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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

As alterações climáticas não podem servir apenas para estragar as férias ao proletariado

O Algarve tem a maior plantação de abacates da Europa, cada pé consome cinquenta litros de água por dia. A acrescentar a eucaliptais, campos de golfe, hotéis e turismo desenfreado. Depois é a seca extrema, a falta de água, as alterações climáticas. As alterações climáticas não podem servir apenas para estragar as férias ao proletariado.

publicado às 10:07

Refletindo sobre a “bazuca”

Não devemos deixar de assinalar o modo como está a ser colocada a questão sobre os fundos provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência, ou mais geralmente, o modo como todas estas questões relativas à nossa posição no seio da União Europeia são normalmente colocadas. A denominação “bazuca” é, em si mesma, muito esclarecedora. Sobre os fundos, com efeito, recaem as responsabilidades inteiras do nosso futuro coletivo e a sua “aplicação correta” reveste-se, nesse sentido, de uma enorme carga dramática, como se fosse o nosso derradeiro recurso a um estádio de desenvolvimento superior, a par das grandes economias do norte da Europa. Repete-se à saciedade o argumento de que, se não soubermos usar os fundos corretamente, hipotecaremos o nosso futuro.

Se o texto que escrevo agora for uma gota no oceano no universo da opinião publicada, pois que seja. Por muito que resulte grotesco ou surreal o que se seguirá, ainda assim é imperioso que o escreva. Escrevê-lo-ei, pois:

 

Não é uma questão de dinheiro, senhores.

 

Escrito está. É suficiente. Acrescentarei, todavia, a sentença seguinte, apenas para abrir a porta a uma outra profundidade de análise. Aqui vai:

 

O dinheiro que nos dão é pagamento fracionado pela liberdade (alma) que lhes vendemos.

 

Agora já chega. Fui além do que me havia proposto inicialmente. Deixei na mesa matéria suficiente para uma semana de reflexão.

É pena que não haja um debate sobre estas questões de natureza fundamental, primeira, e ficamo-nos sempre pelo debate dos tostões, das aplicações e das pequenas obras, sempre de reforma em reforma de um sistema para que o mesmo permaneça cristalizado no tempo. O resultado de tudo isto, todas as responsabilidades do fracasso inevitável, recairá, todavia, sobre as costas de um impotente sistema político servil as quais, um dia, cederão ao peso do populismo crescente de inspiração autoritária. O fascismo é apenas uma outra forma de capitalismo, não será assim? Estaremos cá para ver. Nós, os nossos filhos e os nossos netos.

publicado às 18:34

Uma cultura enraizada

Começam a vir à tona as contrapartidas gizadas pela União Europeia para nos conceder as generosas verbas previstas para os próximos anos e que compõem a chamada “bazuca”.

 

São de uma estirpe muito particular os inventores destes termos, destes epítetos tão graciosos. Podiam ter chamado de “avença”, “renda” ou, até, “esmola”, mas decidiram-se por “bazuca”, como uma arma potente para destruir qualquer coisa, qualquer coisa de muito mau, no contexto de uma guerra.

 

Como dizia no princípio, começam a vir à tona as contrapartidas para “tanto” dinheiro. Fala-se, por exemplo, num acordo para um plano reformista ao nível do que foi implementado no tempo da troika e no contexto de um plano de continuada liberalização da sociedade. Raquel Varela referia, n'O Último Apaga a Luz, que está prevista, por exemplo, a liberalização das profissões liberais tais como, por exemplo, os profissionais da área da medicina, cuja atividade deixaria de ser regulada pela respetiva Ordem. Já sabemos que, em circunstâncias análogas, só conheceremos os detalhes quando os mesmos estiverem prestes a bater-nos, de modo inevitável, na cara. Para já, ainda é cedo. Quem é que, todavia, precisa deles para ter a certeza do que se está cozinhar?

 

Quando se fala na “bazuca” ou se discutem os dinheiros vindos de Bruxelas notamos uma cultura instalada, solidamente sedimentada ao longo dos tempos, que é de uma falta de patriotismo, de um provincianismo e, fundamentalmente, de uma ignorância aterradores. O pensamento dominante é de que este dinheiro “nos é dado” e, adicionalmente, de que “ainda bem que nos impõem regras, que é para não ser a corrupção do costume”.

