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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Fernanda Lapa (1943-2020)

https://www.tv7dias.pt/wp-content/uploads/2020/08/Fernanda-Lapa-dest1596703511-1024x597.jpg

image: www.tv7dias.pt

 

Não deixa nunca de me espantar a forma como tratamos e como esquecemos, ao ponto da nota de rodapé, do quadradinho minúsculo ao canto do periódico, as grandes figuras deste país. Que sociedade somos, o que podemos ser, se não conhecemos quem tanto nos deu, se cultivamos o esquecimento permanente, sempre com os olhos postos num amanhã ilusoriamente renovado? Que sociedade é esta que projetamos deste modo?

publicado às 09:24

Agustina e algumas reflexões

Morreu Agustina Bessa-Luís e a sua morte suscitou em mim um conjunto de reflexões. Procurarei apresentá-las de forma clara.

 

De imediato, o mundo intelectual desfez-se num pranto de elogios. Alguns apontaram mesmo a pena de Agustina como transformadora do panorama literário português e eu dei por mim a pensar... Quem nunca leu Agustina nunca saberá se o que dela por estes dias dizem e escrevem é verdade ou, simplesmente, enfeite. Quem nunca leu Agustina — e, provavelmente, nem sequer se importa com isto de que escrevo — limitar-se-á a repetir ou a contrariar o que é dito, restringido, por uma de duas vias, à pobre condição de condenado: ou a crer numa espécie de religião imposta por sacerdotes externos ou a descrer por mera convicção infundada, num ato de rebeldia meramente ignorante.

 

A morte de Agustina é reveladora, por isso, da condição de grande parte da sociedade. No desenlace das últimas eleições europeias, recordistas em abstenção do povo português, de um povo que se queixa que todos são iguais e de que não há alternativa, mas que, indelevelmente, acaba sempre por eleger os mesmos, e que entrega parte caprichosa, mas relevante, dos seus votos a partidos políticos dos quais pouco sabe, quer-me parecer que na morte de Agustina não poderíamos encontrar melhor metáfora, melhor imagem, para esta sociedade de amblíopes culturais que ora aceitam o que lhes dizem acriticamente, ora rejeitam-no do mesmo analfabeto modo, porque não podem fazê-lo de outra forma, porque têm um espaço vazio onde a cultura e o conhecimento deviam estar.

 

Depois deste pensamento primeiro, aflorou-se-me um outro, sempre recorrente, que tem que ver com o sistema educativo, concretamente no que concerne a disciplina de Português. A falta de promoção da leitura ao nível desta disciplina é absolutamente evidente. A disciplina de Português prefere perder o seu tempo em vãs tentativas de ensinar uma gramática infértil de complementos oblíquos e predicativos de sujeito paridos não sei bem de onde, intercalados com resumos analíticos e secos de um punhado de obras nunca lidas pelos alunos que aprendem a repetir banalidades sobre o realismo e o existencialismo literários para passar nos testes. Aos alunos devia-se dizer, simplesmente, «leiam»! E apontar obras, algumas, relevantes, para que tivessem contacto com pelo menos uma de cada escritor importante. Este devia ser o precioso pretexto que a disciplina de Português devia deixar em cada aluno que tem. Que leiam. Que digam o que entenderam. Que expliquem de que forma é que a obra os transformou por dentro. Isto devia ser o mais importante. Mas não é. Deixo aqui um desafio aos meus leitores para que percam uns minutos do seu tempo para descarregar da internet o último exame de Português do derradeiro ano de escolaridade obrigatória dos nossos jovens aprendizes. Descarreguem e analisem por vós. É surreal: putativos especialistas em linguística que, na prática, não conhecem os autores, não sabem ler, nem escrever.

