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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Um jogo perigoso para a democracia

— Como me posso tornar eterno? — perguntava o rei.

— Cria o teu próprio inimigo e faz-lhes crer que ele traz consigo o fim do mundo —, respondia o velho sábio.

A democracia portuguesa está mergulhada num jogo perigoso. Com a esquerda sem conseguir sequer ensaiar uma recuperação da massiva descredibilização a que foi votada com a “geringonça”, com uma direita tradicional mais ou menos morta, já meio enterrada, com lideranças cada vez mais embaraçosas, o PS viu no Chega uma oportunidade para se eternizar no poder. O Chega permite ao PS bipolarizar radicalmente o país com vantagem para si próprio, agregando o eleitorado “moderado” pela negativa, adotando a mesmíssima tática aplicada por Macron (e não só) na França, face à Frente Nacional, em sucessivas eleições.

É um jogo perigoso, de facto. O PS alimenta — com a ajuda de uma comunicação social que vibra com cada encenação de Ventura — um polo ideológico contrário às liberdades e à pluralidade democrática. E, com isso, o PS aventura-se cada vez mais à direita, perde a vergonha, o decoro, a decência da ética política. Sabe que pode fazer o que quiser que, no final do dia, dar-lhe-ão a vitória face ao perigo fascista que se ergue do outro lado.

Poderá chegar o dia em que a maioria do povo não consiga distinguir entre o menor dos males. O problema, todavia, é que, quando esse dia chegar, provavelmente não sobrará muita coisa que os distinga.

publicado às 14:12

O que vale a democracia ocidental?

Surgiu-me esta reflexão a propósito da água. Já ando para escrever a respeito da água, ou melhor, da gestão dos nossos recursos hídricos há algum tempo. Anda a ser ventilado que as autarquias já se preparam para racionar a água às populações, que as barragens estão vazias, que estamos em seca extrema e por aí adiante. Parece que todos compreendem a situação. Aparentemente, é mais uma consequência dos tempos de emergência climática! (Há tanto para falar sobre as famigeradas “alterações climáticas” que só servem para vender painéis solares e carros elétricos...)

São estes os tempos em que vivemos: apresentam-se factos consumados, nós aceitamos e obedecemos de bom grado. É esta a imagem perfeita deste simulacro de democracia de que tanto nos orgulhamos!

Seria preciso contar o resto.

Seria também preciso dizer coisas tais como que o consumo de água do povo trabalhador é uma pequena parte do consumo total de água no país. Seria preciso dizer que a maior parte da água é desbaratada pela agricultura intensiva da moda e que só serve para enriquecer uma meia dúzia à custa de mão de obra pauperrimamente paga. Seria preciso dizer que o turismo intensivo e desregrado representa uma péssima gestão das cidades e dos seus recursos. Seria preciso dizer que, devido ao encerramento das centrais de produção de energia a carvão, as nossas barragens estão a carburar mais do que o que deviam e a desbaratar os nossos recursos hídricos. Seria preciso dizer que, a propósito do conflito energético em que nos metemos, estamos a produzir mais do que o que devíamos para podermos ser chamados a ajudar os países do norte quando chegar o inverno. Ah: já me esquecia de mencionar os sempre verdejantes campos de golfe, tão úteis para o nosso país e que merecem toda a água para se manterem frescos e viçosos!

Mas nada disto é dito. Nada disto é sequer considerado no debate. Eventualmente, pesados todos os argumentos, seria possível que déssemos as mesmíssimas respostas face a este problema. Mas a questão é que nem sequer consideramos o outro lado.