 

O que se pode dizer? Que estudem? Adiantará de alguma coisa? Que a nossa posição de submissão económica no contexto da União Europeia nos faz, de facto, credores e não devedores face aos proveitos das grandes economias europeias? Será que adianta dizer isto? E dizer que não se pode defender a democracia para a Bielorrússia num dia e no outro defender a imposição autoritária e não sufragada de políticas decididas por potências externas sobre o nosso povo? Será que adianta? Lamento, mas hoje não me sinto particularmente otimista. Os ignorantes não se cansam em repetir constantemente os seus discos. Eu já me canso rapidamente. E já aí está a religião do povo, prestes a começar com uma homilia cantada tão alto que faz parecer tudo o resto muito pouco importante.

publicado às 14:45

O meu 25 de abril não é o mesmo que o teu

Aproxima-se rapidamente o dia em que se comemoram 46 anos desde o 25 de abril de 1974, uma data histórica e ímpar para Portugal e que, independentemente das opiniões, marcou a entrada do país na modernidade.

 

A história de Portugal é marcada por um conservadorismo recorrente e insistente, de braço dado com um não menos irritante provincianismo. O país dos “brandos costumes”, das fezadas sebastiânicas em noites de nevoeiro, sempre de olhinhos brilhantes, boquiabertos, em direção à virtude estrangeira relativamente à incapacidade nacional e sempre, sempre, fazendo mundos e fundos, gastando o que tinha e o que não tinha, para impressionar os poderes além fronteiras. Ainda hoje vemos isso mesmo, vemos claro este padrão comportamental diante de nós, como nos ajoelhamos perante a autoridade europeia e não apenas, como fazemos de tudo para sermos os bons alunos de políticas que, em última análise, apenas lesam os nossos legítimos interesses.

 

Fomos para além da troika. Somos conservadores relativamente aos próprios conservadores, porque só assim podemos ser os bons alunos. Só assim podemos ser reconhecidos. Nada se compara com a espetacularidade do cortejo que, pelas ruas de Roma, marcou a entrada da embaixada portuguesa no Vaticano em 1514, um desfile que incluía leopardos, cavalos persas e um elefante indiano. Nada se compara com isso. Mas é exatamente esse deslumbramento, esse desesperado desejo de reconhecimento que eu chamo de atitude provinciana e que tem sido nota dominante na nossa, em todo o caso, brilhante e longa história enquanto nação.

 

A esta história de serventualismo impuseram-se exceções não muito frequentes e, ainda assim, por ventura mais odiadas do que admiradas. Uma delas, a mais recente, foi o 25 de abril de 1974. A revolução abriu portas a uma criação cultural e artística sem precedentes, a dinâmicas sociais que se julgavam inexistentes e permitiu que lográssemos compor uma lei fundamental que ainda hoje, virado um milénio de costumes, é motivo de estudo e é altamente considerada pelo seu alcance progressista.

 

O 25 de abril foi, com efeito, muito mais do que uma simples revolução para operar uma mudança de regime. Para muitos, foi uma revolução que pretendia a transformação das dinâmicas da sociedade, foi o resultado natural da falência de um modelo económico, mais do que de um regime político. Para muitos a revolução tinha um alcance diferente, lançando as bases para uma sociedade mais igualitária, sem classes, avessa à concentração de riqueza, pelo desenvolvimento do país e pelo bem estar de todos os cidadãos. Os conceitos de liberdade e de democracia não se esgotavam em meras encenações protocolares quadrienais: eram conceitos materializados no fim da fome, na habitação, educação, cultura e saúde para todos, no pleno emprego.

 

Este 25 de abril, pode-se dizer, foi efémero mas, todavia, as ondas de choque que provocou na nossa sociedade, que nunca deixou de lado o seu conservadorismo e o seu provincianismo de estimação, foram suficientes para influenciar o rumo do país durante décadas. O estado social criado, os direitos civis e laborais conquistados aí estão como prova viva do que escrevo.

 

É com tristeza que assisto ao desmantelar contínuo desse legado do 25 de abril de 1974 operado através da própria democracia. É com tristeza que vejo os ponteiros do relógio inverterem o seu movimento.

 

E é por isso que existem dois 25 de abril, duas revoluções. Existe a revolução dos progressistas, dos sonhadores, dos revolucionários, dos utópicos. Essa ficou aquém dos sonhos e da utopia mas foi maravilhosamente transformadora. E, depois, existe a revolução dos provincianos, dos conservadores, dos servis, daqueles que, em boa verdade, também estavam bem providos com o estado novo. Para esses, a revolução foi apenas uma transição, uma mudança de caras e hoje, mais velhos, mostram-se incapazes de esconder um certo saudosismo.

