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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

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Uma decisão política

Um empréstimo da magnitude dos que foram feitos a Joe Berardo não é uma decisão bancária: é uma decisão política e deve ser julgada exatamente sob esse ponto de vista. Um eventual crime neste contexto não pode, portanto, ser obra de um homem só. Quem nos quer vender essa versão da história está, em boa verdade, interessado apenas em proceder a uma lavagem de face e a uma mudança de poderes. É pena que, por esta altura, uma boa parte do povo já tenha perdido a memória do modo faraónico e, até, sebastiânico, como o comendador foi recebido em Portugal há coisa de pouco mais que uma década atrás e como o país lhe foi entregue numa bandeja de prata, museus, condecorações, entrevistas, financiamentos e outras coisas que tais.

publicado às 20:33

A sociedade, segundo Zeca Afonso

Nas vésperas da comemoração de mais um aniversário da data, deparei-me com este vídeo da Associação José Afonso, excerto de uma entrevista a Zeca Afonso em 1984:

 

 

Os jovens, e digo os jovens de todas as classes, estão um pouco à mercê de um sistema que não conta com eles, que hipocritamente fala deles. O 25 de Abril não foi feito para esta sociedade, para aquilo que estamos a viver.

 

Aqueles que ajudaram a fazer o 25 de Abril não foram só aqueles que o fizeram, imaginaram uma sociedade muito diferente da atual que está a ser oferecida aos jovens. Os jovens deparam-se com problemas tão graves ou talvez mais graves do que aqueles que nós tivemos que enfrentar, o desemprego, por exemplo, e, por vezes, não têm recursos. O sistema ultrapassa-os, o sistema oprime-os, criando-lhes uma aparência de liberdade.

 

Eu creio que a única atitude foi aquela que nós tivemos — nós, eu refiro-me à minha geração — de recusa frontal, de recusa inteligente, se possível, até, pela insubordinação, se possível, até, pela subversão, do modelo de sociedade que lhes está a ser oferecido com belos discursos, com o fundamento da legalidade democrática, com o fundamento do respeito pelos cidadãos, pelos direitos dos cidadãos.

 

É, de facto, uma sociedade teleguiada de longe por qualquer FMI, por qualquer deus banqueiro, que é imposta aos jovens de hoje. Tal como nós, eles têm que a combater, têm que a destruir, têm que a enfrentar com todas as suas forças, organizando-se para criar essa sociedade que têm em mente que não é, com certeza, estou convencido, a sociedade de hoje.

 

José Afonso, 1984

 

Fiquei muito sensibilizado ao ouvir esta entrevista. Primeiro, pela atualidade da mesma, quer pelo conteúdo propriamente dito — uma sociedade governada por um “deus banqueiro” com uma “aparência de liberdade” —, quer pela birra deste ano dos liberais em quererem fazer parte das comemorações do 25 de Abril. Vem, de facto, muito a propósito: “Aqueles que ajudaram a fazer o 25 de Abril não foram só aqueles que o fizeram, imaginaram uma sociedade muito diferente da atual que está a ser oferecida aos jovens”.

 

Segundo, por uma questão de memória. Tal como o capitalismo americano converteu Che Guevara numa marca, em mais um produto lucrativo, identificando-o com uma atitude rebelde genérica e desprovida de conteúdo, também o capitalismo português fez, de certo modo, o mesmo com Zeca Afonso. É normal, hoje, ver os filhos dos que não quiseram o 25 de Abril, os descendentes dos PIDEs, os amantes da “ordem” e da “disciplina” do estado novo e do fascismo, hoje convertidos em “liberais democratas”, cantarolarem as melodias eternizadas por Zeca Afonso e, até, vestirem t-shirts com a sua cara estampada. Tornou-se normal, na nossa sociedade, associar Zeca Afonso a uma atitude rebelde genérica contra o fascismo e dissociar a sua música de uma mensagem e posicionamento políticos concretos.

 

Ainda bem, por isso, que ainda existem estes testemunhos gravados. Se não existissem, eu próprio, na minha senilidade crescente, começaria a duvidar de mim mesmo.