O que vale a democracia ocidental? Uma ilusão de escolha livre. Uma ilusão de decisões governadas pela razão cientificamente fundamentada. Uma ilusão de ponderação de diferentes opiniões. Uma ilusão que é como uma linha intangível que acreditamos que nos separa de um qualquer sistema despótico.

publicado às 10:56

O governo que pode tudo

Mais uma semana, mais um “evento”, incompetência, incapacidade, falta de senso, o que quer que se queira chamar, mais um objetivo cumprido no rol “a fazer” do governo mais incapaz de que há memória. Faça o que fizer, nada lhe acontece. Não é que devesse suceder alguma coisa, bem entendido. É uma maioria absoluta. O que faz, o grotesco que é, apenas reflete de volta, qual espelho cristalino, ao povo que o elegeu e o suporta. Não tenhamos ilusões: houvesse eleições já amanhã e este governo ganharia de novo ou... outro da mesma “qualidade”. O povo escolhe. O povo tem.

publicado às 08:08

A quem é que o estado serve?

A inflação tem, seguramente, diversos efeitos nefastos numa economia, efeitos que conduzem à disrupção de padrões de consumo e de circulação do capital, tornando a economia mais receosa e conservadora e acelerando a sua perigosa tendência natural em capitalismo: a acumulação de riqueza.

Para o estado português, todavia, a inflação traz consigo um potencial inesperado, que o mesmo espreme até que as massas se comecem a contorcer e a retorcer de insuportáveis dores. O país com uma das mais elevadas cargas fiscais da Europa aguenta até ao último segundo para baixar umas décimas de impostos, aproveitando, nos “entretantos”, todo esse imoral excesso de tributação. Depois, o estado ainda se vangloria, na cara do povo proletário, como se lhe estivesse a fazer um grande favor! Prática consolidada, em décadas, com os combustíveis, estende-se agora à generalidade dos produtos, em média, 8% mais caros. Se queremos estabilidade, temo-la no IVA que “resiste”, sólido, determinado, nos 23%.

O povo devia saber onde está a ser aplicado este excesso brutal e, reforço, imoral de tributação. Se assim fosse, algumas coisas tornar-se-iam mais claras. Por exemplo, para que é que o estado serve e a quem é que o estado serve. Não tenhamos ilusões, todavia. Com a segurança social passa-se a mesmíssima coisa. Dada a mortalidade extraordinária que, infelizmente, tem afetado sobretudo reformados e pensionistas, uma pergunta fundamental emerge: a segurança social está rica? E, se não está, para onde está a ir o dinheiro? É que nem a idade da reforma baixa de forma significativa! Voltamos ao princípio: se isto nos fosse explicado, perceberíamos claramente para que é que o estado serve e a quem é que o estado serve. E, então, as coisas poderiam diferentes.

publicado às 11:18

Costa a fazer currículo

Ai o Costa vai a Kiev assinar um protocolo qualquer não sei das quantas? Ai é? Faz muito bem, sim senhor. Tem que continuar a preparar a sua vidinha futura, fazer currículo para se poder candidatar a algum cargo importante nesta união europeia decadente, ainda antes do seu mandato de primeiro-ministro acabar. Preocupação com o nosso povo, zero. O que nos vale é não contarmos para nenhuma espécie de campeonato na geopolítica internacional.

É o que nos vale. Ainda assim, devíamos ter mais cuidado. Mandamos muitas bocas, mas não somos exatamente como o papagaio... não temos asas! É sempre engraçado armarmo-nos em valentes às custas dos outros. Costa manda bocas e o povo é que vai pagar por isso. Já estamos a pagar por isso. E a fatura tem tendência a aumentar.

Uma ideia, assim, de repente: e promover a paz? E opôr-se ao alimentar belicista deste conflito?

publicado às 10:55

O rescaldo possível

Para mim é sempre difícil, penoso, fazer o rescaldo das eleições em Portugal, sejam elas quais forem. Para um revolucionário que vê neste sistema capitalista as correntes que não nos deixam ser livres, viver em plenitude, perseguir os nossos sonhos de um modo sustentável e racional, todas as vitórias são meramente simbólicas, todos os ganhos são escassos e todas as derrotas demasiado dramáticas porque se constituem como oportunidades perdidas, adiamentos do progresso que a humanidade reclama, mesmo que disso não tenha qualquer consciência.