 

Para os primeiros é verdadeiramente impensável não se celebrar esta data histórica tão transformadora que foi, tão influenciadora que ainda hoje é. E é impensável que essa celebração não ocorra na casa da república e da democracia representativa que o 25 de abril concebeu. Para os segundos é mais que natural que tal celebração não tenha lugar ainda por cima quando tal disputa retira múmias dos respetivos sarcófagos, reaviva fantasmas, potencia fraturas sociais tão apetitosas politicamente nos dias de hoje.

 

O essencial da polémica em torno das celebrações do 25 de abril é este. O resto é conversa fiada de gente sem respeito e sem amor à data e para os quais a revolução não significa nada.

publicado às 17:01

As impressões que o covid-19 me dá

Depois de algum tempo de ausência neste espaço, por motivos de certo modo relacionados com as transformações que o covid-19 tem imposto às nossas rotinas, gostava de partilhar com os meus leitores algumas impressões que esta pandemia me tem causado. São impressões pessoais, observações empíricas sem valor científico, e sem quaisquer ambições neste particular, sobre o que me rodeia, sobre o que se tem passado. São reflexões despretensiosas acerca do que nós, cada um de nós, individualmente, e todos, coletivamente, revelamos ou temos sido forçados a revelar, da nossa natureza, da nossa organização, das nossas prioridades, dos nossos valores em face desta crise de saúde pública que tem posto em causa o nosso modo de vida.

 

A primeira impressão é para mim uma evidência: nestes momentos resulta claro o quão ineficaz é o nosso sistema económico. O capitalismo, com a sua pulverização característica de negócios e de empresas, com a sua liberalização das relações, das responsabilidades, mas sempre com o poder económico concentrado em escassos pares de mãos incógnitas e intangíveis vê-se incapaz, impotente até, para operacionalizar uma estratégia coerente e otimizar recursos para combater o flagelo, neste caso chamado de covid-19.

 

Se ao longo dos tempos de moderada ou anémica bonança há sempre justificações com as quais se adorna o sistema e se enganam os menos ilustrados ou os mais distraídos, a verdade é que, neste momento presente, não sobrevivem quaisquer argumentos. Amarrados aos interesses económicos para os quais existem, as nações europeias estrebucham para tentar fechar as fronteiras, para colocar os cidadãos em casa, para impor um estado de quarentena minimamente sério que seja minimamente eficaz.

 

Entenda-se a dificuldade da coisa no contexto estrito do desenho do nosso sistema económico onde a vertigem pela maximização dos proveitos se impõe a tudo e a todos, onde as conexões económicas se estendem a cada canto do globo para fugir ao escrutínio das finanças locais e de uma moralidade de distribuição digna da riqueza e onde, mais e mais, quem não trabalha não ganha. E, se não ganha, não come. Não é, pois, de estranhar a lentidão com que a generalidade dos países europeus atuou perante a ameaça de pandemia que encobria, então, os seus amanhãs. Não é, pois, de estranhar que a generalidade dos países europeus tenha aguardado até ao último instante para começar a agir.

 

Não querendo — longe disso! — ensaiar qualquer apologia ao sistema chinês, compare-se e aprecie-se a diferença entre o que se fez por cá e o que se fez por lá, na China, para controlar o surto de covid-19. É difícil comparar, bem sei, mas essa dificuldade — não se iludam! — favorece-nos enormemente pois é exponencialmente mais difícil gerir um problema de biliões do que um de milhões. Mas é fácil de entender. Foi fácil para a China colocar as pessoas de quarentena em casa — as pessoas trabalham, em regra, para o governo. Foi fácil para a China fechar a sua economia — o governo chinês tem uma posição dominante. Foi fácil para a China agilizar e otimizar recursos — dispõe de mão de obra e de indústria para produzir ventiladores, máscaras, material de hospital e o que quer que seja necessário. Foi fácil para a China desenvolver tratamentos específicos para a doença — dispõe dos meios tecnológicos e científicos para o fazer. Foi tudo fácil para a China. Para nós, europeus, sobretudo para países como Portugal, tão dependente de terceiros para tudo e para nada, depois de ter alienado tudo o que era indústria, agricultura, recursos naturais, depois de se ter submetido voluntariamente a um projeto de economia terciária satélite dos grandes países europeus, tudo é difícil. Para Portugal tudo é difícil.