 

 

publicado às 07:28

Sócrates: uma boa oportunidade para nos olharmos ao espelho

Não tenho a certeza se nestes sete anos que passaram desde a detenção do ex-primeiro-ministro terei escrito alguma coisa sobre o assunto. Lembro-me que comecei a escrever por diversas vezes, mas acho que acabei sempre por não publicar o que realmente pensava sobre o assunto.

 

Ainda hoje, passado tanto tempo, sinto que o assunto não me diz respeito ou, melhor, que não é justo que me incomode ao escrever sobre alguém que nunca mereceu o meu voto ou, sequer, qualquer mero pensamento abonatório. «Quem votou nele, que fale, que escreva, que vocifere». E assim foi. Da minha boca nunca se ouviu, nem ouvirá nada que possa sequer ser confundido com uma defesa de Sócrates.

 

Não posso é deixar de sublinhar a profunda hipocrisia da sociedade portuguesa, uma hipocrisia obscena e transversal a todo um povo que hoje se enfurece e exige em uníssono a cabeça do seu antigo governante.

 

Hipocrisia do povo, em primeiro lugar, que elegeu o personagem por duas vezes, que lhe deu uma maioria absoluta para governar a seu bel prazer quando já se conheciam certos casos obscuros da sua passagem anterior pela pasta do ambiente.

 

Hipocrisia da direita política, em particular, que, durante anos, lhe dedicou Hossanas cantadas, ao escolhido que cumpria no PS a política neoliberal que ela própria, a direita, nunca tinha conseguido implementar no país, perfeitamente extaziada com a privatização dos setores do estado, das autarquias, com a função pública e os sindicatos postos na linha e a destruição do estado social e do código de trabalho.

 

Hipocrisia do PS, também, sempre empenhado em demarcar-se do seu ídolo de outrora, fingindo nada saber ao mesmo tempo que mantém a generalidade dos quadros políticos próximos de Sócrates no governo atual ou em funções de relevo.

 

Hipocrisia hoje da generalidade dos comentadores dos media, muitos deles advogados, ignorando completamente a outrora conveniente “presunção da inocência” e dando como provadas acusações que nem sequer foram a julgamento. Afinal, não há estado de direito: tal como já desconfiávamos, o que há é um estado de emoção, de euforias, de depressões e de cóleras.

 

Acho mesmo que a população, como um todo, não tem dúvidas porque, na realidade, nunca teve dúvidas, sabe bem quem quer e quem não quer e a quem concede a vara do poder.

 

Não há aqui qualquer defesa de Sócrates, nem pode haver. O que há é a constatação de uma evidência, a fixação de uma memória que não se pode perder, um registo que se impõe por uma questão de boa saúde mental: o que nos enfurece não é a corrupção, é o que ela revela de nós mesmos. O que realmente queremos é um bode-expiatório para continuar tudo na mesma. Capitalismo sem corrupção é uma utopia maior do que sociedade sem classes. E nós, no fundo, sabemo-lo bem. Por isso é que precisamos tanto destes momentos catárticos.

publicado às 15:53

A deusa

Ontem fui ao Pireu com Gláucon, filho de Aríston, a fim de dirigir as minhas preces à deusa e, ao mesmo tempo, com o desejo de ver de que maneira celebravam a festa (...)

— A República, início do Livro I, Platão

 

As derradeiras semanas do ano político de 2019-2020 trouxeram consigo o anúncio de mais um dos milagres da deífica União Europeia que, omnipresente, preenche cada recanto do nosso espaço político e, omnisciente, controla cada um dos passos que podemos dar. É verdade que esta divindade não preza o valor da novidade, manifestando-se sempre, repetitivamente, do mesmo modo. Os seus sopros sobre a nossa mortal poeira fazem-se sempre nos mesmos moldes, ou seja, através de muitos milhões de milhares de euros. Não há surpresa, nem é preciso. O que faz, faz bem e é eficaz para maravilhar as massas ínscias e admiradas.