As passadas eleições não trouxeram nada de novo, muito embora a comunicação social se tenha excitado muito com a maioria absoluta do PS e o grande crescimento da extrema-direita neoliberal e fascista. Não considero estes factos verdadeiramente surpreendentes, de facto. Quando pensamos bem na coisa e no modo como foi preparada, vemos que não há muito de surpreendente nisso: o discurso fortemente bipolarizador, a ameaça da extrema-direita, as sondagens com empates técnicos fictícios e, claro, uma esquerda sem um discurso próprio, sem um discurso afirmativo, sem a capacidade ou a vocação para desmascarar as intenções e as práticas políticas do PS — em boa verdade, depois de seis anos de colagem total à governação socialista, como poderia tê-lo feito? Adicione-se uma liderança verdadeiramente incapaz da parte do PSD, um António Costa a acenar com aumentos e distribuições de verbas da forma mais inadmissivelmente anti-ética, e fez-se a calda perfeita para o resultado eleitoral verificado.

Do lado da direita, também não considero os resultados particularmente brilhantes, ao contrário do que a comunicação social reacionária tem procurado veicular. Juntos, Iniciativa Liberal e Chega obtiveram qualquer coisa como 13% de votos, 8% para o Chega e 5% para a IL. Claro que houve um crescimento, mas em si mesmos, são resultados bastante medíocres: 8% para a terceira força política é dos resultados mais fracos de sempre e considerando o quase desaparecimento do CDS estes resultados são ainda mais irrelevantes. Note-se que, há uns anos, Paulo Portas chegou a obter um resultado equivalente a estes 13% sozinho com o CDS. O que se passou foi, com efeito, uma transfiguração da direita, uma mudança de rostos e de plataformas políticas. É manifestamente injustificado, ainda, falar-se num crescimento da direita: a única coisa que aconteceu foi uma substituição de direitas e transferências praticamente diretas de votos.

O que resultou de mais grave nestas eleições é a perceção clara de um enfraquecimento substancial da esquerda que perde votos para o PS e, até, para o Chega. PCP e Bloco estão reduzidos a meros 10% de votos. É grave a transferência de votos operada, porque significa, mais que uma erosão eleitoral, uma erosão ideológica. Há algo de realmente errado quando uma pessoa que vota Partido Comunista passa a votar PS ou — imagine-se! — Chega. Devia ser sobre isto que estes partidos, PCP e Bloco, deviam ponderar com seriedade. Que eleitorado pretendem? Que eleitorado estiveram a construir com os seus discrusos e as suas práticas? Foi isto que conseguiram com seis anos de geringonça.

O que resulta surpreendente nestas eleições, e também nas demais, é que o povo não nos surpreende. As grandes massas, por muito que deem aso, diariamente, à mais contundente crítica relativamente ao sistema político e seus serviçais, demonstram à saciedade a sua aversão completa por qualquer vislumbre de mudança, um comodismo implacável pela situação presente, uma genuína falta de ambição por um futuro melhor, mais próspero, mais honesto e mais justo. A distribuição dos votos é, essencialmente, sempre a mesma. As escolhas são sempre, essencialmente, as mesmas. Como que se isto fosse o melhor que estamos autorizados a ambicionar. Como se isto fosse a meta que queríamos atingir, o paraíso na Terra tal como nos foi prometido. No final das contas, contados e recontados todos os votos, é essa sensação de resignação que fica e que me deixa sempre muito desanimado.

publicado às 16:03

A regionalização que se prepara

A raiz de toda a propaganda está no processo de representação, na capacidade de sintetizar a coisa através de um símbolo. A propaganda dedica-se a criar universos imaginários suscitados por uma ideia e com a capacidade de a representar, de lhe dar um corpo, uma manifestação em coisa palpável, de tal modo que a ideia passa a ser a representação que se faz dela.

