Já viram no que nos estamos a tornar? A sério: já repararam? Já pararam para olhar à vossa volta? Já repararam nas vossas cidades e vilas, nos vossos vizinhos, nos desconhecidos com que se cruzam no metro no caminho para o trabalho? E na vossa cultura? Os livros que se escrevem, as transformações na língua, as músicas que passam na rádio, as novelas da televisão, as peças de teatro, o cinema?
Repito: já repararam no mundo que se estende em vosso redor?
Comparem com que existe aí dentro, com o que subsiste no vosso íntimo, com as imagens que guardam de anos passados. Comparem. É fácil: basta fechar os olhos e pensar um pouco, recordar. Por vezes basta apenas um som, uma melodia, um vislumbre de uma coisa qualquer, para se desenrolar um novelo de memórias, das memórias do que é “ser português”. Abram os olhos, então, escrevam as primeiras palavras que vêm à cabeça e comparem com o que os olhos veem.
É assustador. Ainda vivos assistimos ao enterro resoluto e inexorável da nossa identidade coletiva. Vemo-lo claramente. As nossas cidades enchem-se de legiões e legiões de imigrantes, centuriões sem escudo mas com a espada afiada de uma necessidade superlativa que vem de assalto aos trabalhos dos mais miseráveis salários. De um modo de todo em todo semelhante, as gerações nativas mais jovens emigram também, como que impelidas a pás cheias, procurando as condições de vida dignas que não encontram no seu país. Reforço a similitude entre os que chegam e os que partem. São iguais, procuram o mesmo tendo, todavia, referenciais de conforto e de qualidade de vida diversos. Uns escrevem-se com “e”, os outros com “i” e a diferença esgota-se aqui.
Os nativos que permanecem mal sobrevivem e já nem sonham tão pouco com a vida dos pais e dos avós. Não têm filhos. Não podem. Não têm dinheiro. Não aceitam trazer para este seu mundo nem uma só criança. Os seus padrões de bem-estar, de cultura, não poderão ser alcançados. Pelo contrário, os imigrantes que chegam, os imigrantes dos salários baixos, das sociedades menos desenvolvidas, do chamado terceiro mundo, conhecem vivências e culturas muito distintas. Para eles, muitas vezes, o número de filhos é diretamente proporcional a um certo entendimento de riqueza e, por isso, reproduzem-se abundantemente sem as considerações prévias que os primeiros tecem antes de ter filhos.
Numa geração uns suplantam os outros e o país chamado Portugal já quer dizer outra coisa distinta, uma coisa que se escreve da mesma forma, com as mesmas letras, mas sem o mesmo significado. Numa geração, a palavra Portugal transforma-se noutra diferente, homógrafa.
Escrevo sobre Portugal como poderia escrever sobre Espanha, Itália, França ou outros tantos países. Escrevo sem nenhum conteúdo xenófobo. Nenhum! Antes pelo contrário. Escrevo porque vejo esta realidade forçada sobre nós. Não é uma realidade natural. Não se trata de um fenómeno do domínio do inevitável. Não! Nada disto é natural. Nada disto é inevitável. Nada disto é desejado nem por uns, nem por outros, tivessem ambos a opção de escolher. Tudo isto é o resultado de políticas muito concretas, políticas de exploração de uns, dos que chegam, e de outros, dos que partem. E nada disto, sublinho, se desenvolve no sentido do bem estar dos cidadãos. Pelo contrário: tudo isto é uma estratégia de empobrecimento das sociedades e de concentração da riqueza e do poder.
Com efeito, estas transformações devem ser percebidas como sintoma ou consequência das políticas redistributivas da riqueza das economias destes países.
Os imigrantes que acorrem aos países ocupando os trabalhos de salários baixos, insuficientes para garantir uma vida decente nesses mesmos países, fazem-no porque alguém os chama. Existe um punhado de gente, gente que no fim do ano ilustra as páginas da revista Forbes na lista dos mais ricos do planeta, que esfrega as mãos de contentamento com a chegada dos vagões destes imigrantes, legiões de gente que se digladia pela mais singela migalha ao mais baixo preço. Os governos locais, por seu turno, permitem que este ciclo se perpetue, sendo agentes ativos no processo, permitem-se assistir à exploração declarada de uns e à evasão massiva de outros. Assistem numa poltrona privilegiada ao processo.
É essencialmente isto, não obstante tudo o resto, de toda a guerra que se vai semeando mundo fora com naturais consequências nos movimentos demográficos dos povos. É essencialmente isto em Portugal, como em Espanha, Itália, França e noutros países. Muitos outros. É essencialmente isto a que assistimos impávidos, serenos, ao nosso redor, nas nossas cidades e vilas, nos nossos vizinhos e desconhecidos com que nos cruzamos no metro a caminho do trabalho. Se olharmos não reconhecemos. Não reconhecemos a nossa cultura, os livros que se escrevem, as transformações na língua, as músicas que passam na rádio, as novelas da televisão, as peças de teatro, o cinema. Não reconhecemos. Não sei se não vemos ou se fingimos não ver.