Hipocrisia fiscal
Detesto impostos disfarçados de ecologia. Neste mundo até as grandes causas são colocadas ao serviço da exploração do homem pelo homem. É a sociedade que construímos e da qual, no fundo, gostamos.
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Detesto impostos disfarçados de ecologia. Neste mundo até as grandes causas são colocadas ao serviço da exploração do homem pelo homem. É a sociedade que construímos e da qual, no fundo, gostamos.
1. Está frio, está um maio que parece inverno. As andorinhas que nidificam sob a proteção do telhado da minha casa parecem arrependidas por não terem adiado a viagem deste ano. Chove copiosamente. Não sei porquê, mas desconfio que não seja o bastante para afastar o alarme permanente de seca no nosso querido país.
2. Entre ontem e hoje, nos intervalos dos aguaceiros, tive a sorte generosa de observar três arco-íris. O de hoje de manhã era uma semicircunferência colorida tão perfeita quanto imagino que seja possível.
3. Não parece haver nada que abale este governo. Um membro do executivo insulta um programa de jornalismo da televisão pública e nada acontece. É perigoso. É um sentimento de impunidade crescente tão criador de clivagens sociais quanto a promoção de ideários populistas.
4. Portugal descobriu, de repente, as falanges de trabalhadores orientais que tem dentro de fronteiras subsistindo e trabalhando em condições miseráveis e sub-humanas. Quanto tempo demorará a esquecer tudo outra vez?
5. Jerónimo preocupa-se muito com os trabalhadores da Groundforce e pouco com os da Galp. A refinaria de Matosinhos já parou a produção. O que deixou de produzir e é necessário para o país será importado. O resto será um rombo nas exportações e nos dividendos gerados. Trabalhadores de mãos e pés atados e destino traçado.
6. O negócio do lítio começa a ser, lentamente, revelado e começam a esfumar-se as promessas de qualquer tipo de retorno económico ou, até, ambiental, que se veja, para o país. Antes pelo contrário. Ai os nossos rios e cursos de água. Ai as nossas paisagens. O ambiente é um negócio e uma hipocrisia.
7. Uma das singelas bandeiras do Bloco, arrancada a ferros do útero contraído do governo PS, o chamado “estatuto do cuidador informal”, revela-se, afinal, uma medida para meia-dúzia, como, aliás, ninguém com dois dedos de memória não poderia deixar de esperar. O governo diz que faz, diz que dá, põe na lei, mas a prática, esse inexorável critério da verdade, é outra. A prática é outra.
8. Parou agora de chover. Procurei por um arco-íris, mas não o encontrei. Hoje não tive essa sorte.
A notícia diz que, por estes dias de frio rigoroso, algumas comunidades urbanas tiveram falhas no fornecimento de eletricidade. Vejamos se compreendemos bem as causas do fenómeno: porque tem estado muito frio, as populações têm aumentado o recurso a equipamentos elétricos de aquecimento o que, por sua vez, sobrecarregou o sistema e provocou falhas na rede de abastecimento elétrica. Refere-se, também, que o teletrabalho terá tido participação na sobrecarga da rede.
Não há aqui, na descrição dos eventos, nada de anormal. Poder-se-ia argumentar sobre as condições precárias a nível de aquecimento e conforto em que vivem muitos portugueses e ainda sobre a ineficácia energética e ecológica do modo como se aquece e se preserva o calor na maioria das habitações em Portugal. Poder-se-ia, pois, e o tema é de uma pertinência permanente no nosso país, mas não é sobre isto que queria refletir agora.
Numa altura em que, em linha com as diretivas europeias/alemãs, o Parlamento discute projetos-lei com vista à proibição da venda de automóveis movidos exclusivamente a combustíveis fósseis, pergunto-me como seria se, neste momento presente, tivéssemos uma frota automóvel movida a eletricidade em vez da que temos agora. É que, se agora a nossa rede elétrica tem dificuldades em aquecer muitas habitações, como seria se, ainda por cima, essa mesma rede tivesse que carregar as baterias de todos os automóveis de transporte individual?