 

Eu nunca li Agustina. A escola nunca me deu o pretexto de a ler, aquele pretexto de que falava acima. Para além disso, por esta ou aquela razão, nunca segui um caminho que me levasse à sua leitura. Diria que o estilo e a temática da autora nunca me cativaram e preferi ler outros autores. Assim, faço parte daqueles que não podem e não têm o direito de ter opinião sobre a autora. Reparem que neste campo, a política é muito diferente. Quem nada sabe, quem desconhece até o nome dos governantes, tem opinião sobre tudo e de tudo reclama. Por isto mesmo, eu não sei dizer se Agustina foi ou não transformadora da literatura portuguesa. Não sei dizer se cada elogio foi adequado, se pecou por escasso ou por excesso. Não sei. De qualquer modo, se Agustina Bessa-Luís foi efetivamente tudo o que dela dizem hoje, sobre a data do seu falecimento, então uma coisa podemos concluir: trata-se de uma autora muito pouco estimada e valorizada pelo país — pelo estado e pelo povo, não a academia ­— que pouco ou nada a lê e pouco ou nada a conhece.

publicado às 18:46

Cultura de prepotência

A juventude entra na faculdade e, ato contínuo, segue em rebanho para as chamadas praxes onde é sujeita a todo o tipo de enxovalhos e humilhações. É certo que também há retorno positivo, há amizades, engates, conhecimentos, mas a coisa é exatamente assim e, mais, uma coisa não devia estar relacionada com a outra. Os jovens sujeitam-se e aguentam as humilhações dia após dia, até ao final do primeiro ano. Resulta, quase em jeito de regra geral, que estes mesmos jovens começam o segundo ano de faculdade a infligir idênticos enxovalhos e humilhações aos caloiros do novo ano. Fazem-no porque fizeram-lhes igual. Fazem-no por vingança. Fazem-no porque veem nessa ação uma espécie de sentido estranho justificativo para o que sofreram no ano anterior.

 

Esta lógica social do ambiente relativamente circunscrito das universidades é transportada por decalque para outros ambientes sociais, nomeadamente para o mundo do trabalho. Na maioria dos locais de trabalho, os trabalhadores sofrem os maiores enxovalhos e humilhações por parte dos seus patrões. Estes últimos fazem abusivo uso do seu poder sobre os primeiros que deles dependem para a sua sobrevivência. Esta arrogância, esta prepotência, esta falta de correção e respeito no trato transporta-se na cadeia de comando, desde o patrão até ao último subordinado. É estranho que assim seja e que não ocorra uma quebra desta lógica em algum elo. É estranho que cada um dos trabalhadores interiorize que é assim que se deve tratar um subordinado, em última instância, um colega. Recordo o dito popular: “Não peças a quem pediu, nem sirvas a quem serviu”...

 

Há uma interiorização deste exercício do poder pelo poder que é transversal em toda a sociedade. Como se nos tratássemos uns aos outros por vingança, olho por olho, dente por dente. Por que é que agimos desta forma para com os outros? Porque outros agiram sobre nós dessa mesma forma. Não sei onde caberá aqui a ideia de não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam a nós próprios.

 

Por que o fazemos? Porque já assim se fazia quando aqui chegámos. 

 

https://i.stack.imgur.com/MyQki.jpg

 

publicado às 15:46

Não há Páscoa que nos valha

Há uns anos largos, quando as agressões dos Estados Unidos da América sobre o Iraque e Afeganistão já se prolongavam no tempo, mas ainda antes do início da invasão da Líbia — deve ter sido na viragem da primeira década deste milénio, creio —, conversava eu com dois altos quadros do país sobre temas vários e caí no erro de tocar neste assunto, na questão da política externa norte americana.

 

O primeiro, um médico destacado, disse-me isto que reproduzo textualmente: “Os americanos deviam lançar bombas em todas as zonas muçulmanas e terraplanar aquilo tudo”. E acrescentou: “Só assim se resolvia o problema”. A segunda, uma promissora cientista investigadora na área da microbiologia, concordou de forma efervescente com o seu par e acrescentou, de olhinhos brilhantes a espreitar por detrás de umas lentes grossas, uma outra imbecilidade qualquer da qual, com sinceridade, não me recordo. Como é óbvio, não prossegui com o tema.

