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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

A Filosofia vem depois. A Ciência está-nos a estupidificar.

Tenho a impressão que já partilhei este pensamento, mas ainda assim — demasiado preguiçoso para pesquisar as entradas deste blog — escreverei algumas linhas sobre o tema.

 

A disciplina do pensar, do refletir, do projetar, a Filosofia, nome tomado emprestado dos gregos antigos e que elegantemente significa “amor pela sabedoria”, foi ao longo de milénios um pilar estruturante das sociedades ocidentais, tendo atingido o seu auge durante a civilização helénica. A religião, que dominou fortemente as sociedades pós-clássicas, também não deixa de ter uma componente filosófica vincada, embora segundo uma interpretação pré-definida da realidade. Quero com isto dizer que as sociedades construíam-se segundo uma determinada bússola, chamemos-lhe moral. O que se fazia fazia-se de uma determinada forma, segundo um conjunto de princípios considerados corretos.

 

Descontadas todas as exceções, o que acontece hoje em dia, nas sociedades contemporâneas, é muito diferente. A célebre frase de René Descartes, Penso, logo existo, serviu não como lema para a criação de uma nova Filosofia moderna inserida numa revolução científica mais ampla, como era o original intuito do autor, mas como epitáfio à Filosofia como um todo. Com efeito, a obra do génio francês, o seu brilhante contributo conjunto matemático-filosófico, terá sido aquele ponto singular que, na linha da História, fez com que a Filosofia perdesse toda a sua relevância em favor da Ciência, de uma nova Ciência que, hoje em dia, tudo domina.

 

O resultado de tal transformação tem-se revelado sinistro. Em vez de termos sociedades governadas por conjuntos de princípios, por uma moral e por uma ética, temos sociedades movidas unicamente pelo egoísmo e pela ganância que procuram na Ciência as justificações para o seu modo de agir. A Filosofia que vinha antes, agora vem depois e isso faz toda a diferença.

 

Veja-se o que se passa com o aquecimento global, por exemplo. Desde logo, encontramos grupos de cientistas advogando em sentidos diametralmente opostos sobre a influência humana no processo. E eu pergunto: para que é que precisamos de cientistas e de ciência nesta discussão? Não é óbvio que a poluição está a destruir o ambiente e os nossos recursos? Isso não deveria bastar?

 

Não. Isso não basta.

 

Nesta sociedade globalizada em que vivemos, parece que temos que ter uma figura de bata branca a dizer-nos o que temos que fazer mesmo que o que tenhamos que fazer seja absolutamente evidente. E agora, mais espantoso ainda, um grupo cada vez maior de figuras de bata branca começa a inundar o espaço mediático para nos dizer que, sim senhor, que a poluição está efetivamente a destruir o planeta, como se nós já não soubéssemos disso. Porque o fazem agora? Porque descobriram algo novo com o seu método científico à prova de bala? Algo que não soubessem antes? Não. Fazem-no agora porque os interesses económicos para os quais trabalham têm um grande interesse em fazer uma nova fortuna a vender-nos carros elétricos.

 

Ninguém pergunta se as baterias elétricas são poluentes — são e são muitíssimo perigosas para os nossos lençóis freáticos. Ninguém pergunta se as baterias elétricas são sustentáveis, isto é, se temos capacidade elétrica para sustentar um mercado de carros elétricos — não, não temos, nem que, por artes mágicas, duplicássemos o número de barragens. Ninguém pergunta se, em termos globais, um carro elétrico consome menos energia que um carro a gasolina — não, não consome, consome mais. Ninguém pergunta isto, ou muitas outras pertinentes questões, às figuras de bata branca, porque isso não interessa. O que interessa é ludibriar as populações e fazer negócio para as elites burguesas. Isto é o que se chama Filosofia ao contrário, Filosofia subvertida. Primeiro existe o interesse, depois encontramos a justificação filosófico-científica para legitimar o interesse. Primeiro o interesse, depois a filosofia. A Filosofia vem depois.

 

Outro segmento da sociedade que me desperta o interesse é o da educação e este é particularmente luminoso para o ponto que pretendo passar neste texto. As filosofias educativas parecem ser elaboradas à medida dos objetivos que as sociedades ocidentais pretendem atingir neste domínio. E que objetivos são esses? Ter as melhores estatísticas possíveis relativamente ao abandono e ao sucesso escolares. A educação é um instrumento — o instrumento de eleição — de propaganda das nossas sociedades. O que dizer? Adoramos ser enganados.