 

Para o governo português, o anúncio de nova aparição da deusa nas nossas desgraçadas vidas vem no momento certo. A fé é forte entre nós, mas convém não perder o ânimo, pois a divindade mantém-se, por vezes, tempo demais afastada dos fiéis ou adota em demasia aquela atitude castigadora tão à moda do Antigo Testamento. O milagre era exatamente o que o povo, que se volvia eurocético em demasia, precisava como um bálsamo refrescante e renovador das almas.

 

A deusa é, também, generosa para com os seus presbíteros. António Costa, por exemplo, desesperava por este favor, como de água para matar a sua sede. Foi mais um ano marcado por uma inépcia assustadora para antecipar e lidar com problemas anunciados, mas o governo lá sobreviveu, dançando entre os pingos da chuva, escapando a qualquer responsabilidade, o que parece ser a sua principal “qualidade”. O desgaste, todavia, é real e, não obstante a inexistência de oposição política, começava a notar-se. Quantos meses mais de consultas e cirurgias adiadas, de serviços públicos congelados, de lay-offs e desemprego poderão os portugueses aguentar afinal? Nada como um conjunto alargado de investimentos e obras públicas para mitigar a crise económica em que estamos metidos e ainda não percebemos, injetar dinheiro fresco na economia, cerrar os olhos com força e imaginar que isto tudo se resolve com consumo interno e medidas Keynesianas que, em boa verdade, nunca resultaram em parte nenhuma do globo.

 

Até aqui a história tem muito de belo e de idílico e um viveram felizes para sempre deveria-se-lhe seguir, pelo menos para a maioria de nós, porque quando a coisa rebentar nas nossas caras — e rebentará — contentar-nos-emos com um qualquer bode expiatório para carregar de culpas e sacrificar para mal dos nossos pecados.

 

É fastidioso escrever sobre uma realidade tantas e tantas vezes repetida. Os milagres da deusa revelam-se sempre truques de ilusionismo barato e os seus presentes — quais Cavalos de Troia — provam ser sempre envenenados. Se o passado fosse, para nós, um mestre, a primeira pergunta seria: a troco de quê? Muitos foguetes seriam poupados, muitas garrafas de espumante permaneceriam invioladas, muitas celebrações — perigosas e desaconselhadas em tempos de pandemia — seriam evitadas, fosse essa importante pergunta produzida. Mas não é. E talvez esteja bem assim: para a maioria de nós vale mais festejar em antecipação do que não festejar nunca.

 

Comecemos pelo facto de que, por cada euro dado pela União Europeia, Portugal ter que se endividar para adicionar igual quantia ao investimento. Em tempos em que os juros são praticamente inexistentes, vem-me à memória a velha fábula em forma de poema da aranha que convida a mosca para a sua sala. Endividemo-nos, pois, e rezemos à deusa e aos santos mercados para que estes não se lembrem de, do dia para a noite, começar a cobrar juros incomportáveis para o nosso país. Este filme não é original: é um remake do que vimos em 2011 onde, então, uma crise da dívida seguiu-se a um incentivo, vindo da União Europeia, ao endividamento e ao investimento públicos.

 

O que vem depois também não é inédito. Aliás, todas as dádivas da deusa foram acompanhadas de exigências de fé resoluta, que é como quem diz de renúncia absoluta do nosso livre-arbítrio, da nossa autonomia e soberania. Desta feita, novamente nos subjugamos em toda a linha aos planos económicos da Alemanha — a predileta da deusa, porque não somos todos iguais perante Ela. Chamam-se de “economia verde” e é preciso realmente muita fé para crer que deles brotará, nas nossas praias, qualquer coisa que seja bondosa e sumarenta, pelo menos para nós.

 

Há também o pacote de impostos, de taxas e de taxinhas que se pretende implementar no plano europeu, mas não sei se também serão verdes ou de uma outra cor qualquer. A história repete-se. A União Europeia tem sido muito boa para isto: líderes nacionais incapazes fazerem brilharetes com os seus povos ao mesmo tempo que os enterram em dívidas e vendem as suas almas a troco de uns euros. Seria uma boa altura para os velhos, que já conhecem o filme de cor, chegarem-se à frente e falar. Caso contrário, continuaremos a ser guiados por uma certa juventude para a qual tudo é novo e promissor, tudo é anúncio de um amanhã de esperança. E o ciclo continuará.