 

Reparem que não estou a falar de duas pessoas quaisquer, não estou a falar de duas pessoas comuns, com pouca educação ou parca formação intelectual e cultural. À partida, tratavam-se de duas personalidades de relevo, com condições para maturar uma opinião equilibrada, contextualizada e com bom-senso. Mas não, notei com admiração: a opinião deste médico e desta cientista eram iguais à de tantos outros. Não precisavam eles, o médico e a cientista, de terem tido tanta formação, de se terem dedicado tanto aos estudos, para, com efeito, emitir uma tal opinião. Essa mesma opinião encontra-se em qualquer tasca ou café, em qualquer estádio de futebol, em qualquer canto mais esquecido e menos iluminado pela cultura neste país.

 

Mais não seria preciso para colocar a nu a evidência de que estas questões puramente políticas, a forma como vemos o nosso semelhante, a forma como encaramos os conflitos das sociedades e dos povos, pouco ou nada têm que ver com a educação do indivíduo. Nascem connosco. São parte de nós, como uma força que se manifesta no momento certo, quando devemos tomar partido. Acreditem, isto é mais genético do que de outra natureza.

 

Recordo-me muitas vezes desta história chocante. Lembrei-me hoje, particularmente, a propósito do lançamento da já famosa bomba americana sobre o Afeganistão, uma bomba capaz de destruir uma zona com um diâmetro de 1,4 km. Espanto-me por assistir às reações do mundo ocidental, o “mundo católico e cristão”, o “mundo da paz”. É vê-los a descrever em detalhe, regalados, as 8,4 toneladas de explosivos que compõem o engenho, o seu alcance e a sua profundidade. Pergunto-me: «Onde estão as reações de choque e de reprovação? Onde vivem as memórias de Hiroshima e Nagasaki?».

 

Mas o meu espanto é uma reação automática, não muito justificada, devo admitir. O mundo está repleto de gente como o médico e a cientista de que falava no princípio. Eles acham que isto resolve-se desta forma, lembram-se? Tivessem eles o poder, a motivação e a coragem, e seriam simetrias perfeitas dos mais abjetos terroristas que possamos encontrar do outro lado do mundo e que hoje abominamos em uníssono.

 

É uma época triste para a humanidade. Para alguns de nós, não há cordeiro expiatório, nem um qualquer homem na cruz, não há Páscoa, nem outro ritual diverso que nos possa valer. Estamos condenados, pela nossa própria natureza, a uma existência de mesquinhez, de desconfiança e de inimizade.

publicado às 19:53

O PCP e a cultura do miserabilismo político

Acho que devemos ser exigentes na política, sobretudo nas áreas de que somos mais próximos. Percebo todos aqueles que assobiam para o ar e que preferem não apontar o dedo ao que é óbvio. Entendo bem. A política é uma batalha de ideais e as críticas devem-se reservar para os momentos de reflexão interna para não dar armas ao adversário. Tudo isto é verdade, mas tudo isto é inútil e contraproducente quando parece que se perde a razão ou o sentido das coisas. Repito: devemos ser ainda mais exigentes com o que nos é querido, precisamente porque para o que nos é querido queremos o melhor.

 

Há uns tempos, aquando da recondução de Jerónimo de Sousa no PCP, escrevi um artigo criticando a opção que, aos meus olhos, pareceu inconcebível. Volvidos alguns meses, todas as razões que fundamentaram a minha opinião permanecem intactas. O PCP escolheu reconduzir um secretário geral que se apresenta demasiadamente cansado e velho, que repete um discurso gasto, pejado de graçolas que já não têm graça nenhuma, uma presença infeliz e lastimável em todos os palcos que pisa, de onde se destaca negativamente o parlamento.

 

Malogradamente, esta lamentável condição do líder do PCP estende-se, quase que por contágio, a quase todos os parlamentares e políticos que representam o partido. Não sendo, muitos deles, demasiadamente velhos, a verdade é que o seu discurso parece ser escrito pela mesma pena, tamanha é a coleção de palavras comuns a todos eles. Não é isto de somenos, visto estarmos a falar da riquíssima língua de Camões, repleta de palavras sinónimas e de diferentes recursos estilísticos. Não obstante, desde os mais novos até aos mais velhos, parece que os papéis que leem são cópias de um mesmo original e o que dizem parece ter sido decorado numa espécie de ladainha de uma qualquer agregação religiosa. Novamente, entendo perfeitamente que alguma organização é necessária nestas matérias e que também é importante falar-se a uma só voz, mas isto... é demais. Todos os limites da decência intelectual são ultrapassados.