Neste sentido, é sempre avisado questionar os conceitos em discussão, mormente antes da discussão ter lugar. De que é que estamos a falar, exatamente? A que nos referimos? Isto vale para os conceitos mais abstratos como liberdade ou democracia, mas também para outros menos abstratos como igualdade e ainda outros que parecem ser muito concretos e bem definidos como regionalização.

O debate da regionalização que ocupou algum do espaço mediático nos anos noventa referia-se a um instrumento de descentralização do investimento público, o qual, já na altura, encontrava-se perfeitamente concentrado na região de Lisboa em evidente prejuízo para as demais regiões. A regionalização apresentava-se, assim, como uma forma de melhor distribuir verbas e de aplicá-las regionalmente de um modo mais participativo e democrático. Essa regionalização seria importante, mas não necessária para se atingirem esses fins que eram apresentados à vista.

Devemos entender bem esta diferença. A política de desinvestimento e de abandono do interior, das zonas rurais, em favor das zonas costeiras e das grandes metrópoles, particularmente a capital, em redor da qual se foi acumulando uma maioria esmagadora e insustentável de população, tem sido uma política sistemática, bem dirigida e racionalmente orquestrada pelos sucessivos governos. Não se tratou de nenhuma inevitabilidade. Foram medidas concretas, aceleradas no novo milénio, penduradas nas sucessivas crises capitalistas como justificativas oportunistas. Devemos ter consciência disto antes de prosseguirmos.

Avancemos, pois, no desenrolar da história. Neste fim-de-semana, António Costa, no seu eticamente reprovável duplo papel de primeiro-ministro e candidato ao cargo, promete um referendo a propósito da regionalização para 2024 na sequência do processo de descentralização levado a cabo pelo PS para as autarquias. Este é, portanto, um momento importante que nos deve levar a parar e a refletir, a questionar e reconstruir os nossos imaginários sobre o tema.

António Costa fala na regionalização como uma consequência de um processo de descentralização bem feito, processo esse que, sabemo-lo bem, nada mais tem sido do que um processo de desresponsabilização do estado, de pulverização das suas valências, de precarização das condições de trabalho dos servidores públicos, de diminuição das verbas alocadas para as funções essenciais do nosso estado e de decadência dos serviços públicos em geral. Correndo o risco de cometer a maior das injustiças, as evidências apontam para uma regionalização que se prepara em moldes distintos da regionalização que se pretendia nos anos noventa: um mega processo generalizado e legalmente instituído que podemos descrever como a “subcontratação” dos serviços essenciais do estado pelas suas várias sucursais (regiões) que, depois, farão a gestão desses serviços como bem entenderem. Compreenderá este processo, como é natural, um subfinanciamento crónico, estruturalmente instituído, democraticamente protegido, a salvo de escrutínio popular, mais ou menos mitigado pela identificação da cor política da região com a cor política do governo central.

O povo queixar-se-á, claro, mas será um queixume mal direcionado, dirigido aos que administrarão escassas verbas. As regiões esquecidas hoje, continuarão votadas à decadência com a regionalização, porque para que tal não acontecesse, o estado central teria que retirar verbas à grande Lisboa para as dedicar às regiões com cento e poucos habitantes, mas isso poderia fazê-lo agora, nada o impede, não precisava nem de regiões, nem de mais governantes, secretários ou burocracia. Mas as prioridades do estado central têm sido outras, a saber: encerramento de escolas, hospitais, correios, serviços públicos e até mesmo freguesias. Portanto, nada disto parece ser muito coerente, talvez porque as intenções com a regionalização não coincidam com a propaganda que a acompanha.