 

O que interessa que um aluno médio saia do nosso sistema sem conseguir ler duas páginas de texto consecutivas? O que interessa que não saiba escrever duas linhas de texto inteligível? O que interessa que não saiba a História ou a Geografia do seu país? O que interessa que não saiba fazer uma simples conta aritmética sem a ajuda do telemóvel? Não interessa nada. O que verdadeiramente interessa é que tenha feito o seu percurso de doze anos com as melhores notas possíveis e sem chumbos pelo meio. Isso é que é motivo de regozijo e exaltação bacoca para presidentes e primeiros-ministros.

 

Como este é o objetivo, adota-se uma filosofia educativa conveniente para justificá-lo: uma filosofia que demonize retenções de ano, que veja com maus olhos a disciplina e que carregue sobre o Professor toda a responsabilidade do processo de aprendizagem dos alunos. Se o aluno não aprende, então é porque o Professor não soube explicar bem a lição ou não soube motivar o aluno. Reparem como, neste caso, é apropriada uma filosofia educativa que coloca o aluno no centro do processo educativo, como um ente que contém dentro de si à partida todo o conhecimento necessário e que apenas necessita que alguém externo, o professor, desencadeie nele um processo de revelação. Alternativamente, o aluno é como que um pedaço de lousa limpa a aguardar por uma gravação mágica do conhecimento essencial a giz, pelo professor. Também aqui a Filosofia vem depois. Primeiro vem o interesse, depois vem a filosofia educativa.

 

Qualquer pessoa que tenha estudado, e não apenas passado pela escola, reconhece que disciplina, esforço e dedicação são condições fundamentais para qualquer processo de ensino-aprendizagem. Qualquer pessoa com um mínimo de bom-senso percebe que o Professor é um mero catalisador deste processo, um orientador do estudo. O aluno deve ser o centro das aprendizagens, mas através da responsabilização em todo o processo. Ao aluno deve-se exigir que estude e que seja educado. Estes princípios têm que vir primeiro. É isto que está certo. É isto que funciona para se aprender. O problema é que aprender não é o objetivo do sistema. O objetivo do sistema é passar os alunos pelo próprio para se dizer que a educação é brilhante.

 

Faz-nos muita falta mais Filosofia e menos Ciência. O primado da Ciência sobre tudo o resto está-nos a estupidificar. Já não questionamos. Já não pomos em causa. Já não refletimos. Já não imaginamos. Apenas repetimos o que as figuras de bata branca nos dizem.

publicado às 13:13

Desconfiemos sempre do que os nossos olhos nos mostram

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/79/PSM_V37_D740_Rene_Descartes.jpg

 

Whatever I have accepted until now as most true has come to me through my senses. But occasionally I have found that they have deceived me, and it is unwise to trust completely those who have deceived us even once.

 

O que quer que tenha aceite até agora como absolutamente verdadeiro chegou até mim através dos meus [órgãos dos] sentidos. Mas, ocasionalmente, cheguei à conclusão de que eles me iludiram, e que não é prudente confiar completamente no que nos iludiu nem que seja uma só vez.

 

— René Descartes, in First Meditation: On what can be called into doubt [Primeira Meditação: Sobre o que pode ser objeto de dúvida], 1639.

 

N. B.: todas as traduções são não oficiais.

publicado às 23:16

O princípio

De omnius dubitandum est (“duvide de tudo”), porque a perceção da realidade e a realidade são frequentemente diversas uma da outra.

 

Este princípio, por si só, fez de René Descartes o pai da chamada Filosofia Moderna e do racionalismo. Na Matemática, Descartes também deixou o seu dedo revolucionário com a criação da Geometria Analítica. Isto aconteceu porque se começou por questionar a si próprio, aos seus sentidos, e não aceitar nenhum axioma por tradição.

O desafio das convenções estabelecidas foi sempre, e sempre será, o maior dinamizador das mais importantes conquistas humanas. A aceitação dos diktats externos sem um questionamento, sem uma racionalização, constitui, contrariamente, o fermento putrefato dos tempos mais negros da humanidade.

publicado às 15:15

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