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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Alguma coisa não estará certa

Não era mesmo Israel o país com virtualmente 100% dos seus habitantes vacinados? E cujos cidadãos já podiam andar sem máscara? E que volta agora atrás porque as coisas não estão a correr bem?

 

Não sei, mas parece que há qualquer coisa aqui sobre as vacinas e os seus reais efeitos que não está bem explicada. Serão as estirpes? De um modo ou de outro, a este ritmo de desenvolvimento (deste super vírus!), serão necessárias tomas de vacina a cada três meses... ou menos.

 

É um caso para refletir, sem dúvida, mais a mais quando ouvimos o nosso “general” das vacinas a falar em atingirmos a imunidade de grupo no final do verão. Prestadas as devidas continências, alguém que lhe diga que Israel tem 100% da população vacinada e está a ficar outra vez com problemas.

publicado às 10:05

Confiemos nas vacinas. Não temos alternativa.

É bom que o processo de vacinação esteja a correr tão bem quanto se apregoa por aí e, já agora, que a eficácia das vacinas seja tão boa quanto anunciado pela propaganda. É que, depois do que se passou com os ingleses no Porto, nem com o exército se vai parar mais o povo de retomar a sua vida normal. O governo perdeu todas as réstias de autoridade que ainda detinha sobre este assunto.

publicado às 13:31

Pergunto-me...

Com tanto óbito derivado da pandemia, direta ou indiretamente, com as agências funerárias sem mãos a medir, continuamente, há tantos meses, pergunto-me se há intenção de reduzir a idade da reforma devido às consequências evidentes sobre a esperança média de vida?

 

Não, claro que não. A pergunta era retórica. A idade da reforma continuará a aumentar paulatinamente, independentemente de vivermos mais ou menos anos, até que a sua existência seja uma mera conceção teórica na vida de quem trabalha, uma abstração que nunca se efetivará. Cada vez mais, a segurança social assume-se como uma agência de proteção da atividade económica pelo lado do patronato e não pelo lado de quem trabalha e efetivamente para ela desconta.

 

Serve a questão apenas para mostrar como a argumentação da esperança média de vida para diminuir reformas e aumentar as idades de acesso é frouxa e só funciona para um dos lados. Luta de classes precisa-se. Urgentemente.

publicado às 14:41

Dúvidas metódicas

Como é que se testam os efeitos em seres humanos de uma vacina preparada em menos de um ano? Como se preveem as consequências para a saúde a médio e longo prazo?

 

Fala-se em genericamente em “avanços da ciência”. Que avanços são esses? Ratinhos? Moscas da fruta? Simulação computacional?

 

Como é que se pode crer nas autoridades dedicadas aos diversos planos de vacinação quando os seus representantes, genericamente, nenhuma qualificação médica ou científica têm? São gestores, economistas, políticos profissionais, etc...

publicado às 09:26

Desconfiemos das panaceias

Uma vacina demora normalmente anos a ser desenvolvida e outros tantos a ser devidamente certificada tendo eficácias moderadas-altas. As vacinas da gripe, por exemplo, têm uma eficácia a rondar os 67%. Leu bem: 67%. As vacinas para a covid-19 foram desenvolvidas e certificadas em menos de um ano e anunciam taxas de eficácia acima dos 90%. Preparam-se vacinações massivas a toda a população. António Damásio, a referência mundial na área da neurologia, alerta esta semana para os perigos da “velocidade” na criação da vacina. O povo, enquanto cobaia dos interesses da burguesia, revelará na sua própria pele, a seu tempo, os efeitos reais do que está a ser cozinhado no mundo com esta pandemia.

publicado às 15:22

Um bocadinho de bom senso

Não é preciso ser muito inteligente. Não é preciso ter um ou dois doutoramentos, nem especialização, nem obra publicada na área em revistas com arbitragem científica. Não. O que é preciso é um bocadinho de bom senso.

 

Quais são os fatores diferenciadores entre o que se passou em março, quando a pandemia começou, e o que se está a passar agora, em novembro? Há dois fatores. Um deles é o facto de estarmos mais relaxados ou cansados de viver sob máscara e restrições à nossa liberdade. O outro é que a atividade escolar retomou com normalidade.

