Marcelo e o poder da palavra
Numa altura em que parece — tenhamos sempre cuidado com o que parece — que a sociedade como um todo se revolta contra Marcelo, permitam-me ensaiar uma posição contrária, como é, aliás, meu habitual timbre — eu, tantas vezes crítico da atuação do presidente. Este governo merece ser demitido, disso não há qualquer dúvida. É um governo que se tem envolvido em tanta situação imprópria que parece ter perdido qualquer vestígio de respeitabilidade. Este caso Galamba é simplesmente a cereja em cima do bolo dos casos que a maioria absoluta tem avolumado, embora, falando estritamente em termos do decoro e da famigerada “ética republicana”, poderíamos dizer que é o bolo em cima das cerejas...
É óbvio que o Presidente poderia ter demitido o governo. Com isso, corria dois riscos: que o PS ganhasse sem maioria absoluta e com a necessidade de encetar sempre belicosas negociações à esquerda para formar governo, num quadro em que é necessário executar projetos e verbas europeias no contexto do plano de recuperação; que a direita ganhasse as eleições, abrindo as portas do governo à extrema direita. Creio que Marcelo não quis correr nenhum destes riscos e não terá querido, sobretudo, prejudicar a sua imagem histórica, a coisa que, julgo, mais preza, o modo como a história olhará para ele.
Em vez de dissolver o parlamento e desmantelar uma maioria absoluta, para todos os efeitos, legitimada popularmente, escolheu, na minha opinião, fazer algo mais inteligente: usar a sua posição, credibilidade e popularidade para explicar pedagogicamente aos portugueses a situação em causa, o que resultou, como não poderia deixar de resultar, num enxovalho mais que merecido a ministro, primeiro-ministro e governo. Esta atitude não só é louvável como é recomendável: a política devia ser mais vezes assim e menos ensopada da hipocrisia do costume.
Não se trata de uma atitude frouxa, como muitos apressadamente e irrefletidamente a qualificaram, bem pelo contrário. Com o seu discurso, com o poder das suas palavras, Marcelo revelou elevado sentido de estado e colocou em evidência a “qualidade” de alguns dos membros do executivo. Deixo aqui a questão que me parece mais relevante: que género de pessoa ouve o discurso de Marcelo e não se demite imediatamente? Que valores é que o podem continuar a mover? É sobre isto que muitos portugueses, no final do dia, ficarão a pensar.
Que as oposições, sobretudo à esquerda que são as que mais me interessam, estejam aliviadas por evitarem eleições antecipadas, isso é outra questão, mas é uma que devia ser motivo de embaraço para as forças políticas em causa e grave sintoma do seu estado atual de morbidez e definhamento.