 

Enquanto que o Bloco de Esquerda, mesmo ali ao lado, exibe eloquentes vozes, discursos bem preparados e apelativos, parlamentares bem-apessoados, o PCP parece abdicar por completo dessa potencialidade fundamental no processo comunicacional. Ao fazê-lo de forma tão convicta, cria uma espécie de um culto do miserabilismo político, um culto do coitadinho. O PCP perde todos os debates? Não há problema, trata-se de um partido muito honesto, incapaz de passar a sua mensagem, mas honesto. As pessoas mudam de canal quando um comunista começa a falar? Não há problema, há de cair uma luz qualquer que as fará ouvir o que se tem para dizer.

 

Não interessa que o Bloco de Esquerda seja a conglomeração política mais incerta que existe em Portugal. Uma coisa não tem nada que ver com a outra. O Partido Comunista Português devia começar a olhar-se ao espelho e ver bem a figura que tem e a imagem que transmite.

 

Escrevo estas palavras motivado pelo conhecimento que tive de alguns dos candidatos do PCP a algumas das maiores autarquias da região do Porto. Ilda Figueiredo, por exemplo, é a candidata à Câmara Municipal do Porto. Ilda surge na mesma lógica da recondução de Jerónimo de Sousa: é uma figura histórica, de valor incomensurável para o PCP, mas com evidente falta de energia para tamanhas responsabilidades que o cargo exige. Mas por toda a região do grande Porto, os exemplos sucedem-se. Fosse esta situação o resultado da falta de quadros válidos e eu não estaria a escrever estas linhas. O problema é outro e é muito mais grave. É esta cultura de miserabilismo político, este fechamento interno, esta filosofia de seita religiosa, de organização piramidal, esta relação de pastor com as suas ovelhas.

 

Custa-me muito escrever estas palavras, mas acho que já chega de me tomarem por parvo, a mim e a tantos como eu, progressistas, marxistas, intelectuais altruístas sem qualquer interesse pessoal na política que não seja o de servir a comunidade.

 

Quando o PCP não faz do povo parvo, como por exemplo com Bernardino Soares em Loures, o povo responde afirmativamente. Quando o PCP começa a jogar o jogo do coitadinho, o povo responde de acordo, sempre. Esta parece ser uma lição difícil de aprender para o Partido Comunista Português.

publicado às 15:30

Ideia fixa em países adiantados

Então o quê? Não concebem um secretário de Estado filósofo, um ministro poeta, escritor elegante, cheio de graça e de talento? Não, bem vejo que não: têm a ideia fixa de que um ministro de Estado há-de ser por força algum sensaborão, malcriado e petulante. Mas isto é nos países adiantados, em que já é indiferente para a coisa pública, em que povo nem príncipe lhes não importa já em que mãos se entregam, a que cabeças se confiam.

— Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett

publicado às 21:02

Lembremo-nos dos gregos

Chama-se de Grécia Antiga a uma civilização que existiu entre aproximadamente o século VIII a. C. e o ano 600 d. C. Esta civilização não era delimitada exclusivamente por fronteiras políticas. Pelo contrário, as muitas dezenas de cidades-estado que varriam toda a zona que hoje é ocupada pela atual Grécia, pelo sul de Itália e da França, a Macedónia, o Chipre, a Turquia e parte do norte de África, eram unidas por um laço mais forte chamado de cultura, de filosofia e de ciência.

 

Na Grécia Antiga sabia-se mais matemática e tinha-se mais conhecimento do que durante os quase dois milénios que se seguiram ao fim do império romano. Sabia-se, por exemplo, que era a Terra que orbitava em torno do Sol e não o contrário. Estimara-se também o raio da Terra e a distância da Terra à Lua. São apenas alguns exemplos. Os avanços dos gregos abrangeram praticamente todas as áreas do saber e da cultura.