 

A segunda impressão que queria partilhar é esta. A economia está em crise profunda não por causa das máquinas ou da inovação científica, não devido à falta de matéria prima, mas em razão dos seus recursos humanos estarem a ser afetados. Prestem atenção a este ponto. Contrariamente ao que a lavagem cerebral do costume nos diz, a força laboral é, ainda hoje, o fator mais determinante para a economia e para os países. Esta evidência que o covid-19 coloca a nu é inversamente proporcional com a importância que é dada aos trabalhadores, a uma mais justa retribuição do seu trabalho, a uma mais justa distribuição da riqueza. Pelo contrário, o que tem acontecido, desde os anos desde o fim da guerra fria até aos dias de hoje antes do covid-19, é precisamente uma diminuição de salários e de direitos laborais e uma cada vez mais desigual distribuição de uma riqueza que se tem acumulado cada vez mais nas mãos de uns poucos.

 

Mesmo agora, durante esta crise, serão os trabalhadores aqueles que sairão mais prejudicados no fim do processo. Por exemplo, multiplicam-se os apoios às empresas, apoios esses que os governos lhes dedicam sem quaisquer contrapartidas. Os trabalhadores, esses, veem-se ora forçados a trabalhar sem proteção e a expor-se ao vírus, ora forçados a ir para casa e viver com uma reduzida parte dos seus rendimentos ao mesmo tempo que as suas obrigações se mantêm em regra geral. E estes dão-se por contentes: os precários,  cada vez em maior número no tecido laboral dos países, perdem imediatamente os seus empregos e a estes ninguém lhes vale.

 

A terceira impressão diz respeito à ciência e aos homens e mulheres da ciência que temos entre nós. Considero espantosa a forma como, em momentos destes, a voz da ciência é praticamente inaudível. É caricato como se ouve tão pouco e se valoriza tão pouco aquilo que os homens e mulheres de ciência, especialistas das matérias, têm a dizer. As redes sociais têm um papel catalisador do ruído mediático que os media produzem, é certo, e também é verdade que a própria ciência assume sempre um papel ambivalente nestas matérias, refugiando-se em pareceres especializados e parciais para emitir posições frequentemente contraditórias e favorecer os obscuros interesses que as classes dominantes têm sempre nestes momentos.

 

Faltam hoje, mais do que nunca, talvez, pessoas com um conhecimento abrangente e sólido e não meramente especializado, capazes de analisar os problemas, apoiando-se noutros especialistas, e emitir opiniões fundamentadas no “estado da arte”, consistentes e coerentes que sirvam como um farol para a sociedade à deriva. Fazem falta destas autoridades. Não existem sequer, porque a nossa sociedade não as produz nem as valoriza, obcecada que está no conhecimento especializado que, podendo ser muito bom para produzir software e “tecnologia de ponta”, nestas alturas vale zero.

 

A quarta e última impressão é que nós, coletivamente, estamos muito próximos daqueles povos que acreditavam em virgens prenhas sem pecado, em múmias regressadas à vida, em deuses com cabeças de animais e em outras magias que tais. Somos um povo muito crédulo. Continuamos, neste ano 2020, um povo muito crédulo. A história que nos contam do covid-19 é algo que nos devia deixar em polvorosa e exigir explicações. A forma como este problema se abateu sobre nós e abalou as nossas vidas não devia ser encarada com cançonetas, frases inspiradoras de circunstância ou reflexões pueris e pouco profundas. Dá impressão que podem fazer o que quiserem e nós, povo, arranjamos uma forma de nos adaptarmos, de viver com isso.

 

Que espécie de gente somos nós? Não somos, definitivamente, uma que possa tomar o seu destino com as suas próprias mãos.

publicado às 18:12

Génova e Entre-os-Rios

Olhar para a tragédia ocorrida em Génova — sim, para variar, esta é uma verdadeira tragédia — com a queda de uma ponte que fazia parte do trajeto quotidiano de largos milhares de italianos, usada por muitos outros turistas europeus e mundiais para iniciarem a sua exploração do país por terra, pela Ligúria, Toscana, Piemonte, Lombardia, tem, como consequência imediata, acordar a minha escassa memória. Lembro-me de uma outra ponte que caiu, de uma outra tragédia que se abateu, entretanto esquecida.

