O que é a liberdade? O que caracteriza alguém “livre”? Como definimos o conceito? Não me interessa, neste ponto, admitindo com naturalidade ser algo de “desejável”, qual o caminho para atingirmos a liberdade. Não me interessa o formalismo. Antes importa sabermos do que estamos a falar para, então, formularmos uma estratégia.
No dicionário da priberam vem a definição que se segue.
“Liberdade, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013:
- Direito de proceder conforme nos pareça, contanto que esse direito não vá contra o direito de outrem.
- Condição do homem ou da nação que goza de liberdade.
- Conjunto das ideias liberais ou dos direitos garantidos ao cidadão.
- [Figurado] Ousadia.
- Franqueza.
- Licença.
- Desassombro.
- Demasiada familiaridade.”
O ponto 1 define, de forma condicional, o conceito. O condicionalismo relativo à liberdade dos outros é absorvente pois induz que o conceito se desenvolve num contexto de um equilíbrio de um grande número de partes, como se a liberdade fosse aquele momento em que uma balança de inúmeros pratos se encontra, enfim, em equilíbrio. Note-se que o condicionalismo é tão poderoso que podemos, em tese, estar a definir um conceito impraticável. Não obstante, permanece aquela noção inicial euclidiana indicadora do que será a liberdade: o “direito de proceder conforme nos pareça”.
Enquanto que o ponto 2 é uma mera imposição linguística, o ponto 3 já apresenta duas ideias assaz curiosas. Liberdade como “conjunto de ideias liberais ou de direitos garantidos ao cidadão”. Em primeiro lugar a que “ideias liberais” nos referimos? Refere-se o texto, claramente, ao conceito primitivo do século XIX e não ao contemporâneo, até mesmo pela referência que se lhe segue aos “direitos garantidos”, incompatível com o segundo. Esta é a referência mais curiosa de todas. Efetivamente, conduz-nos a entender o direito da liberdade como subordinado à existência de outros direitos. Que direitos serão esses, afinal? O “direito de proceder conforme nos pareça” é, ultimamente, a possibilidade de efetuar uma escolha não em quaisquer condições mas dentro de um conjunto maximal de escolhas possíveis. Como é possível fazê-lo? Poderá um de nós efetuar essa escolha num contexto qualquer?
Recordo aqui parte da letra da música “Liberdade” celebrizada por Sérgio Godinho e recentemente recuperada pelo próprio:
“Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir”.
Poderá um temente pela vida, um faminto, sem abrigo, enfermo ou ignorante, ser verdadeiramente livre? Quero dizer: poderá ser capaz de escolher de acordo com a sua vontade e ter ao seu dispor todo o universo de opções potenciais? “A paz, o pão, habitação, saúde, educação,...” são estes, com segurança, os direitos pressupostos no ponto 3 da definição, pois sem eles o conjunto das opções de que falava quando se exerce a escolha, isto é, o direito chamado de liberdade, vê-se reduzido de forma drástica.
Os pontos 4 a 8 referem-se à liberdade enquanto adjetivo de personalidade estando relacionados, obviamente, com o que foi dito anteriormente.
Mas chegados aqui, parece que o conceito ficou muito bem definido. Parece que domesticamos o substantivo e que podemos, seja essa a nossa vontade, construir tal sociedade livre desde que nos asseguremos dos alicerces descritos anteriormente. Mas será que podemos? Frequentemente questiono-me...
Existem modelos sociais que não contemplam qualquer das garantias referidas, onde são claras as diferenças sociais atingindo proporções dramáticas onde cinco pontos percentuais da população detém noventa e cinco pontos percentuais da riqueza global gerada e, contudo, são modelos tidos como exemplares com perceções populares muito favoráveis no que à liberdade diz respeito. Pelo contrário, também existem experiências simétricas, isto é, de modelos sociais “garantidistas” e, frequentemente, estes são acusados quer no plano interno quer no externo de não serem promotores de liberdade. Perante isto, o que pensar? Não será o concreto da palavra liberdade puramente ilusório? Contrariamente a tudo o que se discutiu, não será a liberdade um conceito puramente abstrato? Poderá existir liberdade e não se sentir a liberdade? E o contrário? E o que será mais importante: a liberdade em concreto ou a perceção que dela temos? Até mesmo aqui serão as palavras de Descartes absolutamente premonitórias? Isto é, no que diz respeito também à liberdade, é o essencial invisível aos olhos? Chegados a este ponto e, sendo a liberdade nada mais do que o poder da escolha, termino este breve ensaio com as palavras do Merovingian, personagem da trilogia The Matrix, as quais subscrevo, sobre a escolha, ou seja, sobre a liberdade.
“Choice is an illusion, created between those with power, and those without”
— The Merovingian, in Matrix Reloaded.
Nota final: as três derradeiras linhas da letra da música cantada por Sérgio Godinho merecem uma reflexão própria a fazer daqui por uns tempos.