Para o estado, para o país, o retorno é próximo de zero, se excetuarmos, claro, as bebedeiras na hotelaria lisboeta por altura da conferência.

 

O reconhecimento da recorrência deste tipo de fenómenos afasta-me da sociedade. Sentir que, ano após ano, nada se transforma, observar o drama desta inércia faz-me não comentar e não escrever. E, por isso, não comento, nem escrevo.

 

Meio mundo virtual está agora em polvorosa com o facto de um jantar final inserido nesta Web Summit ter tido lugar no panteão nacional, a Igreja de Santa Engrácia. Não percebo esta febre de indignação. Simbolicamente, parece-me perfeitamente adequado. A Web Summit janta e defeca lado a lado com os restos mortais de alguns dos mais ilustres cidadãos portugueses de sempre, dando corpo literal à proverbial metáfora: somos um país de papalvos provincianos, sem vestígio de identidade nem noção de história.

publicado às 16:41

Marcelismo da era moderna: a transformação silenciosa do sistema

A cada aparição despropositada do Presidente da República, seja nos hospitais por causa da legionella, seja nas barragens a propósito da seca, seja nas localidades vítimas dos incêndios, Marcelo parece que diz: “Estes tipos — os do governo, os das instituições públicas, os médicos e os bombeiros — não são de fiar para fazer o que é preciso, mas não se preocupem, o Presidente está aqui para tomar conta do acontecimento. Se houver problema, a culpa é deles, mas estarei aqui para apontar o dedo.”

 

Bem vistas as coisas, o papel a que o Presidente se presta é de todo em todo indecente. Ao mesmo tempo que apoia o governo, tudo faz para o relegar para um plano secundário a roçar o desprezível. Faz tudo parte do plano de Marcelo: uma transformação silenciosa do sistema, que visa instituir um regime presidencialista, ainda que informal — até ver! —, no país. Depois dos ignóbeis cavaquismo, socratismo e passismo, quem diria que viria um marcelismo da era moderna tomar conta de Portugal, a reavivar o fantasma do padrinho do Presidente, o último ditador fascista assumido deste país?

publicado às 22:38

Marcelo, o vaidoso sagaz

Desde o anúncio da candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa à presidência da República, foram feitas análises e previsões, traçaram-se cenários sobre cenários, baralharam-se hipóteses mais ou menos remotas e, cada uma delas, acabou por sair frustrada, derrotada pela história dos factos, caída na valeta do descrédito. Primeiro, espantaram-se com o incondicional apoio de Marcelo ao frágil governo que mal parecia equilibrar-se numa corda bamba de improváveis alianças. Depois, incrédulos, petrificados perante os raspanetes merecidos — mas que ninguém ousara dirigir — àquela criança mimada e mal educada, de mau perder e que se recusava emprestar o seu brinquedo, que então liderava o principal partido da oposição. Passos Coelho, com efeito, havia de sucumbir a um isolamento político construído pela hábil e paciente mão de Marcelo. Mais recentemente, Marcelo surpreendeu a opinião pública com um discurso duro e mais que justificado contra o governo e, do qual, se retirou uma demissão de uma ministra.

 

Porque é que todos os comentadores, todos os cenários, todas as previsões, ou quase todas, têm falhado ao longo desta primeira parte do reinado de Marcelo? A razão é o facto de ignorarem, ou pelo menos subestimarem, aquela que é a característica chave do personagem Marcelo Rebelo de Sousa: a sua vaidade.

 

Marcelo é um homem vaidoso. Quer ficar na história do país, quer ser reconhecido, quer ser grande aos olhos do povo por muito incapaz que seja ou por muito que nada faça de substantivo. Mas é este o seu desígnio que coloca acima de qualquer outra coisa, incluindo putativas lealdades partidárias. É isto que o define como homem, a sua vaidade poderosa, alicerçada numa experiência e sagacidade que não devem ser menosprezadas. Por isso, desde a primeira hora, Marcelo desmultiplica-se em viagens de estado e em ações mais ou menos estéreis, não rejeita uma aparição pública, reage a tudo o que mexe no país e não nega nenhuma entrevista, pelo contrário, promove-as. Com a sua ação, Marcelo sobrepõe-se ao governo, secundariza o primeiro-ministro, criando, sozinho, uma espécie de regime presidencialista informal. E é por isto mesmo que, para Marcelo e para a sua estratégia, não há nada melhor que um governo frágil.

 

Tivéssemos um governo forte de maioria absoluta e estas mesmas ações de Marcelo teriam um impacto reduzido à insignificância objetiva do seu cargo. Tivéssemos um governo forte e Marcelo seria um mero animador de telejornais, uma irrelevante extensão do comentador que foi durante os anos passados. Mas o governo que temos não é forte. Ao dar-lhe a mão, Marcelo capturou o governo na sua teia. Porque o governo precisava de todo o apoio que pudesse ter, deixou-se cair na armadilha. Paulatinamente, como dizia, a figura do Presidente foi-se sobrepondo à figura do primeiro-ministro e do seu governo. Hoje a palavra do Presidente vale muito. Mas amanhã fará tremer a sociedade.

 

Ao contrário do que se propala, não foi o duro discurso de Marcelo que fez com que a ministra se demitisse. Aliás, também aqui, neste ponto, se atesta a profunda sagacidade do Presidente. Marcelo sabia de antemão que a ministra se iria demitir e, precisamente por estar consciente disso mesmo, produziu aquele discurso duro e crítico relativamente ao governo. Se Marcelo tivesse falado e nada tivesse acontecido, a sua autoridade teria saído enfraquecida, a sua palavra cairia na insignificância. Assim, falou sabendo o que iria acontecer para induzir no povo uma ideia de causalidade entre discurso e demissão. Porque não falou Marcelo após Pedrógão? Porque não falou semanas antes? Não falou nesse nem noutros momentos, porque esperava o momento certo para produzir o efeito que pretendia.

 

Com isto, a palavra de Marcelo valerá muito mais no futuro. Desengane-se quem se apressa a adivinhar a queda do governo num futuro próximo. Marcelo aguentará este governo o máximo de tempo que conseguir. Marcelo precisa deste governo por ventura mais ainda do que este governo precisa do apoio de Marcelo. Não há governo que dê a este Presidente tanto em protagonismo, em relevância política e em poder quanto este. E quando vier um novo governo, Marcelo não será já a frágil figura que era quando assumiu o cargo. Atente-se nas palavras temerosas de Santana Lopes e Rui Rio para com o Presidente. Eles também estão conscientes de que o próximo governo nascerá dos restos mortais deste, amordaçado na teia habilmente tecida por Marcelo Rebelo de Sousa ao longo destes tempos.

 

Não se esqueçam: Marcelo não se move por nenhum interesse vulgar e comum a tantos outros presidentes e chefes de estado. Neste sentido, Marcelo é absolutamente incorruptível. Tudo o que fará terá que ser compreendido tendo em consideração o seu objetivo fundamental: o máximo reconhecimento por parte das massas. É a isto que Marcelo é profundamente devoto. Presidente dos afetos? Não, isso é música para embalar o povo.

 

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publicado às 18:58

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