São perguntas produzidas por um leigo. Provavelmente, as nossas necessidades futuras estão todas mais do que previstas e acauteladas. Por ventura, esta transição será até acompanhada de uma mudança radical de paradigma de transporte e mobilidade no nosso país, com o transporte público a assumir um papel absolutamente predominante e que nunca teve até aqui e o transporte individual a tornar-se raro e esporádico. De uma forma ou de outra, seguramente que não partiríamos para uma transição tão radical sem estarmos seguros de que a poderíamos suportar. Passará pela cabeça de alguém que os políticos que nos representam poderiam viabilizar políticas absolutamente insustentáveis a médio prazo? Mas não se sabe nada sobre isto, não se sabe nada de nada sobre o assunto e, então, leigos como eu com tempo para pensar têm espaço para produzir questões deste tipo.
Guardarei para sempre as palavras de Greta Thunberg à chegada a Lisboa, vinda das Américas, depois de atravessar o Atlântico de barco:
Queremos que as pessoas no poder façam o que tem que ser feito.
Foi qualquer coisa assim, perdoem qualquer coisa na minha tosca tradução. A sua natureza rudimentar não impede, todavia, a compreensão do seu conteúdo: queremos que as pessoas no poder (the people in power) façam o que tem que ser feito (do what has to be done).
São palavras que compõem e se destacam num discurso redondo, que se justifica a si próprio e que não contém rigorosamente nada. Exige-se às “pessoas no poder” que “façam o que tem que ser feito”, seja lá o que isso for, porque alguma coisa tem que ser feita e porque as “pessoas no poder” podem fazê-lo, porque estão no poder, provavelmente. “O que tem que ser feito” não é dito. “As pessoas no poder” são tantas e tantas que confere à afirmação uma generalidade ainda maior. Muitas — das “pessoas no poder” — abraçam Greta e discursam com ela nas muitas ocasiões em que Greta fala. Também vimos isso em Lisboa.
Por não dizer nada, este discurso é extremamente poderoso. São palavras que representam milhões e milhões, uma sociedade de inconsequentes, de ignorantes, de gente que fala simplesmente porque pode mas que não acompanha o discurso com qualquer vestígio de conhecimento, de inspeção ou raciocínio lógico. Se o fizessem, havia muita coisa para pôr em causa, muitos inimigos reais ganhariam forma e deixar-se-ia de falar nas “pessoas no poder”. Falar-se-ia deste modo de vida, do consumismo, na sobre produção e sobre exploração dos recursos do planeta, nesta economia de acumulação de lucros e onde as pessoas são apenas ferramentas descartáveis e, enfim, de um momento para o outro, houvesse, repito, um mínimo de células cinzentas a trabalhar em conjunto, e todo o sistema capitalista mundial que governa as sociedades seria posto em causa.
Infelizmente, pedir às massas populares que façam um melhor uso do seu intelecto do que o que é exigido para jogar joguinhos repetitivos no smartphone ou no tablet é pedir demais, é almejar a utopia. E, deste modo, Greta Thunberg, em vez de ser o símbolo de uma juventude mais interveniente e que exige fazer parte do pulsar das sociedades, reduz-se simplesmente a uma advertiser, a uma vendedora — uma excelente vendedora — de carros elétricos, ao serviço dos interesses momentâneos do capitalismo, esse mesmo que destrói diariamente os nossos recursos e o nosso planeta.
Não tenho nada contra Greta Thunberg. Absolutamente nada. Aliás, ao contrário de alguns que começam agora a desiludir-se com o percurso da jovem, eu nunca esperei nada de uma rapariga de 16 anos que já não frequenta uma escola há sabe-se lá quanto tempo. Eu não espero que uma rapariga de 16 anos, que tem absolutamente tudo a aprender, me ensine a viver a vida, me dê princípios e me diga o que fazer ou o que é certo ou errado. Não. Desculpem lá. Bem sei que isto de pôr a juventude a mandar nos adultos, os filhos a dizer aos pais o que fazer está muito na moda, mas não, não compro. Isto está tudo ao contrário.
Mas a aclamação da Greta não se explicará com apenas um argumento, será, antes, uma mistura de duas ou mais coisas. Porque se a Greta gritasse algo muito mais consequente como «Abaixo o capitalismo», a sua epopeia terminaria ainda antes de começar, porque ninguém quer esse tipo de conversa, porque todos gostamos muito do capitalismo, de um telemóvel novo por ano e de todas as outras gadgets e das Black Fridays, das febres de comprar necessidades que não tínhamos ontem. A Greta, no fundo, é aquele escape de que precisamos para nos sentirmos melhor. É completamente segura, não ofende, nada de mal acontecerá, nenhuma revolução a sério surgirá dali, mas faz-nos sentir bem, limpa-nos a consciência, dormimos melhor à noite. Afinal, é uma menina que está a tentar salvar o mundo, não é?
