No passado domingo, o primeiro de outubro de 2017, o ato eleitoral autárquico que se desenrolou veio a conceder no plano partidário uma esmagadora vitória ao Partido Socialista que lidera, por ora, o governo. O PS conquistou, com efeito, uma maioria absoluta de autarquias naquele que terá sido o seu melhor resultado em eleições locais conquistado à boleia de uma governação que tem tido boa imprensa, inexistente oposição e razoáveis resultados económicos que são mais fruto da conjuntura internacional do que das suas opções políticas próprias. O país, todavia, é sensivelmente o mesmo que era no tempo do ajustamento. A diferença está na consciência que tem de si mesmo.
No ponto diametralmente oposto situa-se, malogradamente, o Partido Comunista Português. O PCP perdeu um total de dez câmaras municipais, algumas muito tradicionais e com adicional peso histórico, como Almada, Castro Verde ou Barreiro, tendo visto a sua influência reduzida a vinte e quatro autarquias.
Este texto que escrevo não pretende apontar o óbvio nem esboçar justificações triviais. É evidente que o jogo político é injusto e desigual para o PCP com respeito aos outros partidos. Em Lisboa, por exemplo, o candidato comunista, João Ferreira, um excelente orador, superiormente preparado em nítido contraste com a concorrência que tinha, teve um tratamento absolutamente desigual por parte dos media, tendo passado quase despercebido. O facto torna-se ainda mais claro quando vemos o tratamento concedido pelos mesmos órgãos de comunicação social a uma candidata como Assunção Cristas cuja ação foi capaz de inundar os canais de televisão durante cada um dos dias da campanha, isto apesar do CDS ser um partido da mesma ordem de grandeza da CDU e apesar de Assunção Cristas não saber, ao que parece, articular mais palavras do que “governo das esquerdas unidas”.
Trata-se apenas de um exemplo, entre muitos outros, que atesta a desigualdade com que o PCP tem que conviver na sua ação política diária, em geral, e em cada campanha eleitoral, em particular. Depois ainda há o preconceito que, logo desde a raiz, ceifa do alcance do partido uma grande parte do eleitorado.
Como dizia, todavia, este texto não tem como objetivo apontar isto que escrevi, que é demasiado evidente. O que se pretende é tentar uma reflexão séria e descomplexada sobre as razões aderentes ao próprio Partido Comunista Português que o conduziram a esta derrota dura. O que terá feito com que em Almada, por exemplo, o PCP tenha sido derrotado por uma tal de Inês de Medeiros, aquela mesma deputada do PS que usufruía de ajudas de custo principescas do parlamento por ter residência em Paris?! O que terá levado o povo a uma coisa destas?
Faço aqui esta reflexão porque da parte do PCP ela parece não existir. Por detrás de uma cortina a que se chama de coerência e de organização nada parece acontecer, nenhuma consequência é retirada, nenhum ensinamento extraído. Só que às vezes a coerência é simplesmente uma forma de não se assumir responsabilidades, de não se prestar contas.
Não obstante tudo o que foi dito acima e que é apenas a ponta de um iceberg de tantas outras coisas que se poderiam dizer, o PCP tem responsabilidades sérias no que se passou. Acrescente-se que eu estou à vontade para o escrever aqui e elencar cada uma delas neste texto porque ao longo dos últimos anos fui escrevendo sobre o assunto. Aliás, quem acompanha este blog será capaz de reconhecer isso mesmo.
Começo pela liderança. O PCP tem uma liderança que seria anedótica se não fosse muito triste. Ano após ano vemos Jerónimo de Sousa, um perfeito incapaz no debate, na entrevista e em qualquer intervenção pública, em evidente inferioridade física nas campanhas, terminando cada uma delas em modo de morto-vivo, sem que nada aconteça, sem que nada mude. De certeza que o PCP não se olha ao espelho. Nada acontece, nada muda.
Se o parágrafo anterior não fosse suficiente, acresce que o PCP tem, desde a primeira eleição de Jerónimo de Sousa, uma estratégia de concentração da ação do partido em torno da sua figura. É evidente a perda de importância de figuras secundárias do partido e é evidente também que o partido não promove a ascensão de outros quadros que possam vir a partilhar protagonismo dentro do PCP.
Assim, o PCP de Jerónimo de Sousa é um partido que se confunde com o seu secretário-geral. Como já escrevi no passado, isto foi muito importante na fase inicial da liderança de Jerónimo de Sousa: serviu para agregar e unir. O problema é que, à medida que o tempo passa, a incapacidade gritante de Jerónimo de Sousa afasta em vez de atrair. As pessoas de esquerda são maioritariamente pessoas cultas, intelectuais que conseguem ver para lá da mensagem dominante, que conseguem pensar independentemente do paradigma de pensamento único que nos é vendido nos jornais. Essas pessoas, que são muitas, não se revêm em Jerónimo de Sousa, a sua intelectualidade não é nutrida e estimulada por este PCP que não consegue ganhar um debate ideológico e por estes líderes de léxico limitado e circunscrito a uma cartilha de palavras comuns e chavões que parecem escritos por uma mesma mão.