 

Podem argumentar com todos os números e mais algum, podem fabricar as estatísticas que quiserem e elaborar as interpretações mais audazes: a retoma da escola é o verdadeiro fator que distingue as situações. Os jovens são naturalmente menos responsáveis, não abdicam do contacto social, contagiam-se e têm o potencial de contagiar as suas famílias com as quais partilham um teto e que, como é óbvio, não tomam precauções contra eles.

 

Não se faz nada a respeito disto precisamente pelas mesmas razões que não se faz nada a respeito dos transportes públicos que, obviamente, atolados, sem condições, são um fator de risco permanente e gravíssimo para o povo trabalhador. Em face disto, todas as medidas anunciadas são puro espetáculo mediático.

publicado às 16:03

O vírus, memórias e premonições

À data de hoje, passam-se sensivelmente sete meses desde o primeiro caso registado do vírus no nosso país e dez meses desde os primeiros anúncios vindos da província de Wuhan na China. Já passámos pela primeira vaga, fomos forçados a um confinamento que, em muitos casos, foi o princípio de um período que ainda persiste de drástica redução de rendimentos, de grave depressão económica de consequências dramáticas e, tal como anunciado, e desta vez as previsões foram corretas, justiça lhes seja feita, a segunda vaga do vírus aí está, plenamente instalada, com um crescimento sustentado em número de infeções, internamentos e mortes.

 

É assustador perceber que zonas anteriormente muito afetadas voltam agora a ser martirizadas pelo vírus o que nos faz duvidar seriamente da existência de imunidade relevante. Do mesmo modo, os efeitos neurológicos associados ao vírus, tais como a perda do olfato ou do paladar, apontam para uma sofisticação muito para além de um mero vírus de gripe.

 

Mas mais do que alimentar teorias de conspiração — porque para nós, meros mortais, nunca serão mais que teorias de conspiração —, importa analisar o que nós, enquanto comunidade altamente organizada e burocratizada que somos, fizemos em dez meses para lidar com o famigerado vírus. O que fizemos? O que estamos a fazer?

 

Se em março deste ano a única coisa que fizemos foi realocar recursos, retirando-os das necessidades ordinárias do país e colocando-os ao serviço da pandemia, o que foi que fizemos, agora, para fazer face à segunda vaga do vírus? A resposta é simples: mais do mesmo, ou seja, nada!

 

Reparem que é justamente neste momento que devemos fazer esta análise. Em plena discussão de um plano de resiliência — parabéns ao governo pela imaginação que tem para inventar nomes! — que é justificação para os maiores gastos em obras públicas mais ou menos megalómanas, muitas delas redundantes, isto é, prendas de Natal antecipadas à burguesia ligada à construção civil; depois dos milhões da nacionalização da TAP e das indemnizações chorudas aos seus anteriores donos que afundaram a companhia; depois de mais uma injeção colossal no Novo Banco para que a sua extraordinária administração venda o património do banco ao desbarato e distribua chorudos dividendos pelos seus acionistas ao mesmo tempo que enterra a instituição; depois de tantos milhões, o serviço nacional de saúde foi reforçado com umas migalhas e permanece a rebentar pelas costuras, perfeitamente incapaz de dar uma resposta eficaz à pandemia e de retomar a sua atividade regular. Neste particular, os dados são inequívocos: o número de mortes no país tem disparado em comparação com anos anteriores, não diretamente devido ao efeito do vírus, mas devido à negligência a que têm sido votados os utentes com outras doenças que veem as suas consultas canceladas, os seus pedidos de atendimento negados e as suas cirurgias adiadas e canceladas.

 

A esta segunda vaga de covid-19 acresce a entrada eminente no período sazonal de gripe no nosso país, período no qual, sabemo-lo bem porque temos memória, os doentes amontoam-se nas salas de espera das urgências e os hospitais e centros de saúde, em regra, não conseguem dar resposta às solicitações da população mesmo sem a presença do vírus. O que irá o governo fazer? Já adivinharam? Nada. Milhões para a burguesia, migalhas (e corte de rendimentos) para o povo. Ainda dizem que este governo é de esquerda. E por falar em esquerda, onde é que ela anda? A negociar as migalhas? A negociar com este governo? Ainda? São tempos negros, estes. Que ninguém fique surpreendido com os resultados das eleições que se avizinham.

publicado às 11:15

Um olhar no dia do trabalhador

No momento em que o governo colhe louros e recebe congratulações vindas das mais variadas fontes com respeito à sua atuação face à epidemia, importa separar o trigo do joio, isto é, perceber o que é mérito das instituições e o que é fruto da aleatoriedade fenomenológica.