Nesta versão 2.0 do governo PS há um pormenor que me tem preocupado severamente. O ministro do ambiente Matos Fernandes regressou do anterior executivo para este novo figurino com um acrescento ao seu epíteto. Agora, é ministro não apenas do ambiente, mas também da ação climática. Observem que coisa tão moderna e tão na moda! Só lhe falta a menina Greta como conselheira permanente. Tal acrescento tem sido acompanhado de uma abundante retórica sobre a “descarbonização” da nossa economia. Vejam bem que até o meu corretor ortográfico desconhece o palavrão. Repitam lá a palavra, “descarbonização”, seja lá o que isso for.
Esta temática preocupa-me porque aparenta ter pouco ou nada de substantivo e muito de propaganda com um fim bem definido: fazer sucumbir o país ao lobby do “elétrico” e dar carta branca à destruição de Montalegre para a exploração do lítio sem ninguém dar muito por isso.
Consta que o golpe de estado na Bolívia terá sido perpetrado, não por causa do gás natural, como inicialmente suspeitava, mas por causa, precisamente, do lítio. Não será por acaso, não sejamos inocentes, que as ações da Tesla, aquela empresa dos caríssimos carros elétricos futuristas, subiram em flecha após a deposição de Evo Morales.
Em Portugal, claro, não são necessários golpes de estado. As nossas lideranças, democraticamente eleitas pelo nosso povo, estão sempre na linha da frente no que diz respeito ao desbaratar dos nossos recursos em favor das grandes multinacionais burguesas. E neste caso do lítio acontecerá exatamente isso, far-se-á uma concessão a privados, com caderno de encargos escrito a preceito, para no fim ficarmos sem recursos, sem as nossas aldeias, vilas e cidades, e sem o dinheiro.
Importa repetir todas as vezes que forem necessárias em todas as oportunidades que se apresentem: em termos de eficácia, o “elétrico” não substitui os combustíveis fósseis, nem com todo o lítio do mundo, nem num milhão de anos. E com que energia iremos alimentar todos esses motores elétricos? Com que energia? De onde? Das barragens? Das eólicas? E conseguem afirmá-lo com certezas absolutas? Acresce que, ao comprarmos o “elétrico”, estamos a substituir um problema por outro, no que à questão ambiental diz respeito. Nós, que temos dificuldade em tratar duma simples pilha de volt e meio, já para não falar de uma bateria de um simples telemóvel, vamos ter de tratar, da noite para o dia, uma quantidade enorme de baterias elétricas de automóveis com vidas úteis de menos de dez anos. Tragédia ambiental em perspetiva? Lençóis freáticos, rios e mares permanentemente contaminados e poluídos? Água potável em risco? Será esse o nosso auspicioso futuro dos carros ultra modernos?
A situação é insana. Esta ânsia dos nossos governos em agradar ao capital monopolista está a redundar em demência profunda, porque é uma política de terra queimada, de quem vier a seguir que feche a porta, uma política que condena as gerações futuras e as amarra a opções trágicas. Mas, em simultâneo, esta situação gravíssima é-nos vendida com os cantos de sereia, das sereias da “descabornização” e da “ação climática”. E nós acreditamos. Achamos bem. Soa-nos bem, a moderno. Lava-nos a consciência, até. Parece que somos incapazes de pensar. Esta geração, a anterior e todas as que confluem no presente, no hoje, no agora, parecem todas vítimas de lavagem cerebral. Não olham, não veem, não pensam, não questionam. Tudo aceitam.
Tal como no passado com Ulisses, teria sido prudente amarrar o capitão do navio à carlinga e tapar os ouvidos de cada um dos seus marinheiros com a cera do mel para que nada pudessem ouvir, para que não pudessem ouvir as sereias tentadoras. Desgraçadamente, nestes tempos sem fé não há bom senso que impere, não há deusa Circe que nos valha, nem outra divindade qualquer.