 

publicado às 18:30

Fogos de palha

Passa quase um mês desde a última entrada neste blog. Esta ausência acabou por se prolongar mais do que esperava. A questão não está tanto na falta de assunto para comentar, nem tão pouco na ausência de tempo para o fazer. Sendo ambos argumentos válidos, não tem sobrado em mim a energia suficiente para me sentar à secretária, ligar o computador, “logar” no blog e escrever. Não tenho tido a paciência para participar desta sociedade de fogos de palha, tomando emprestadas as sempre acuradas palavras de Saramago. Todos os dias há um fogo novo a arder muito, um fogo de altas labaredas enegrecendo os céus que pairam sobre as nossas cabeças. No dia seguinte o céu permanece negro, mas já não é fumo do mesmo fogo, é doutro, entretanto ateado.

 

Tenho a impressão que este estado de coisas, este clima social, nunca terá sido tão carregado como é hoje, mas poderei estar enganado. Para tal clima — nascido da histórica fundação da geringonça que boa parte da sociedade ainda não terá engolido (sem grandes razões, todavia) —, contribuirá decisivamente a ação política do Presidente da República, catalisadora destes fogos que se espalham. O Presidente não se comporta como um incendiário, bem entendido, mas dispondo-se a comentar tudo o que lhe é lançado, mordendo sempre o irresistível isco que lhe é estendido desde a ponta dos microfones, comentando o que é coerente e o que é incoerente, o que é razoável e o que não o é, tem o condão de elevar cada amostra de boato ou mexerico às gordas maiúsculas das primeiras páginas das notícias.

 

Muito se escreveu neste mês que passou sobre o caso dos familiares no governo. Inclusivamente, atribuíram-lhe a pomposa mas não menos patética designação de familygate. Comentar isto? Não, obrigado. Ganhem juízo e, sobretudo, tomem qualquer coisa para a memória, para a coerência e para a hipocrisia. Analisem os governos passados e, mais importante, analisem as nomeações para lugares, esses sim, realmente importantes no mundo dos negócios e das empresas que vivem de mamadas regulares nas tetas estatais. Estudem, tomem atenção e conheçam a árvore genealógica do poder politico-económico em Portugal. No contexto da mais sórdida e imoral promiscuidade entre os poderes político e económico, esta situação não é mais que anedótica. Depois, parem de alimentar o mexerico sem importância e, sobretudo, não se contentem com fingidas alterações à lei para que tudo permaneça como está. Porque é mesmo disso que se trata: um fogo de palha. Amanhã tudo estará esquecido e um novo fogo terá sido ateado para não darmos fé disso mesmo.

publicado às 11:55

Como a História é uma coisa curiosa, hem?

Como a História é uma coisa curiosa, hem? Via hoje as cerimónias dos cem anos do armistício da Primeira Grande Guerra, ouvia as palavras comprometidas do nosso Presidente, incomodado que anda nestes dias com a questão de Tancos e com a omnipresente ideia de nós sabermos que ele já sabia — acho que já não oferece beijinhos, nem se disponibiliza para selfies —, ao mesmo tempo que se assistia a uma parada militar mais ou menos caricata. Onde é que já se viu celebrar a paz com uma parada militar? Não sei. Já se deve ter visto, com certeza. A mim, não se me afigura com muito sentido.

 

Mas, como a História é uma coisa curiosa, hem? Vejam bem: celebramos um armistício de uma guerra como se fosse uma guerra qualquer, como se fossemos uns como os franceses ou os ingleses, como se nos pudéssemos chamar de “aliados”, assim, com propriedade! Celebramos com um sentimento de orgulho que até parece autêntico! Não lhe denoto, com efeito, vestígio algum de fingimento! Pergunto-me: de onde vem tal sentimento?!