 

Corria o terceiro mês do primeiro ano do novo milénio do calendário gregoriano. Ao quarto dia desse mês, um dos pilares da ponte Hintze-Ribeiro, que ligava Castelo de Paiva a Penafiel, na região de Entre-os-Rios, desabou levando ao colapso de um dos tabuleiros da ponte e, por consequência, à morte de cinquenta e nove pessoas que faziam, na altura, a travessia.

 

Há sempre o perigo da injustiça, da falta de bom senso, do oportunismo, até, quando se procura esboçar paralelismos rápidos entre situações com semelhanças imediatas e evidentes mas com contextos necessariamente diferentes. Sinto-me, todavia, forçado a fazê-lo. Ainda disponho de alguma memória e, por isso mesmo, a escrita destas palavras resulta inevitável.

 

Vou começar por contar o que aconteceu em Portugal nos tempos que se seguiram à tragédia. Salto aquela parte de mediatização da dor e de histeria dos meios de informação que durou o que tinha a durar mas não merece ficar na história. O governo passou incólume pela tragédia através da oportuna demissão voluntária do então Ministro do Equipamento Social de seu nome Jorge Coelho. Isto da responsabilidade política é coisa de natureza singular e sinistra. O ministro demitiu-se, o governo passou incólume, nenhuma consequência efetiva do ponto de vista da lei foi extraída disso, ninguém, por parte do governo, pagou pelo que aconteceu. Pelo contrário, algum tempo depois, o mesmo Jorge Coelho viria a ser contratado para um alto cargo na Mota-Engil, uma das maiores empresas de... construção civil e obras públicas.

 

Não é isto verdadeiramente incrível? Um governante responsável político pela queda de uma ponte é contratado para uma posição de destaque numa empresa de construção civil e obras públicas, que por acaso é a campeã dos concursos públicos e das adjudicações diretas neste país. Imagine-se se a mesma lógica fosse aplicada aos outros setores do país? Um professor que não dá a matéria e falta às aulas promovido a diretor da escola? Um médico que, por negligência profissional, prejudica a saúde dos seus pacientes promovido a diretor de um hospital?

 

Ao mesmo tempo, aventou-se que a razão da queda da ponte, há muito tempo sinalizada pelas sucessivas inspeções, ficou a dever-se à excessiva atividade de extração de areias do rio que conduziu a uma debilitação do suporte de um dos seus pilares que cedeu com o aumento do caudal do rio originado pelas chuvas daqueles dias. Moveram-se processos contra as empresas de extração de areia. Ninguém — absolutamente ninguém! — foi condenado. O governo pagou indemnizações aos familiares das vítimas, participou em homenagens e erigiu um monumento perto do local da tragédia. Os corpos de algumas das vítimas nunca chegaram a aparecer.

 

Não sei o que se vai passar agora em Itália, não sei como vai ser a sequência dos eventos após a queda da ponte de Génova. No fim de contas, pode até ser que tudo seja muito parecido com o caso português. De momento, gostava de salientar algumas diferenças.

 

O governo italiano parece ter assumido uma atitude muito diferente para com a empresa privada que geria a Ponte Morandi imputando-lhe responsabilidades claras e exigindo consequências legais e criminais. Aqui, em Portugal, ainda hoje as coisas são distintas. As empresas privadas recolhem os dividendos da exploração das estradas e das pontes através das portagens e ainda recebem complementos estatais para garantir lucros, para além das obras das pontes serem asseguradas pelo estado. É o caso, por exemplo, das obras que se avizinham na Ponte 25 de Abril. São as vantagens das privatizações no seu mais brilhante esplendor.

 

O povo italiano também parece ser feito de uma outra massa do que o povo português. De Itália, chegam notícias de que diversas famílias rejeitaram participar no funeral coletivo promovido pelo governo italiano e fazer parte do que consideram ser uma farsa, pelo facto do governo ser o último e principal responsável pelo ocorrido. Em Portugal não foi assim. Parece que não há nada que uma indemnização e um monumento não resolvam.

