Sobrestimar o povo
De vez em quando caio na real. Acontece. É importante cair na real.
O meu problema é sobrestimar o povo.
Hoje, na viagem de regresso, vinha a ouvir na Antena 2 um dos seus interessantíssimos programas. O de hoje à tarde versava a Inquisição. A Inquisição foi um movimento repressivo e reacionário da Igreja Católica que perseguiu todos aqueles que poderiam ameaçar a manutenção do seu poder sobre os estados, sobretudo os europeus. Neste sentido, perseguiu, torturou e executou, para além de membros de outras religiões, muitas das mais brilhantes mentes, homens e mulheres das ciências, das artes e da cultura, mas também defensores de um quadro de direitos e de liberdades mais avançados, humanistas e progressistas. A ação da Inquisição perdurou durante toda a Idade Média, atravessou o Renascimento e cada outro período até meados do século XIX. Disse bem, século XIX.
No programa de rádio, o locutor dizia que apenas uma pequena parte das denúncias populares conduziram a processos inquisitórios. Com efeito, o povo constituiu-se sempre como o principal aliado da barbárie, denunciando vizinhos e amigos, com ou sem justificação, e rejubilando com as queimadas públicas. Fazendo fast forward no tempo, vamos encontrar semelhante comportamento nos bufos da PIDE, no fascismo português. Não era preciso muito para alguém denunciar um companheiro por uma conversa de café. Não era o fascismo, nem era a PIDE. Era o povo que o fazia de bom grado.
O meu problema, repito, é sobrestimar o povo. Distraio-me muitas vezes e acredito que o povo pode ser capaz de muito mais do que aquilo que realmente pode. A Inquisição foi há menos de duzentos anos. O fascismo nem cinquenta anos de distância tem. Esperamos demais deste povo. Duzentos anos, cinquenta anos, não são nada em termos históricos. E o problema é que no interior do povo ainda estão bem vivas as mesmas motivações, o mesmo tipo de justificações coletivas, que conduziram às experiências reacionárias do passado.