Na verdade, o erro é nosso em esperar de um governo burguês qualquer política que não seja em essência burguesa, isto é, que não vise a acumulação final do capital e a concentração do poder económico nas mãos da burguesia que se vai divertindo enquanto o povo, por sua vez, se entretém a discutir as migalhas que caem ao chão.

publicado às 10:05

Robin Hood ao contrário

Em cada orçamento de estado há três rubricas que são preponderantes: a educação, a saúde e a segurança-social. Curiosamente, ou talvez não, trata-se de três áreas contendo uma fatia de leão destinada ao sustento da esfera privada desse mesmo setor:

  • na educação, financiamento aos colégios privados, independentemente de haver oferta pública abundante na zona, de se regerem de acordo com regras e currículos alternativos próprios e de fazerem a seriação social que bem entendem;
  • na saúde, financiamento aos hospitais privados, clínicas privadas, laboratórios de análises e exames clínicos, com o estado subtraindo-se propositadamente, e com eventual prejuízo próprio, de diversas valências essenciais, desresponsabilizando-se claramente do seu papel no cuidado da saúde dos portugueses; há ainda esse seguro dos funcionários públicos chamado de ADSE que é um autêntico abono de família para a atividade privada;
  • na segurança-social, financiamento indireto a diversas empresas, nomeadamente no retalho, colocando mão de obra gratuita através dos centros de emprego, bem como diversos pacotes de apoio a fundo perdido como layoffs e fundos para tapar bancarrotas de conveniência e calotes aos trabalhadores.

Analisando a situação deste modo, até dá vontade de rir quando se fala no peso das responsabilidades sociais do estado no orçamento. São responsabilidades para com os privados, de facto. O estado, como aquele famoso herói da floresta de Sherwood, o Robin Hood, mas ao contrário: a sua vocação é roubar aos pobres para dar aos ricos. Por pobres entendamos aqueles que trabalham, que vivem do seu trabalho e que, sem poderem fugir ou ter situação contributiva na Holanda ou noutro qualquer paraíso fiscal da sua conveniência, pagam os impostos que sustentam as várias rubricas acima descritas.

publicado às 19:07

Até faz sentido...

Tantos “democratas” com medo de eleições...

Tanta expressão negativa, tanta crise, tanto augúrio de ingovernabilidade, tanta preocupação com dinheiros, tantos medos de eleições, em ouvir o povo, tanto desprezo pela democracia.

Se calhar, até faz sentido...

publicado às 15:42

Reflexões sobre o aumento do salário mínimo

Suponhamos que, amanhã mesmo, o valor do salário mínimo em Portugal passa a ser de 850 euros, substituindo os atuais 665 euros, conforme a proposta mais ambiciosa — a da CGTP — de todas que estão em cima da mesa. Para se poder sobreviver neste país, particularmente nas metrópoles, 850 euros é um valor claramente insuficiente pois mal chega para pagar uma renda de casa. Devemos ter isto em mente para qualquer discussão sobre o assunto: 850 euros de salário mínimo não permite uma vida sem recurso a habitação social e a demais caridade estatal ou de terceiros.

Dito isto, coloquemo-nos nessa posição de considerar a situação hipotética de um aumento — que é óbvio que não se realizará — do valor do salário mínimo para 850 euros. Ou até, para este efeito, de qualquer outro valor. O que aconteceria na prática? Qual o efeito real sobre a vida dos trabalhadores que dele usufruem? E sobre todos os outros?

No dia seguinte ao anúncio de tal aumento, a inflação dispararia acompanhando esse incremento nos rendimentos. Os preços dos bens e serviços aumentariam transversalmente, quer aqueles em relação direta com mão de obra barata, que aumentariam para suportar o aumento dos salários que teriam que pagar, quer os outros, por um mero processo de simpatia económica, isto é, simplesmente para cavalgar a onda desse aumento e captar algum do maior capital circulante. É a lógica deste mercado predatório. Repare-se que isto não se trata de um mero exercício especulativo: foi exatamente isto que sucedeu após o último aumento do salário mínimo.