É muito difícil para alguém de esquerda identificar-se com o discurso monocórdico do PCP, sobretudo quando, em contraponto, temos os bem-falantes do Bloco de Esquerda mesmo ali ao lado.
Em segundo lugar nesta lista tem que vir o acordo parlamentar de suporte ao atual governo. A obtenção deste acordo, dinamizada numa fase inicial apenas pelo PCP, foi fantástica. Também já aqui escrevi sobre isto: permitiu mostrar à sociedade que o PCP é mais que um partido de protesto e que sabe fazer parte de soluções governativas. Também permitiu estancar a escalada neoliberal que vinha desmantelando o país. Numa fase posterior e à medida que esta solução se prolongasse no tempo, o PCP — previ aqui mesmo — viria a ser penalizado com isso, não fosse capaz de fazer valer os seus ideais com coerência e/ou distanciar-se com firmeza da atuação do governo PS.
O PCP é hoje um partido amordaçado pela solução governativa do PS e por si próprio. Está reduzido a um conjunto de reivindicações mínimas que o tornam num partido de minorias, de indigentes, de reformados e de funcionários públicos. O proletariado foi apagado, quase que por completo, da sua ação diária, subsistindo apenas na ação sindical e, mesmo neste estrito contexto, muito esquecido e abandonado à sua sorte nestes anos de governação socialista.
O proletariado não é apenas constituído pelos operários fabris: são os professores e os enfermeiros, os trabalhadores de call-center e os empregados de shopping, todos aqueles que vivem do seu trabalho e que, dia após dia, são mais e mais explorados. São aqueles que, mesmo trabalhando mais e mais horas, empobrecem a cada ano que passa. Sobre estes proletários o PCP não diz nada, nem acordou nada com o PS, nem estabeleceu nenhuma linha vermelha no seu incondicional apoio à governação socialista.
Volto a repetir, sem contar com a imprensa negativa, com a propaganda anti-comunista constante e com o preconceito, é muito difícil para alguém com o coração à esquerda identificar-se com o PCP.
Por fim, termino com o plano local. Estas eleições autárquicas revelaram que este desfasamento com que o PCP observa a realidade é mais profundo do que o possamos imaginar. Para além de variadíssimas péssimas escolhas para encabeçar candidaturas, personagens desajustados escolhidos tendo por base unicamente o seu nível de fidelização ao aparelho partidário, o PCP decidiu usar os seus míseros minutos de tempo de antena para repetir a frase “habitação social”. Para o PCP a habitação social é o problema das cidades, novamente colocando o ênfase nos indigentes, nos marginalizados e nos auto-excluídos.
Imagino um proletário qualquer, um professor, por exemplo, que trabalha em três colégios diferentes a recibos-verdes para, ao fim do mês, não ter com que “mandar cantar um cego”, a ouvir esta conversa da habitação social. Ele, que trabalha duramente para pagar a sua casa e a educação do filho e o resto das contas, vê-se confrontado com a possibilidade de ser construído um prédio na esquina da sua rua para albergar um punhado de gente que vive do subsídio, passa o dia a dormir e a fazer festas de noite. Será que este operário se sentirá atraído a dar o seu voto ao PCP? Não creio.
Também no plano autárquico, não obstante a obra feita, a honestidade e a competência na gestão que são evidentes, o PCP afasta os seus eleitores naturais e procura atrair uma porção de eleitores que na sua esmagadora maioria abstém-se de votar mas que, mesmo que votasse, provavelmente não votaria no Partido Comunista Português por não ser esse o seu quadro ideológico mais natural.
É claro que alguém que tenha um mínimo de cultura e de memória percebe que não existe verdadeira alternativa ao PCP. O PCP e os “seus” sindicatos são as únicas forças políticas e sociais que se posicionam incondicionalmente do lado dos trabalhadores. O Bloco de Esquerda, na sua inconsistente amálgama ideológica é um partido tão burguês ou que serve a burguesia tão bem quanto os restantes partidos parlamentares. E sem dúvida que, tivesse mais força eleitoral, o PCP poderia influenciar a sociedade de um modo mais profundo e mais consistente.
Mas os mais jovens, não tão experimentados nestas questões da política ou simplesmente distraídos, perdem-se em experimentalismos — todas as forças os empurram para experimentalismos. Não se identificam com o PCP, com a sua mensagem gasta e com os seus representantes cinzentos e entregam o seu voto em mãos traiçoeiras e menos dignas. E é só quando se desiludem — e a desilusão pode ser demasiado tardia — ou quando o PCP lhes dá a mão na hora de maior aflição no que diz respeito ao seu emprego, que conseguem mudar a orientação do seu voto.
É esta inércia que tem que mudar. E o Partido Comunista Português tem que começar a fazer a sua parte nisso.