 

É surpreendente constatar como foi possível apagar este riquíssimo legado da História do Homem durante quase dois mil anos. Sim, foi exatamente isso que aconteceu. De um momento para o outro, a recém criada Igreja Católica queimou livros e bibliotecas, apedrejou e queimou sábios e cientistas e mergulhou toda uma civilização nas mais profundas trevas culturais, período esse ao qual se convencionou chamar de “Idade Média”. Da noite para o dia, passou-se a acreditar que afinal era o Sol a “viajar” em torno de uma Terra plana. Mesmo depois do fim deste período, a retoma do caminho da cultura fez-se sempre muito devagar, muito lentamente. Ainda hoje, a sociedade contemporânea alicerça-se sobre o legado grego.

 

http://wallpapercave.com/wp/WD6lDpg.jpg

 

Ninguém sabe ao certo o que se perdeu. Ninguém pode afirmar com segurança com quantos séculos de atraso ficámos, o quão à frente estaríamos se tal não tivesse ocorrido. Mas, para mim, o importante é notar o facto. O que é importante é perceber que sim, que é possível mergulhar o povo na mais profunda ignorância de um dia para o outro, literalmente. Aconteceu no passado. Pode-se repetir no futuro. E quando nos apoiamos sobre os recursos tecnológicos de que hoje dispomos e no que mais temos à disposição para desprezarmos tal ameaça, estamo-nos apenas a enganar. Não dominamos nada de nada. Quanto muito, os sistemas de comunicação apenas concorrem para a lavagem cerebral coletiva. Bem entendido, hoje em dia é ainda mais sofisticado enganar o povo.

 

Se não se acreditarem, se acharem que é teoria da conspiração, olhem para a História. Lembrem-se dos gregos.

publicado às 21:19

Parentalidade contemporânea

Há uns tempos escrevi um artigo que deu muito que falar sobre a parentalidade contemporânea. As mães de hoje em dia são ridículas foi o ponto de encontro entre um desabafo suscitado pelas minhas vivências e uma reflexão filosófica que procurei fazer, como sempre, o mais seriamente possível.

 

Hoje, o assunto é de um certo modo revisitado a propósito da nova moda, cada vez mais assumida e descomplexada, dos hotéis e restaurantes de entrada vedada a crianças. O caso é retomado novamente num artigo do irmão ideológico online do Diabo escrito, o Observador.

 

É evidente que este género de restrição pela idade não é de forma alguma legalmente defensável apesar de, como o artigo refere, a situação se vir a alastrar na nossa sociedade. O que me interessa discutir não é isso. Cabe às autoridades competentes colocar um fim a cada um destes abusos.

 

O que é interessante é verificar que, respeitando ou não a lei, o problema está aí, a razão de ser desta discussão é real, é palpável, sentimo-la nos hotéis e nos restaurantes, ouvimo-la na rua e nos corredores das guloseimas e dos brinquedos dos supermercados: há uma nova geração de miúdos insuportavelmente mal educados e cujos pais não têm a mínima noção de como exercer a sua parentalidade.

 

É, por conseguinte, de natureza trivial constatar que a questão da interdição de crianças em hotéis e restaurantes nada mais é que uma forma dissimulada destes estabelecimentos enfrentarem o problema da má criação que grassa nesta nova geração de jovens. Não enfrentam o problema frontalmente, bem entendido, preferindo furar a lei a fazê-lo, por ventura pelo facto desta ser uma batalha social e coletiva que não se sentem preparados para travar.

 

A questão cultural assume aqui uma importância medular. O que impede um estabelecimento, se não as nossas próprias contingências culturais, de expulsar das suas instalações uma família cujos filhos não sabem ou não conseguem comportar-se de acordo com os padrões socialmente desejáveis? O resultado de não conseguir fazê-lo, associado ao facto de que estas famílias não sofrem qualquer penalização ou condicionamento social por persistirem nesta espécie de parentalidade incompetente — e, pelo contrário, muitas vezes até parece que são recompensadas por isso —, é este que vemos: uma sociedade cada vez mais a mais do que uma velocidade onde existem estabelecimentos onde todos podem ser incomodados por crianças mal educadas e outros onde apenas se pode ser incomodado por... adultos mal educados.