 

Acaso não saberemos dos contornos desastrosos, trágicos mesmo, da nossa participação na Primeira Grande Guerra? Não ensinam isto às gerações mais jovens? Ou estas já não se lembram porque nunca lhe dedicaram especial atenção? O que somos nós, afinal, no meio disto tudo, desta sociedade feita feira de entretenimento? Verbos de encher? Carne para canhão?

 

Não exageremos, pois. Carne para canhão não seremos nós na justa interpretação da idiomática expressão. Esse papel foi dedicado aos nossos antepassados que participaram na Primeira Grande Guerra, homens de trabalho, pais de família, maridos, destacados e alinhavados às pressas, para serem enviados para França, para servirem como moeda de troca para favores de política internacional. Esse batalhão mal amanhado seria, esse sim, usado literalmente como carne para canhão em batalhas na região da Flandres, com destaque morbidamente particular para a Batalha de La Lys, em abril de 1918, com a perda desnecessária, evitável, dizem os entendidos, de milhares de vidas portuguesas, joguetes nas aprumadas mãos dos generais ingleses e franceses.

 

O Presidente da República faria bem em evocar esta desgraça, esta humilhação que nos foi infligida pelos nossos “eternos aliados” que nos usaram como carne para canhão, em vez de jogar conversa fora, em vez de recitar adjetivos sobre conceitos vagos e indeterminados como é tão seu apanágio. Podia aproveitar para o fazer quando visitar Paris, na próxima semana, para participar das celebrações que lá ocorrerão. Daria ao mundo, estou certo, uma imagem bem diferente do nosso país.

 

Adicionalmente, a participação portuguesa nesta guerra cujo fim se evocou hoje terá sido o princípio do fim da Primeira República que viria a ter o seu desenlace na ditadura militar. A guerra empurrou o país para a penúria, para a miséria e para as mãos do fascismo. É claro que o Presidente da República não falará nada sobre este assunto. Não é por desconhecer. Afinal, Marcelo é o afilhado do último ditador deste país. Ele sabe.

 

Como a História é uma coisa curiosa, hem? Desculpem a repetição. Cem anos parecem ser o suficiente para lavarmos completamente as memórias de um povo e para transformar o branco em preto e o preto em branco. Estou a exagerar: hoje em dia, as redes sociais e os smartphones fazem o mesmo numa questão de horas.

publicado às 17:18

Génova e Entre-os-Rios

Olhar para a tragédia ocorrida em Génova — sim, para variar, esta é uma verdadeira tragédia — com a queda de uma ponte que fazia parte do trajeto quotidiano de largos milhares de italianos, usada por muitos outros turistas europeus e mundiais para iniciarem a sua exploração do país por terra, pela Ligúria, Toscana, Piemonte, Lombardia, tem, como consequência imediata, acordar a minha escassa memória. Lembro-me de uma outra ponte que caiu, de uma outra tragédia que se abateu, entretanto esquecida.

 

Corria o terceiro mês do primeiro ano do novo milénio do calendário gregoriano. Ao quarto dia desse mês, um dos pilares da ponte Hintze-Ribeiro, que ligava Castelo de Paiva a Penafiel, na região de Entre-os-Rios, desabou levando ao colapso de um dos tabuleiros da ponte e, por consequência, à morte de cinquenta e nove pessoas que faziam, na altura, a travessia.

 

Há sempre o perigo da injustiça, da falta de bom senso, do oportunismo, até, quando se procura esboçar paralelismos rápidos entre situações com semelhanças imediatas e evidentes mas com contextos necessariamente diferentes. Sinto-me, todavia, forçado a fazê-lo. Ainda disponho de alguma memória e, por isso mesmo, a escrita destas palavras resulta inevitável.

 

Vou começar por contar o que aconteceu em Portugal nos tempos que se seguiram à tragédia. Salto aquela parte de mediatização da dor e de histeria dos meios de informação que durou o que tinha a durar mas não merece ficar na história. O governo passou incólume pela tragédia através da oportuna demissão voluntária do então Ministro do Equipamento Social de seu nome Jorge Coelho. Isto da responsabilidade política é coisa de natureza singular e sinistra. O ministro demitiu-se, o governo passou incólume, nenhuma consequência efetiva do ponto de vista da lei foi extraída disso, ninguém, por parte do governo, pagou pelo que aconteceu. Pelo contrário, algum tempo depois, o mesmo Jorge Coelho viria a ser contratado para um alto cargo na Mota-Engil, uma das maiores empresas de... construção civil e obras públicas.