 

Entretanto, ainda me recordo de especialistas que, na altura da queda da ponte portuguesa, em 2001, diziam que outras pontes portuguesas corriam idênticos riscos. Em dezoito anos nada aconteceu. Não há-de ser nada, portanto.

publicado às 12:04

Duas razões para não escrever

De vez em quando, recebo mensagens que perguntam porque não escrevo mais frequentemente. Em resposta a essas mensagens apresento, de seguida, duas razões essenciais.

 

A primeira é a ausência de tempo e energia para escrever tão frequentemente quão desejaria e porque, ao contrário do que os leitores possam imaginar, este blog não é o centro da minha vida, nem de perto, nem de longe. Existe uma grande quantidade de outras coisas que me despertam o interesse e eu acho que isso é também enriquecedor dos textos e opiniões que constam deste espaço.

 

Kasper Gutman, o famoso personagem do clássico de cinema noirA Relíquia Macabra (título original: The Maltese Falcon), dizia a Sam Spade, o detetive protagonizado por Humphrey Bogart, que desconfiava do homem calado, porque este geralmente escolhia a hora errada para dizer as palavras erradas. Para ele, falar não podia ser praticado de forma judiciosa, a menos que se falasse o bastante.

 

Escrever, como falar, tem que ser praticado de forma abundante para poder ser feito judiciosamente. Tendo a divergir, contudo, de Gutman num ponto: quem fala e escreve demais, a toda a hora e a todo o momento, tem propensão para produzir comunicações de pouco valor e para dizer o que não quer e o que é irrefletido. Não dando um passo atrás antes de falar, não dedicando uma boa dose de reflexão sobre os temas, nem empregando um olhar vasto, como um abraço à realidade em redor, é impossível emitir opinião em qualidade, em amplitude de contexto e de bom-senso.

 

Este é um problema bem visível, por exemplo, no nosso Presidente da República: um comunicador voraz, experimentado, constante e absorvente do espaço mediático, mas uma a uma, as suas intervenções são de um vazio retumbante. Não é por acaso que o Presidente fala, fala, fala muito, fala disto e daquilo, do atual e do passado, pronuncia-se sobre tudo mas, no fim de contas, ninguém sabe bem o que ele disse, nem sabe quais as consequências do que disse para a sua situação, ou seja, o que ele diz não interessa muito. O que fica para lá de todo o infindável jorro de palavras do Presidente é uma, e somente uma, única palavra, a palavra “afeto”, como um leitmotiv ensurdecedor de toda a controvérsia, de toda a discussão, de todo o debate, e, claro, os fonéticos e teatrais abraços e beijos que distribui pela população.

 

A segunda razão porque não escrevo tanto quanto desejaria é a falta de paciência para lidar com a repetição. Por exemplo, há um ano escrevi este texto sobre a Lisbon Web Summit que hoje poderia repetir aqui na íntegra. Passou um ano e a febre em torno desta tonteira, deste disparate megalómano de gente preguiçosa, incapaz e intelectualmente infértil ainda se tornou maior, mais demente, mais pestilente.

 

Isto é bem compreensível, na verdade. É a febre do empreendedorismo, daquela ideia falsa que o capitalismo tão bem sugere de que é possível fazer dinheiro a partir do nada, de necessidades artificiais, vendidas através de um website apelativo ou de uma app qualquer. No fundo, bem lá no fundo, é aquela ideia tão atrativa de que é possível triunfar fazendo de burros o resto da malta, impingindo-lhes necessidades que nunca tiveram antes, extorquindo-lhes rendas por esses serviços de que nunca antes precisaram, frequentemente com criação minimal de emprego e com domicílio fiscal no exterior. Para o estado, para o país, o retorno é próximo de zero, se excetuarmos, claro, as bebedeiras na hotelaria lisboeta por altura da conferência.

 

O reconhecimento da recorrência deste tipo de fenómenos afasta-me da sociedade. Sentir que, ano após ano, nada se transforma, observar o drama desta inércia faz-me não comentar e não escrever. E, por isso, não comento, nem escrevo.