O governo português, na pessoa dos seus mais altos representantes, é, em certos domínios, rápido e assertivo, contundente mesmo, no conteúdo e na forma como aborda determinadas situações internacionais. Ao ouvir as palavras que o seu ministro dos negócios estrangeiros proferiu, por exemplo, aquando dos momentos mais quentes, entretanto esfriados, da tentativa de golpe de estado na Venezuela, fica-se com a ideia de estarmos perante um representante de um país relevante no quadro internacional, tamanha foi a contundência empregue e o tom que até soava a ameaça. Presentemente, é pena que o governo português não estenda a sua eloquência ao drama que se vive no Brasil, país irmão de Portugal, onde um dos maiores patrimónios naturais mundiais é, neste momento em que escrevo, irremediavelmente destruído e, pelo contrário, escolha remeter-se ao mais gutural silêncio.
Podemos ser levados a pensar que esta diferença de comportamentos se deve à própria experiência deste governo de Portugal no que concerne a fogos florestais. Afinal, neste escasso período de quatro anos, sob o olhar e a responsabilidade deste governo, arderam tantos hectares de floresta quantos os que havia para arder, incluindo alguns de floresta milenar como o pinhal de Leiria, o que, à nossa escala, terá representado, não sei, talvez duas ou três Amazónias juntas. Mas desengane-se o leitor. A razão não é mera vergonha na cara ainda que essa seja mais que justificada.
A razão de ser deste comportamento dúbio é simples. O governo não serve em primeiro lugar o estado, o país ou o seu povo: serve prioritariamente os interesses do capitalismo mundial e do imperialismo. É o imperialismo que alimenta a revolta na Venezuela tentando colocar as suas unhas no petróleo daquele país. É o imperialismo que arma as populações, que forma e paga milícias populares. Por isso, o governo português apoia a revolta contra um estado soberano e um governo democraticamente eleito. Por isso, reconhece à margem de qualquer lei ou direito internacionais autoproclamados presidentes da Venezuela.
Do mesmo modo, é o imperialismo que, por ora, incendeia a Amazónia para expandir o seu negócio de exploração de gado e de plantações de cereais geneticamente manipulados. É o imperialismo que suporta e alimenta este governo absurdo, este presidente absurdo que desgoverna o Brasil, porque têm a promessa de altos dividendos económicos futuros. Por isso, o governo português, neste caso, mantém-se calado.
Bolsonaro foi eleito à custa de um golpe de estado descarado e sem vergonha movido pelo sistema judicial brasileiro e apoiado pelos media que derrubou um governo democraticamente eleito sob pretextos dúbios e absolutamente irrelevantes no contexto do país. Bolsonaro foi eleito tendo por base um programa político que se podia reduzir à frase “privatizar tudo”. O tudo incluía, evidentemente, a Amazónia. O mundo assistiu a tudo isto e achou piada. Agora lançam-se umas bocas para o ar e nada se faz. Porquê? Porque o mundo está, em geral, ao serviço dos interesses do imperialismo e é o imperialismo que está a queimar a Amazónia. Deixem-se de tretas e de hipocrisias.
Ai se isto estivesse a acontecer na Venezuela...
É por isso que me dá vontade de rir quando ouço André Silva, do PAN, os “ecologistas progressistas”, dizer que não é de esquerda nem de direita, que esses conceitos estão ultrapassados. Só há duas possibilidades para este André Silva: ou faz parte desta nova vaga de políticos que pretende enganar o povo com esta conversa de chacha “apartidária” ou trata-se, simplesmente, de um triste ignorante. Por ventura, será uma mistura dos dois. Infelizmente, parece ser essa a receita que o nosso povo mais gosta.
Passei há instantes por um cartaz do Bloco de Esquerda — os cartazes do Bloco têm sempre a faculdade de me perturbar intelectualmente — que, em maiúsculas carregadas, dizia: “não há planeta B”.
Passemos ao lado da descarada e oportunista usurpação do slogan desta “geração ambiente” por parte do Bloco de Esquerda, esta juventude mundial que anda muito indignada com as questões do meio ambiente, todavia aparentemente insciente do facto de que, ela própria, ao ritmo de um iphone novo, e afins, por ano, consome mais plástico que todas as outras gerações antecedentes à sua todas somadas. Passemos ao lado disto.
Coloquemos no centro da discussão a frase “não há planeta B”. Parece que existe a intenção, por parte do Bloco e da juventude que faz uso deste argumento, de apelar a uma mudança de hábitos e mentalidades com respeito ao meio ambiente. O silogismo em causa será mais ou menos este: estamos a destruir o único planeta de que dispomos para habitar e, por conseguinte, tendo plena consciência de que não existe alternativa, devemos alterar, isto é, inverter, a situação.
A pergunta que coloco é: e se houvesse alternativa?