Todos os preços aumentariam genericamente, o que se traduziria, por si só, numa ineficácia do aumento do salário mínimo no seu propósito de dotar as famílias, que dele usufruem, de um maior rendimento disponível. Sem qualquer tipo de controlo da economia, qualquer aumento do salário mínimo é instantaneamente absorvido, mantendo-se exatamente as mesmas margens de lucro do patronato, assim como as mesmíssimas proporções de distribuição do capital pela classe trabalhadora. Isto, claro, na melhor das hipóteses. O senso comum sabe bem que os aumentos dos preços tendem a ser sempre mais generosos e mais “arredondados” do que os aumentos salariais.

No imediato, a receita fiscal que o estado arrecadaria seria considerável. Falamos de impostos diretamente relacionados com o trabalho, mas também com o consumo. Seria mais que suficiente para fazer face às responsabilidades estatais referentes ao aumento da despesa relacionadas com o pagamento desse mesmo aumento do salário mínimo que afeta muitos dos seus funcionários públicos. Sobraria ainda muito dinheiro dessa arrecadação de receita. Todavia, o esquema do país manter-se-ia, na melhor das hipóteses, idêntico. Lembram-se? A economia ajusta-se e adapta-se. Convém não esquecer isso. A despesa geral do estado, enquanto macro-consumidor que também é, também aumentaria, já para não falar que, a breve trecho, o estado teria que aumentar tudo o que diz respeito a subsídios e apoios sociais, os quais, obviamente, não podem ficar desenquadrados da realidade e são, como não poderia deixar de ser, indexados ao valor do salário mínimo nacional.

É evidente que há efeitos multiplicativos, e que são positivos, relacionados com uma economia a funcionar com uma maior quantidade de capital circulante e esses efeitos não podem ser menosprezados. Porém, muita da propaganda em redor do tema do aumento do salário mínimo resulta frouxa e inconsequente na prática, quer a da direita, assolada de um pavor absolutamente infundado, quer a da esquerda, tomada de uma esperança vã em torno de uma medida da qual faz bandeira de imparável progresso.

O raciocínio da esquerda é que um aumento do salário mínimo terá forçosamente efeitos contaminadores de todo o panorama salarial no país, impelindo aumentos proporcionais aos salários intermédios. Tal efeito, todavia, nem sequer se verifica na função pública, a qual desespera por revisões nas tabelas salariais que o governo permanentemente ignora. No que diz respeito ao setor privado, então, a questão ainda é mais negra, com os salários intermédios perfeitamente paralisados, sem qualquer tipo de poder reivindicativo e cada vez mais próximos do salário mínimo.

Numa qualquer escola privada, por exemplo, vemos uma equiparação cada vez mais evidente entre o salário de um professor, o de um funcionário administrativo e o de um funcionário de limpeza, que, não obstante representarem funções com níveis de qualificação muito diferentes, são cada vez mais indiferenciados. De referir também o facto de que muito do trabalho atual, privado mas também público, ser pago a recibos verdes os quais, na prática, não veem qualquer tipo aumento.

Por esta altura, o meu leitor poderá estar a ficar confuso. Peço-lhe, por isso, que releia o meu primeiro parágrafo: o aumento dos rendimentos dos trabalhadores é absolutamente fundamental — não tenha dúvidas a este respeito. O meu ponto é outro: no quadro atual, com a economia que temos, com o governo que temos, perfeitamente serventuário dos lucros dos grandes capitalistas, qualquer aumento do salário mínimo é incapaz de cumprir os objetivos que se pretende e poderá mesmo funcionar ao contrário, provocando inflação, esbatendo diferenças salariais entre trabalhadores e, desse modo, na verdade, nivelando a redistribuição da riqueza por via salarial por baixo. No fim das contas, até o consumo interno, que se pretendia potenciar, poderá ficar mais estrangulado logo à partida nos gastos com os bens de primeira necessidade.

publicado às 10:59

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