 

Não é isto verdadeiramente incrível? Um governante responsável político pela queda de uma ponte é contratado para uma posição de destaque numa empresa de construção civil e obras públicas, que por acaso é a campeã dos concursos públicos e das adjudicações diretas neste país. Imagine-se se a mesma lógica fosse aplicada aos outros setores do país? Um professor que não dá a matéria e falta às aulas promovido a diretor da escola? Um médico que, por negligência profissional, prejudica a saúde dos seus pacientes promovido a diretor de um hospital?

 

Ao mesmo tempo, aventou-se que a razão da queda da ponte, há muito tempo sinalizada pelas sucessivas inspeções, ficou a dever-se à excessiva atividade de extração de areias do rio que conduziu a uma debilitação do suporte de um dos seus pilares que cedeu com o aumento do caudal do rio originado pelas chuvas daqueles dias. Moveram-se processos contra as empresas de extração de areia. Ninguém — absolutamente ninguém! — foi condenado. O governo pagou indemnizações aos familiares das vítimas, participou em homenagens e erigiu um monumento perto do local da tragédia. Os corpos de algumas das vítimas nunca chegaram a aparecer.

 

Não sei o que se vai passar agora em Itália, não sei como vai ser a sequência dos eventos após a queda da ponte de Génova. No fim de contas, pode até ser que tudo seja muito parecido com o caso português. De momento, gostava de salientar algumas diferenças.

 

O governo italiano parece ter assumido uma atitude muito diferente para com a empresa privada que geria a Ponte Morandi imputando-lhe responsabilidades claras e exigindo consequências legais e criminais. Aqui, em Portugal, ainda hoje as coisas são distintas. As empresas privadas recolhem os dividendos da exploração das estradas e das pontes através das portagens e ainda recebem complementos estatais para garantir lucros, para além das obras das pontes serem asseguradas pelo estado. É o caso, por exemplo, das obras que se avizinham na Ponte 25 de Abril. São as vantagens das privatizações no seu mais brilhante esplendor.

 

O povo italiano também parece ser feito de uma outra massa do que o povo português. De Itália, chegam notícias de que diversas famílias rejeitaram participar no funeral coletivo promovido pelo governo italiano e fazer parte do que consideram ser uma farsa, pelo facto do governo ser o último e principal responsável pelo ocorrido. Em Portugal não foi assim. Parece que não há nada que uma indemnização e um monumento não resolvam.

 

Entretanto, ainda me recordo de especialistas que, na altura da queda da ponte portuguesa, em 2001, diziam que outras pontes portuguesas corriam idênticos riscos. Em dezoito anos nada aconteceu. Não há-de ser nada, portanto.

publicado às 12:04

Alemanha e Europa, extrema direita e história recente

A Alemanha e a Europa estão chocadas — e bem! — com a ascensão da extrema direita de inspiração nazi (AFD) ao bundestag, o parlamento alemão.

 

Há três anos, em fevereiro de 2014, a mesma Alemanha e a mesma Europa — falar de uma é falar da outra, não é? — apoiaram o golpe de estado na Ucrânia que colocou os nazi-fascistas no poder, derrubando um presidente e um governo democraticamente eleitos.

 

Devemos, portanto, duvidar destes políticos que dizem detestar a extrema direita. Se calhar não detestam. Se calhar são farinha do mesmo grão, mas muito processada em hipocrisia.

 

http://cdns.yournewswire.com/wp-content/uploads/2017/04/Germany-censor-alternative-media.jpg

 

publicado às 15:26

Silly season — a façanha

Em 1998 Donald Trump terá dito, a propósito de uma possível candidatura à Casa Branca, que se se candidatasse, fá-lo-ia pelos republicanos. É que, segundo ele, constituíam o grupo mais estúpido de votantes, que se acreditavam em tudo o que a cadeia de notícias Fox News dizia, mentiras incluídas.