 

Meio mundo virtual está agora em polvorosa com o facto de um jantar final inserido nesta Web Summit ter tido lugar no panteão nacional, a Igreja de Santa Engrácia. Não percebo esta febre de indignação. Simbolicamente, parece-me perfeitamente adequado. A Web Summit janta e defeca lado a lado com os restos mortais de alguns dos mais ilustres cidadãos portugueses de sempre, dando corpo literal à proverbial metáfora: somos um país de papalvos provincianos, sem vestígio de identidade nem noção de história.

publicado às 16:41

Nacionalidade para lá dos "afetos"

Esta questão de atribuir nacionalidade portuguesa a filhos e a netos de emigrantes devia ser analisada com muito detalhe, assim como as suas consequências lógicas sobre aquilo que significa ser-se português ou doutra qualquer nacionalidade. Sim, proponho que nos desliguemos, por momentos, da “embriaguez dos afetos” do nosso Presidente, que é só conversa fiada para entreter desocupados e estúpidos entre selfies, abraços e aclamações sem sentido absolutamente nenhum. Não é por acaso, que também o Primeiro-ministro se cola aos “afetos”. Claro que sim. Como não havia de se colar? Percebe-se bem a razão de ser. Ele é o chefe de um governo de entretenimento de massas e, enquanto as massas estão entretidas com festinhas de “afetos”, a vida dele corre bem.

 

Por que razão um indivíduo que nunca pôs os pés em Portugal, há de ter nacionalidade portuguesa? Vamos mais longe: por que razão alguém que apenas mete os pés em Portugal durante o bom tempo de agosto, há de ter a nacionalidade portuguesa? O que é isto de ser português, afinal? O que é isto de ser um cidadão português e de exercer a sua cidadania? Pode-se ser cidadão de um país ou cidade quando nela ou nele não se vive? Pode?! Quando um neto ou filho de emigrante exerce o seu direito de voto, fá-lo a pensar nos seus interesses no contexto de Portugal ou no contexto do Brasil, ou da França, ou da Suíça, ou de onde quer que passe onze dos doze meses do ano?

 

Ainda há bem pouco tempo, pensei nesta questão a propósito das violentas manifestações da comunidade turca na Holanda. Quando forem chamados a votar, quer num país, quer noutro, como é que aquela comunidade decidirá o seu voto nas questões que opõem os dois países? Será esta questão irrelevante? Será este o nosso conceito de democracia nesta aldeia global do dinheiro?

 

Gostava que estas questões fossem analisadas com a seriedade que merecem em vez de serem abordadas, pela boca do Primeiro-ministro, com o ludíbrio dos “afetos” dos netinhos do senhor Presidente da República que vivem no Brasil. É que o problema é muito mais sério do que isso.

publicado às 12:36

Sobre os Le Pens e os Macrons

A fórmula mais eficaz para enganar o povo é fazê-lo crer numa sociedade a preto e branco, dividida entre bons e maus. Para ser bem sucedida, essa simplificação centra-se em um ou dois aspectos, no máximo, considerados como fundamentais e é bombardeada pelos media a todas as horas e a todos os minutos do dia até que o povo ceda, nem que por cansaço, até que deixe de questionar a formulação apresentada para apenas prosseguir a sua vida sem conflitos internos com a voz dominante.

 

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A minha opinião é que nos preocupamos demasiado com Le Pens, quais demónios encarnados em figura de gente, e muito pouco com Macrons, os que se opõem ao mal e, portanto, os bons. Enquanto isso, os Macrons vão trilhando a sua ação política de desregulação das sociedades, de desequilíbrio económico, de favorecimento de classe — a banca, a alta finança, os donos dos grandes grupos económicos, os capitalistas, a burguesia —, e conduzindo essas mesmas sociedades a pontos de rotura, já sem qualquer vislumbre nem de pátria, nem de nação, nem de coisa nenhuma. Os Le Pens são consequência dos Macrons e não o contrário. Se consideram que o primeiro é o mal e o segundo é o bem, é bom que pensem melhor.

 

Mas é mais fácil pensar assim, admito. Este pensar entretém por mais um tempo. Os exploradores e os explorados permanecem explorados e explorados. Há uma ira que vai fermentando por debaixo deste pensar, é certo, mas nos entretantos, enquanto não rebentar a bolha que se vai formando, esta sociedade burguesa vai continuando o seu caminho.

