Nós-outros
O castelhano é uma língua com uma verdadeira preciosidade que pouca gente nota, assim, como um tesouro escondido. Enquanto que na maioria das línguas o pronome pessoal da primeira pessoa no plural refere-se a uma espécie de grupo do qual fazemos parte, em português, por exemplo, o pronome é nós, nós o nosso grupo, nós a nossa equipa, nós a nossa família, nós o nosso partido, nós o nosso país, em castelhano o pronome é nosotros, ou seja, nós-outros.
Não faço a menor ideia se esta diferença foi intencional ou fruto de um feliz acaso, mas o pronome nosotros, assim modificado em comparação com os seus irmãos das outras línguas, é carregado de um forte sentido de comunidade. Nós-outros não diz respeito unicamente ao nós. Pelo contrário, nós-outros inclui os outros, juntando o eles também na equação do nós. Numa sociedade tão vocacionada para o apontar dos próprios defeitos aos outros, para o divisionismo, o elitismo e divisões artificiais por castas ou classes, a ideia do nós-outros podia assumir aqui um papel terapêutico simbólico. A eficácia desse papel nos países hispânicos carece, todavia, de avaliação, mas há coisas que não têm que ser científicas para serem boas, justas e belas.
Lembrei-me do nós-outros ao ouvir algumas reações àquela barbaridade que está a ocorrer no Brasil de Bolsonaro. Uma menina de dez anos apenas, violada, decidiu abortar e está, ela e a sua família, a ser violentamente atacada e ameaçada, com multidões de extremistas religiosos pró-vida perseguindo-os ao ponto da menina e família terem sido forçadas a mudar de identidade e de cidade para poderem continuar a viver. Os comentários não deixam de revelar a tal separação que existe entre o nós e o eles. Mas o nós é o nós-outros, lembram-se? O que vemos nos outros também existe entre nós e a intolerância, o extremismo, o pensamento atrasado, a falta de humanidade são características presentes, por vezes à espera de um qualquer rastilho para poderem arder livremente entre nós.
A quem tiver boa memória, basta lembrar o que foi a dificuldade em fazer aprovar a lei da interrupção voluntária da gravidez neste país chamado Portugal, como foram os debates e a argumentação usada então. Esses movimentos pró-vida não desapareceram, continuam por aí, identicamente inspirados, identicamente iluminados e voltarão agora em força com a legislação sobre a eutanásia. E, agora, têm mais força e representação no nosso parlamento.
Nós-outros: nós somos os outros e os outros somos nós.