 

Enfrente-se o problema de frente. Faz falta uma maior — muito maior — disciplina nas escolas. Faz falta uma maior responsabilização dos pais pelas ações dos seus filhos. Faz falta substituir, num caso de agressão a um professor, por exemplo, as sempre convenientes desculpas para as ações dos jovens por penalizações sociais e criminais sérias para os pais. Faz falta isto e faz falta muito mais. Isto é apenas o começo do que faz falta e do que o Estado devia empenhar-se em implementar para começar a condicionar a boa educação das gerações futuras.

 

Ser-se pai ou mãe no século XXI deveria ser entendido como a responsabilidade das responsabilidades. É claro que as crianças serão sempre crianças e para uma criança, no meu entender, aplica-se a máxima do “quanto mais rebelde, melhor”. Mas não é disso que realmente falamos aqui. Há uma diferença entre a criança rebelde e a criança ditadora que manda nos pais. A primeira deve ser acarinhada e, o seu espírito curioso e rebelde, nutrido. A segunda deve ser — não tenhamos medo da palavra —, disciplinada.

publicado às 14:46

Cultura de mortos-vivos

http://hypebeast.com/image/2016/07/pawel-kuczynski-pokemon-go-0101.jpg

 

O Pokemon Go não é o problema, é meramente um pretexto. Não fosse o Pokemon Go e seria um outro jogo, o Facebook, o Twitter, o Messenger ou outra desculpa qualquer para a alienação, para a fuga da realidade. Parece que a população acedeu a um estádio do seu desenvolvimento que é uma espécie de depressão coletiva, permanente, com a valência de ejeção massiva dos homens da sua condição social, cultural e... humana. Os homens são cada vez menos homens: são mortos-vivos despojados de livre autodeterminação.

publicado às 08:42

O plural de pokemon é pokemon

A febre de Pokemon Go, que atinge momentaneamente o nosso país, é o sintoma da decadência cultural das sociedades. Decadência é a palavra mais acertada para descrever o fenómeno.

 

O jogo em si é uma palermice, mas não é apenas uma palermice, é uma palermice perigosa, um braço do sistema de vigilância em que nos metemos — cidadãos, sociedades e nações — voluntariamente, e que se vai tornando cada vez mais sofisticado. Desta vez, assume a forma de um jogo palerma. Através deste jogo, pode-se aceder às rotinas diárias dos jogadores, passo por passo, à conta de e-mail e sim, até ao interior das casas onde vivem, assim, inocentemente.

 

Sublinho aqui a palermice do jogo: quem já jogou algum jogo da saga percebe facilmente que este Pokemon Go tem muito pouco que ver com os seus parentes afastados da Nintendo. É tão somente uma simplificação pateta com condimentos para viciar as massas.

 

Que o mundo, e o nosso país em particular, está repleto de palermas, não constitui propriamente uma novidade de assinalar. Estes — os que andam para trás e para diante a palmilhar as ruas e os recantos do país com os olhos vidrados no telemóvel sem pestanejar — são os mesmos jovens da geração de “os políticos são todos iguais” e outras pérolas que tais, mas que votam sempre nos mesmos. Também são as audiências dos big brothers e das casas dos segredos. Reparem que não interessa que tenham ou não um curso superior: são todos iguais, unidos nesta mediocridade cultural sem precedentes, porque esta cultura reality-TV, que também não conhece precedentes, alimenta-os e cria-os. O Pokemon Go é simplesmente a última face desta miséria cultural a que chegámos.

 

Mas se se impõe que se fale e que se escreva sobre o fenómeno, pelo menos que se tenha a derradeira decência de se falar e de se escrever com correção. O plural de pokemon não é pokemons, é pokemon. Não se acrescente à palermice incorreção linguística. Pelo menos isso, se não outra coisa qualquer, pode ser que ajude a disfarçar a decadência cultural em que nos metemos.

publicado às 19:50

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