E se, amanhã mesmo, encontrássemos uma segunda Terra, num outro sistema solar, com todas as condições para replicarmos à sua superfície as vidas que aqui levamos?
Existindo planeta B, seria, então, correto prosseguir a destruição deste “planeta A”?
Claro que não e, por isso mesmo, o argumento “não há planeta B” é vazio e não faz qualquer tipo de sentido.
Bem sei que estou para aqui a esmiuçar a coisa ao limite e que nada disto passará pela cabeça de quem faz uso da catch phrase “não há planeta B”, mas este tipo de slogan é simbólico, pois traduz uma forma de pensar, uma forma de argumentar e de estruturação lógica do raciocínio, uma forma de distinguir o que é correto do que é incorreto e, em última análise, traduz o modo como a própria sociedade interpreta o que é lícito ou ilícito do ponto de vista da lei.
Chamei-lhe a filosofia da sociedade utilitarista porque se trata disso mesmo. A utilização do argumento “não há planeta B” só fará sentido numa sociedade utilitarista, isto é, uma sociedade que justifica os meios através dos seus fins pretendidos, em que as atitudes devem ser valoradas em função dos proveitos que delas advenham e não pelo que elas próprias representam ou constituem.
Devemos cuidar do nosso planeta porque não há um planeta B? Não. Devemos cuidar do nosso planeta porque isso é o que é correto do ponto de vista dos princípios e da moralidade. Devemos cuidar do nosso planeta do mesmo modo que cuidamos do nosso jardim ou da nossa casa. Devemos cuidar de todos os animais e plantas do mesmo modo que cuidamos dos nossos filhos. E não porque isto ou porque aquilo. Não por causa desta ou daquela consequência.
Mas esta é exatamente a forma de pensar desta sociedade despida de qualquer vestígio de princípios éticos ou morais, governada por uma pseudo ciência do “ver pra crer”, que imprime nas mentes a desconfiança por qualquer princípio moral a priori.
Falava noutro dia com um professor que, indignado, me contava como um aluno lhe disse que só o respeitava se ele o respeitasse a ele. Reparem bem nos princípios de base que estão aqui em causa: o aluno não respeita o professor porque sim; o aluno respeita o professor se isso lhe convier. Cada um de nós reconhece a situação que descrevo e, inclusivamente, uma grande parte identifica-se com este modo de pensar. Trata-se dos alicerces da sociedade utilitarista, consequência da proposta de sociedade de consumo que nos é promovida pelo capitalismo.
Como pode um argumento saído deste quadro lógico-moral ser capaz de transformar o próprio sistema de que é originário?
Nas últimas eleições europeias, cento e sessenta e oito mil e quinhentas e uma pessoas decidiram entregar o seu voto ao PAN, o partido chamado Pessoas-Animais-Natureza. Esta expressiva votação terá sido uma mistura entre o voto de protesto, tão costumeiro por altura das europeias, e o consubstanciar da moda do momento que são as alterações climáticas e as preocupações ambientalistas. No PAN, porém, a palavra natureza parece ser secundarizada relativamente à palavra animais e não se trata apenas duma questão de ordem na posição na sigla do partido, uma vez que a palavra pessoas, que aparece primeiro, não parece constar, nem vestigialmente, das preocupações do PAN. É, sobretudo, uma questão de prática e de prática populista.
O PAN procura, desde sempre, apelar a uma parte da população urbana, cada vez mais significativa, que vive mais ou menos isolada nos seus apartamentos, e que valoriza de forma exagerada, pouco saudável, a importância da companhia dos seus animais de estimação. Em regra antissociais, muitas vezes desligados da realidade que os rodeia, estas pessoas — que todos nós sabemos identificar — operam sobre os seus cães, gatos e outros uma espécie de humanização forçada, uma “gentificação” grotesca e este partido, o PAN, aproveita-se disto mesmo para medrar e crescer eleitoralmente através de propostas que, por muito irrealistas que sejam, vão de encontro a este eleitorado. Permitir que animais de estimação acedam a restaurantes, a título de exemplo, parece ser um descarado ataque aos padrões mínimos de higiene e salubridade que estruturam a sociedade moderna e que foram tão difíceis de implementar. Mas o PAN corporiza esta aparente erosão de bom senso daquela parte da sociedade que não percebe como nos empurra coletivamente com medidas como esta para as sociedades medievais de promiscuidade entre pessoas e animais.
