É uma questão legítima entre muitas outras que envolvem o Bloco de Esquerda e a “sua” ideologia. E eu, por simples curiosidade, gostava de saber a resposta.
A legitimidade da pergunta advém com propriedade da indefinição ideológica que caracteriza o Bloco de Esquerda e de uma prática que surpreende a teoria sempre que a “razão” — a do apelo das massas — o justifica.
Por vezes, parece que julgamos saber, parece que se forma uma ideia concreta do que é o Bloco e do que o Bloco quer, para logo de seguida o caminho iludir-nos e, no interior de uma espécie de bruma ideológica, perdermo-nos irremediavelmente, por tão pouco vislumbrarmos os próprios passos sob tamanho denso nevoeiro. Esta é a noção que eu, cidadão, tenho do Bloco de Esquerda, mas por ventura o problema residirá em mim, por ser exigente em imprudente porção.
Repito, portanto, a pergunta inicial: será que corremos o risco de um dia podermos ver Catarina Martins abraçada a Angela Merkel num qualquer dia que há de vir e que o futuro nos reserva?
A pergunta, como qualquer outra que pudesse ser feita, aliás, adivinha respostas diferentes mediante o apoiante do Bloco que, honesta e francamente, se dignar a responder à questão. Dependerá, como está claro, da “tendência” em que se inserir no seio do seu partido assim como da sua sensibilidade particular.
A pergunta, volto a ela, parece impossível — concordo. Quando soletro devagar as letras que compõem a interrogação parece que formam palavras que soam a absurdo.
O absurdo, todavia, é de uma natureza drasticamente precipitada. O absurdo é um rótulo para um frasco de conteúdo simultaneamente impetuoso, apressado e imprudente. O absurdo é uma espécie de gás instável que rapidamente se dissolve na atmosfera das areias do tempo.
O que diríamos se há dois ou três anos nos colocassem a hipótese de Alexis Tsipras abraçar Angela Merkel? Absurdo?
E o que diríamos se nos dissessem que o Syriza iria aprovar o seu segundo pacote de austeridade — escrevi bem, segundo! — sobre o povo grego? Absurdo?
A pergunta inicial começa agora a soar menos absurda? Talvez...
É que foi o Bloco de Esquerda, por sua decisão — ao que se sabe, não forçada —, a colar-se politicamente e em tempo útil ao Syriza. Foi o Bloco de Esquerda e foram os seus dirigentes que participaram nos congressos do Syriza, que usaram da palavra nos seus comícios, envolveram-se nas suas campanhas eleitorais, que nos trouxeram a “boa nova” daquela “nova esquerda” que começava a efervescer a “velha Europa” e a “velha política” — fomos todos, em certa medida, contaminados por essa ideia —, que rejubilaram, enfim, com as vitórias do partido e que apoiaram a coligação do Syriza com a extrema direita nacionalista ANEL. Então, veio aquela fase do berreiro protagonizado por Tsipras e o seu então ministro das finanças Varoufakis perante a União Europeia que, igualmente, levou ao delírio a esquerda em geral.
O problema veio depois... O problema veio com a capitulação absoluta do Syriza face a todas as exigências do diretório de potências europeias, face a toda e cada uma das políticas de austeridade debitadas pelo imperialismo raivoso. A cada uma delas o Syriza acolheu e adotou como sua.
A partir daqui a palavra Syriza foi como que varrida do léxico do Bloco de Esquerda: banida da sua retórica argumentativa, renegada dos seus discursos. Nem uma palavra mais, nem de apoio, nem de repúdio.
Entretanto estabeleceram-se também parcerias político-económicas relevantes entre a Grécia, a Turquia e Israel, que incluíram trocas de juras de admiração e de amor eterno. Também neste ponto, e porque a questão dos direitos humanos é tão cara — e bem! — ao Bloco, gostaria de poder aprender com a sua opinião.
O exercício de clarificação é um, todavia, ao qual o Bloco de Esquerda se mostra frequentemente avesso. As chamadas “causas fraturantes” ou simplesmente alegóricas, como a do “cartão de cidadania”, concorrem para este desígnio do Bloco se esquivar a qualquer concretização sobre o que pensa.
Do silêncio do Bloco de Esquerda relativamente à questão Syriza legitimamente se deduz um incómodo pungente que a realidade Syriza pesa sobre a sua ação e sobre a sua retórica, por um lado, e, por outro, uma conivência consciente com a prática do Syriza ao leme do governo da Grécia, pelo que podemos esperar da parte do Bloco, com um certo grau de segurança, uma réplica à escala portuguesa daquilo que o seu irmão helénico está a aprontar na Grécia se acaso tiver idêntica oportunidade. Quer pelo primeiro, quer pelo segundo, torna-se claro que a estratégia do silêncio é efetivamente a única alternativa do Bloco para não sair drasticamente melindrado com a questão Syriza.
Ainda assim, e voltando ao princípio, voltando à pergunta titular, confesso que não me importaria de viver para assistir à cena. Assistir ao abraço fraterno entre Catarina Martins e Angela Merkel seria sinal, pelo menos, de que teria ocorrido uma pequena mudança no quadro político português e de que os desgraçados do costume que nos desgovernam, aos quais se convencionou apelidar de partidos do arco da governação, estariam, ainda que momentaneamente, arredados da dita, quer dizer, do poder e isso já seria enormemente relevante.