 

Em Portugal assiste-se a fenómenos parecidos todos os dias. Por um lado, enojamo-nos — e bem! — com qualquer coisa que soe a fascismo declarado. Por outro, batemos palmas ao personagem que, por ora, vai ocupando os Paços do Concelho do Porto, fazendo a apologia de ditaduras para pôr o país em ordem. Rui Moreira gosta, aliás, de proferir os maiores disparates histórico-políticos nas palestras para as quais é convidado amiúde. Não sabe mais, compreenda-se. Todavia, as plateias aplaudem-no. Diz que podemos precisar de ditaduras “para termos a nossa soberania económica, na segurança”. Diz que espera que não seja assim mas... o país pode querer aquilo, refere, do alto da sua sapiência, não deixando de fazer objetivamente um elogio aos méritos que, segundo ele, o sistema tem. Diz ele, também, que uma solução para as sociedades é passarmos a ter democracias diretas em que todas as pessoas votariam através de uma app de um telemóvel, como se estivessem a jogar Pokemon Go. E as pessoas aplaudem! Profere ainda outras frases de igual estirpe, mas estas que selecionei são realmente impressionantes. É inenarrável a decadência, a mediocridade intelectual do personagem, mas ainda mais grotesco é ver aquela plateia de alunos e professores do ensino superior a aplaudir estas alarvidades como se não dispusessem de mais do que um neurónio para raciocinar.

 

As pessoas aplaudem, é um facto. Depois de ser reeleito para a Câmara Municipal do Porto, vê-lo-emos, Rui Moreira, a tentar uma cadeira do poder central e é provável que consiga. As pessoas aplaudem-no, não se esqueçam! E prestem atenção: Rui Moreira não é um Le Pen, é um Macron.

 

Os ditadores não são os Le Pens, acreditem. Estes raramente chegam ao poder. Os ditadores são os Macrons e vão a votos e ganham. E são aplaudidos.

publicado às 09:02

Os símbolos de uma sociedade

Quando visitei Moscovo pela primeira vez fiquei fascinado com o edifício da universidade. Estaline mandou construir as mais altas torres no ponto mais alto da cidade, de tal forma que nenhum outro edifício da cidade pudesse suplantar em altura, e, concomitantemente, em importância, o edifício da universidade. O objetivo era claro: os mais adorados heróis da União Soviética haviam de ser os seus cientistas, os seus professores, todos aqueles que dedicassem a sua vida ao estudo e ao conhecimento. Esses deviam ser os primeiros ídolos da nação.

 

Este tipo de decisão é mais do que simbólica, já que marca indelevelmente a filosofia de uma sociedade, os seus princípios e em que é que a mesma se baseia, para o que é que vive, os seus objetivos e quem escolhe idolatrar. Primeiro estavam os homens da universidade, primeiro estava o conhecimento. Depois estavam os outros, cada qual com o seu quinhão de importância.

 

Esta visão cultural é indissociável do facto da União Soviética ter sido o estado que mais evoluiu num mais curto espaço de tempo, tendo pegado numa Rússia medieval e a catapultado para uma superpotência em todas as áreas do saber.

 

No nosso Portugal, todavia, os ídolos são outros: são os atores de novela, os cantores pop e os jogadores de futebol. Podemos ver, com efeito, que estamos no ponto diametralmente oposto àquele com que comecei este texto. Não é de estranhar, assim, a atribuição do nome Cristiano Ronaldo ao aeroporto da Madeira. Cristiano Ronaldo é apenas um jogador de futebol. Dá um chutos na bola. É muito bom naquilo que faz, mas é apenas um jogador de futebol, repito. Não sabe falar. Não tem uma ideia clara sobre nada de nada. Vive uma vida a ser bajulado pela fama e pelo dinheiro que tem. Todavia, é o ídolo do país. Seguindo os mesmos princípios, sugiro o nome de Tony Carreira para o novo aeroporto de Lisboa.

 

São estes os ídolos de Portugal. Não nos devemos admirar que 90% das crianças não gostem de Matemática, nem gostem de estudar. Os ídolos do país também não gostavam e nem por isso deixam de ser famosos e importantes e entretêm a malta com atividades sem interesse nenhum. É esta a construção de sociedade que escolhemos. Tudo isto são escolhas muito objetivas e muito conscientes que fazemos. A razão parece-me clara: entreter em vez de instruir. É sempre mais eficaz para se poder reinar sobre o rebanho.

 

http://www.telegraph.co.uk/content/dam/football/2017/03/30/124632319_REUTERS_A-bust-of-Cristiano-Ronaldo-is-seen-before-the-ceremony-to-rename-Funchal-Airp-large_trans_NvBQzQNjv4BqqVzuuqpFlyLIwiB6NTmJwfSVWeZ_vEN7c6bHu2jJnT8.jpg

 

publicado às 20:51

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