Passam hoje cinco dias da noite eleitoral de domingo último o que representa, em termos relativos contemporâneos, uma eternidade. Como é normal nestas coisas, ainda os votos não estavam suficientemente contados, já os candidatos e os representantes políticos faziam as suas declarações e os comentadores elaboravam as mais profundas reflexões sobre os resultados previstos pelas sondagens à boca das urnas.
Para todos aqueles que, frequentemente, se queixam do enviesamento e condicionamento da opinião pública, para os quais as várias empresas de sondagens objetivamente concorrem, a verdade é que a classe política, com as suas extemporâneas reações aos resultados de meras sondagens, ainda que feitas à saída do ato eleitoral, sem esperar por resultados mais consolidados, contribui ativamente para valorizar e credibilizar o “sistema” das sondagens.
E se é verdade que estas últimas sondagens, as que são feitas à boca das urnas, se revelam bastante precisas com respeito aos candidatos ou partidos, conforme o caso, mais votados, relativamente aos menos votados, todavia, se mostram perfeitamente inúteis, admitindo margens de erro da mesma ordem de grandeza das próprias votações esperadas.
Relativamente a estas últimas eleições presidenciais, todas as sondagens divulgadas acertaram no primeiro, no segundo e terceiro lugares. Quanto aos outros lugares, houve distribuições para todos os gostos, incluindo uma que colocava João Ferreira, o 4º classificado final, em 7º.
A partir dessas projeções traçaram-se, de imediato, os mais negros quadros. André Ventura, que podia chegar ao 2º lugar, com uma votação na ordem dos 15%, representava um perigo para a democracia, seria capaz de condicionar o PSD e exercer influência governativa a curto prazo à semelhança do exemplo de outros países europeus. Tiago Mayan, da iniciativa liberal, tinha também um excelente resultado podendo igualar ou superar os resultados da esquerda, estando uma inevitável reconfiguração da direita em curso.
Afinal, contados todos os votos, Ventura obteve uns meros 11,9% e Mayan uns míseros 3,22%. Estes resultados representam um sinal de preocupação? Em si mesmos, é evidente que não.
É precisa muita falta de memória para nos assustarmos com isto.
Em primeiro lugar Mayan. O crescimento da “onda liberal” equipara-se ao crescimento da “onda” de Vitorino Silva que obteve votação equivalente. Fica-se por aqui a análise à antecipada “onda liberal”.
Em segundo lugar, Ventura. Uma votação de 11,9% está em linha com outras votações em candidatos antissistema. Em 2016 Marisa Matias teve 10,12% de votos e em 2011 Fernando Nobre teve 14,1% de votos só para dar dois exemplos de votações semelhantes sem qualquer tipo de consistência política ou ideológica traduzidas numa total ausência de sequência eleitoral. Bem entendido, não me estou a referir aos candidatos individualmente, mas antes às características do voto que recolheram. Podia dar outros exemplos. Há razões para temer que a votação em André Ventura seja de natureza diferente? Não.
Relativamente à questão tão falada e ansiada da reconfiguração da direita, queria acrescentar ainda o seguinte. No dia em que Passos Coelho voltar ao PSD, coisa que se está a preparar nas sombras, pacientemente à espera que este governo caia de maduro, nesse mesmo dia acaba-se a Iniciativa Liberal e o Chega. A existência de ambos os projetos políticos só se justifica pela fixação dos quadros neoliberais e populistas que ficaram órfãos de partido com a saída de Passos e a entrada de Rio e pelo enfraquecimento da liderança deste último. Ponto. Esqueçam lá outras teorias e ideologias complexas.
Ventura ter tido 11,9% de votos é um resultado fraco que não vai além do mero voto de protesto a que as eleições presidenciais sempre tão bem se prestam e que tantos outros candidatos no passado conseguiram usufruir. No atual contexto, em que a direita deveria supostamente estar revoltada com a ação de Marcelo Rebelo de Sousa e a sua aliança com o governo PS, conseguir aglomerar apenas 11,9% é extremamente modesto. Se nestas eleições, com tudo a seu favor e com a abstenção que se verificou, Ventura não foi além deste resultado, acho que podemos todos dormir descansados à noite.
Se não devemos ficar assustados com o resultado eleitoral propriamente dito, devemos, sim, ficar preocupados com a cobertura mediática crescente, despudorada até, por parte dos jornais e das televisões, ao Chega e a André Ventura. Não me venham com a história de que o que é chocante ou grotesco vende mais jornais. O que se tem passado é uma objetiva valorização da mensagem da extrema-direita e, isto sim, pode ter consequências graves. Os 11,9% de votos aliados a uma cobertura mediática permanente podem, sim, fomentar uma curiosidade e uma ignorância que se podem converter, a breve trecho, num monstro incontrolável. Não há memória de um partido com 1,29% de votos nas últimas eleições ter a segunda ou terceira maior cobertura mediática registada nas eleições seguintes. Isto não é uma questão de mediatismo. É uma questão de escolhas, de escolhas editoriais, as mesmas que tantas vezes censuram um partido histórico, institucional e responsável como o PCP e o reduzem ao mínimo de visibilidade. É, antes de tudo, de escolhas ideológicas que se trata e é nosso dever exigir à comunicação social as suas devidas responsabilidades.
Quanto à crise da esquerda, não há novidade. PCP e BE mostram bem a encruzilhada política em que se meteram, vítimas da sua própria política de alianças de “mal menor” — com o PS, entenda-se — traduzida, nestas eleições, no voto útil dos portugueses e, em particular, dos seus próprios eleitores. Nem BE, com o seu voto contra face ao orçamento de estado, nem PCP, com o seu permanente apoio ao governo PS, conseguiram lucrar politicamente com isso, tendo assistido, impotentes, ao seu eleitorado divergir para Marcelo, maioritariamente, ou para Ana Gomes. Faça o que fizer, a esquerda não se consegue libertar da camisa de forças que vestiu.
O BE é, claramente, vítima do seu próprio discurso histórico de convergências de esquerda a qualquer custo, discurso esse que o coloca à mercê de qualquer candidato da área do PS que exiba algum grau de irreverência ou de não conformismo.
O caso do PCP é, claramente, mais grave. Continuamente a perder número de votos, eleição após eleição, joga o seu melhor quadro, o seu melhor candidato, numa espécie de tudo ou nada e, mesmo assim, obtém menos 2000 votos que Edgar Silva nas presidenciais de 2016 e que, na altura, tinha ficado marcado como o pior resultado de sempre do partido. O PCP tem toda a legitimidade para seguir este caminho de “renovação” e de alianças com a social-democracia burguesa, mas tem que perceber que, ao fazê-lo, ao se converter numa força da mesma espécie das que já existem, subtrai-se eleitoralmente.
O que é preocupante não é, pois, o resultado de André Ventura. Não há nenhuma ascensão do fascismo em Portugal nem da extrema-direita liberal. O país é, essencialmente, o mesmo que sempre foi com todas as suas virtudes e defeitos e a democracia é um bom espelho do nosso povo. A resposta eleitoral que foi dada mostra-o com clareza. O que é preocupante é outra coisa: é ver, por um lado, uma comunicação social a alimentar, por todas as formas, a besta fascista e, por outro, as forças progressistas completamente fora de jogo.