Revelando-se arguto em todo este processo, os dirigentes do PAN não se arriscam a falar muito. Não se alongam nos discursos e nos problemas. Inteligentemente, agarram-se a uma ou duas palavras de ordem e não se comprometem politicamente. Com efeito, em quatro anos de mandato no parlamento português, não se conhece muito acerca do que o PAN e o seu deputado — que acho que é também líder ou porta-voz —, André Silva, pensa sobre o que quer que seja que não seja touradas ou afins.
Agora que o PAN vai para o Parlamento Europeu, começa-se a destapar um pouco do véu que o tem envolvido politicamente. Muitas mulheres, por exemplo, que votaram no PAN por causa dos seus Bolinhas, Snoopy ou Rex, têm, por ora, os seus cabelos em pé quando descobriram, pelos jornais, que o PAN quer pô-las a usar copos menstruais em vez dos habituais pensos e tampões. Diz André Silva: “Financeiramente, [o copo menstrual] é mais vantajoso, responde a uma necessidade cíclica feminina e minimiza os danos sobre o planeta”. Não, não responde. Qualquer mulher que tenha um mínimo de padrões de higiene e limpeza dir-lhe-á isso mesmo. Mas para as mulheres que não se acreditam no que escrevo há uma boa solução: experimentem o copo vaginal. É que só experimentarão uma vez. E essa vez que seja ao fim-de-semana, que é para não serem obrigadas a abandonar os trabalhos.
Há também as faturas em restaurantes de luxo que servem carne e peixe de categoria, mas isso é entrar numa área que não considero tão interessante. O que me interessa falar é sobre a parte ideológica do PAN. O problema da ecologia e dos perigos que ameaçam a sustentabilidade do nosso planeta não se reduz aos animais, nem se resolve com medidas particulares como copos menstruais. Pelo contrário, os problemas que nos afetam são problemas de fundo, são problemas estruturais que envolvem a organização das nossas sociedades, mas também do ponto de vista económico, e o nosso modo de vida que nos é incutido desde o berço. É irrealista, demagogo e populista pensar que a sobreprodução alimentar, a sobreprodução de plásticos, de bens, a hiperbolização do consumo, transversal em toda a sociedade, e a consequente produção estratosférica de resíduos, quantidades impossíveis de tratar e que vão poluir os nossos rios, mares, os solos e a atmosfera, possam ser controlados através da imposição de hábitos de reciclagem ou da utilização de sacos de papel ou copos menstruais.
Um partido ambientalista que seja sério tem, portanto, que tomar posição sobre estas matérias da organização social e económica do país. Porque se o capitalismo se baseia na sobreprodução e no incentivo ao consumo, se essa é a natureza desse sistema, então um partido ecologista tem que ser capaz de rejeitá-lo e de se assumir como antissistema e anticapitalista. Não o fazendo, reduzir-se-á a um partido demagogo e populista que acabará com o fim das febres mediáticas ambientalistas, com o fim das causas de algibeira ou com uma qualquer revelação de faturas em restaurantes de luxo de peixe ou de carne.
Mas também isto, de facto, vai de encontro ao eleitorado que vota PAN. O PAN oferece aos seus eleitores um voto livre de responsabilidade, livre de verdadeiras escolhas e repleto de boas e vãs intenções. Por isso mesmo dizia, no princípio deste texto, que o voto no PAN era uma mistura que incluía o voto de protesto, manifestação — acrescento — de uma sociedade repleta de perfeitos incapazes de exercer a cidadania e a democracia, através da educação, da cultura, da participação política e do voto. Em concordância, observe-se aquela tentativa aberrante de pôr os cidadãos a votar a partir dos dezasseis anos de idade. Só por ignorância, ou para tentar capitalizar politicamente dessa mesma ignorância, é que se pode propor algo tão surreal.
Neste sentido, mais do que a eleição de André Silva, há quatro anos, para o Parlamento português que, como disse, pouco ou nada acrescentou ao nosso conhecimento da ideologia do PAN, a eleição de um eurodeputado para o Parlamento Europeu tem uma vantagem imediata: vamos saber de que lado do parlamento e em que cadeira se senta esse parlamentar. Sentar-se-á à direita ou à esquerda? De que grupo parlamentar europeu fará parte? Mesmo continuando a dizer nada de nada sobre o essencial, poderemos pelo menos ver quem serão os seus amigos na Europa. E, segundo consta, os amigos europeus do PAN não serão os mais aconselháveis...
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