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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Um pouco de lealdade no debate, por favor!

Por vezes, parece que o exercício da política é inteiramente dedicado aos intelectualmente inferiores. Parece que nenhum recetor da coisa política é suficientemente inteligente ou letrado para reconhecer uma ironia ou um discurso figurado. Digo isto, obviamente, relativamente à já célebre promessa de um par de bofetadas do Ministro da Cultura.

 

Claro que daqui por uns tempos já ninguém se lembrará disto. A política, ou o tratamento que dela é feito, parece ter entrado decisivamente numa espécie de modo Reality TV, um género de sucessão de eventos pseudo-bombásticos, que inibe qualquer tipo de reflexão.

 

Ainda hoje, leio comentários indignados nos jornais que referem qualquer coisa como que um Ministro não pode ameaçar fisicamente ninguém e que, por isso, se deve demitir. É caso para duvidar, consistentemente com aquilo que escrevi no parágrafo primeiro, da capacidade intelectual de quem escreve tais comentários, de quem profere tais palavras. É sentido figurado! Não há qualquer perigo de violência física! Se não sabe, aprenda!

 

Porque já antecipo o género de comentários que esta minha opinião suscitará, deixem-me atestar que não considero a linguagem utilizada a mais apropriada para o cargo, nem nutro pela pessoa do Ministro da Cultura particular admiração. Acho, inclusivamente, que há um certo tom de sobranceria e de altivez que marca indelevelmente o seu estilo. Dito isto, também me parece que este jogo a que assistimos é profundamente desigual: aos comentadores tudo é permitido, podem adjetivar o cargo, a pessoa e a sua ação como bem entendem que nada lhes acontece — há uns anos um comentador chamou de palhaço ao Presidente da República e o tribunal, então, ilibou-o; já aos agentes governativos toda a parcimónia é requerida na escolha do léxico para se defenderem dos ataques de que são alvo, sendo que o recurso à adjetivação encontra-se condicionado e o recurso à linguagem figurada totalmente proibido.

 

É manifesto que cada governante deve ser um exemplo de boa conduta e educação mas francamente: haja também um pouco de lealdade no combate, isto é, no debate. Se são capazes de apelidar o Ministro de “insignificante” e de “lamentável”, por exemplo, sejam capazes também de aceitar igualmente as queirosianas bengaladas que virão, naturalmente, a caminho, sem delas fazer este espetáculo deprimente.

publicado às 10:47

A gravidade relativa das notícias

“(...) Ela lia as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas...» As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa – e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados...». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!» A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas... Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma então teve um «oh!» de dolorida surpresa. No Sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilando causara três mortes, onze ferimentos...» Uma curta emoção, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses... Todos lamentaríamos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.

 

A leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso, e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno.... E, de repente, solta um grito, leva as mãos à cabeça:

 

– Santo Deus!...

 

Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:

 

– Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista... Esta manhã! Desmanchou um pé!

 

Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.

 

As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.

 

Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.”

 

in As Catástrofes e as Leis de Emoção, Bilhetes de Paris, de Eça de Queirós

 

 

A propósito dos incidentes em Paris, lembrei-me deste pedaço de genialidade de Eça, chamado de As Catástrofes e as Leis de Emoção que, muito coincidentemente, faz parte de um conjunto mais alargado de textos intitulado Bilhetes de Paris.

 

Seria importante que nós, enquanto povo, nos sensibilizássemos ativamente não apenas (e muito justamente!) com o que nos acontece próximo do nosso quintal mas também com o resto, nomeadamente com os bombardeamentos permanentes que acontecem na Faixa de Gaza e na Cisjordânia e que, todavia, passam incólumes nas notícias.

publicado às 16:30

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