 

If I were to run, I'd run as a Republican. They're the dumbest group of voters in the country. They believe anything on Fox News. I could lie and they'd still eat it up. I bet my numbers would be terrific.

— Donald Trump, 1998, People Magazine

 

Quando sou literalmente assaltado pelas sempre extensivas e pormenorizadas coberturas mediáticas da Festa do Pontal, pergunto-me se Pedro Passos Coelho e o PSD não estarão em proporção para Donald Trump e para o Partido Republicano. É como se não existisse memória. É como se fossemos todos peixinhos de aquário para os quais quase tudo é novo a cada instante.

 

Entretanto mudei rapidamente de canal e perdi o paralelismo sem interesse.

 

Todavia, gostava de ver as televisões, os jornais, os comentadores, tentarem a inédita façanha de colocar um burro, um asno mesmo, uma besta sobre quatro patas, na posição de primeiro-ministro deste país. É que eu acho que conseguiam! E o povo aplaudia! A sucessão histórica no cargo também concorre para o meu otimismo. É só mais um pequeno passo! Coragem e perseverança!

 

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/29/a3/06/29a306b776dd1d16f932cbd76fd9f426--victorian-gentleman-exquisite-corpse.jpg

 

publicado às 14:56

Sobre a “feira de gado”

É interessante que as pessoas, sobretudo as que dão a voz por este entendimento parlamentar de suporte ao governo PS, se surpreendam com episódios como o de Augusto Santos Silva e a sua já célebre comparação da concertação social com uma feira de gado.

 

Augusto Santos Silva sempre foi um político rude, mal educado, prepotente, dono de uma arrogância visceral que advém não se percebe muito bem de onde, de que superioridade moral ou intelectual, pois não decorre nem da prática, nem da teoria, apenas escorre de uma verve que é tão somente puramente venenosa. A sua escola é a mesma de tantos, tantos outros, que hoje pululam, ora no PS, ora no PSD: é a escola da extrema-esquerda do pós vinte e cinco de abril, anticomunista de gema, trotskista, talvez, por vezes, sabe-se lá. Talvez pudesse ser, em boa verdade, o que quer que parecesse mais conveniente na ocasião e que concorresse para a sua escalada política. E como Augusto Santos Silva soube escalar bem!

 

Isto de se ter uma boa memória é um problema sério. É que não permite apagar com uma borracha o percurso das pessoas, o que se disse e o que se fez, só porque agora parece que convém porque há uma coligação à esquerda no parlamento e cuja redoma de vidro é imperioso proteger.

 

Lembro-me bem do percurso de Augusto Santos Silva, do que defendia e do que apoiava enquanto militante da esquerda radical nos anos setenta e oitenta, como também me lembro bem da sua transição para o PS e dos insultos que cuspia para a sua esquerda no parlamento, do alto dos seus múltiplos cargos. Destaco particularmente as suas vergonhosas intervenções, verdadeiramente inenarráveis, enquanto Ministro dos Assuntos Parlamentares de José Sócrates. Mas o povo já não se lembra. Eu lembro-me bem. E quando me apercebi que este executivo de Costa iria ter nomes como o de Augusto Santos Silva, entre outros, compreendi na perfeição o engodo das promessas deste governo.

 

Mas não dispersemos do essencial. Em Augusto Santos Silva não há novidade absolutamente nenhuma. Pelo contrário, há coerência na insolência e na descortesia. A única novidade é a cândida complacência com que é tratado por parte de certos setores. Questiono-me até quando irá a esquerda parlamentar continuar a proteger este governo, até quando manterá a sua hipócrita amnésia sobre a verdade histórica deste e de outros personagens. Questiono-me se estas migalhas sociais conquistadas, absolutamente insubstanciais, iníquas, efemeramente inconsistentes, valerão a pena quando vislumbradas daqui por dez, vinte anos. Espero sinceramente que valham.

publicado às 17:07

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