 

A primeira pergunta a fazer é: foi a atuação do governo português muito diferente da do governo italiano, por exemplo? Segundo o que consta, não, particularmente relativamente aos timings dos encerramentos de aeroportos e fronteiras, de estabelecimentos e dos confinamentos. Aliás, os confinamentos italianos foram muito mais rigorosos do que aqui tendo todo o país sido submetido a regime de quarentena. Por cá, apenas a cidade de Ovar foi submetida a esse regime.

 

Será que a diferença se deveu a uma maior preparação e capacidade de resposta dos nossos serviços de saúde? Não me parece. Não sendo eu um profundo conhecedor do sistema de saúde italiano, resulta evidente o quão mal preparados os nossos serviços estavam. O recente estudo publicado pela Ordem dos Médicos de Portugal aponta exatamente para uma conclusão que qualquer um já esperava: que o número de óbitos no nosso país, quando comparado com o período homólogo do ano passado, disparou muito mais devido à falta de cuidados para doenças comuns do que em razão direta ou indireta do surto de covid-19.

 

Sublinho a não necessidade de um estudo para termos consciência deste facto. Discordo ainda frontalmente de todas as pessoas que defendem o sistema dizendo que nunca seria possível fazer face à pandemia. Isso é a argumentação que importa defender pelo governo e pelo sistema para que responsabilidades sérias não sejam exigidas. A verdade, todos nós sabemos, é que o nosso sistema de saúde já vinha sendo definhado e operava nos mínimos dos mínimos e qualquer desafio extra que se visse obrigado a enfrentar poria em causa a assistência à população como o que veio a ocorrer.

 

Que estas palavras sirvam para refrescar a memória de quem as lê: na viragem de 2018 para 2019, o país enfrentou uma onda excecional de gripes que, na altura, colocou os hospitais portugueses de lés a lés a rebentar pelas costuras. Eram gripes comuns, não vinham da China ou de outro país qualquer. Já ninguém se lembra dos doentes amontoados nos corredores, nas salas repletas de macas com idosos e enfermos? Já ninguém se lembra das desculpas esfarrapadas de Marta Temido, a mesma ministra da saúde, e das promessas de contratação de pessoal jamais concretizadas? Parece que não. Somos gente de parca memória.

 

Mais de três mil milhões de euros foi o valor que o grupo que detém a maior fatia da saúde privada do país fez esta semana com a venda de uma parte da Brisa a poderes estrangeiros. Seguramente que esse valor será colocado ao serviço do povo português. Seguramente. Não percamos a fé.

 

Se há coisa que esta pandemia mostra é o quão insuficiente é o nosso serviço nacional de saúde e, por seu turno, o quão inconsistente é o serviço privado, perfeitamente incapaz de se assumir como a alternativa que sempre apregoa ser e preferindo, como aliás faz parte da sua natureza, a procura desenfreada pelo lucro mesmo no momento mais difícil e delicado da vida dos portugueses.

 

Neste momento, todas as promessas são vãs e oportunistas, mas no dia de depois de amanhã estaremos cá para ouvir se as prioridades do país serão os seus serviços ou se, passada a epidemia como esperamos, esquecidos todos os medos, vamo-nos limitar a uma distribuição de méritos e de condolências, de palavras bonitas, de memoriais carregados de sentimento e prosseguir o caminho de liberalização da sociedade e de destruição do estado e dos seus serviços.

 

Não, o nosso governo não merece todo o crédito que tem recebido: tomou e continua a tomar as mesmas decisões erráticas e tardias que o resto da Europa; abandonou os seus doentes e necessitados para concentrar todos os seus poucos recursos no combate ao covid-19; procedeu a gastos e investimentos desorganizados e apressados — ainda esperamos e desesperamos por ventiladores com instruções em chinês —; desorganizou o país colocando sobre os ombros do povo trabalhador o ónus da pandemia, mais de metade perdeu o emprego ou está em regime de lay-off; e pôs a segurança social a suportar os lucros das grandes empresas com consequências das quais apenas teremos conhecimento quando tudo isto já estiver esquecido e quando se começar a falar novamente em fundos de pensões, em diminuição de reformas e obrigação de trabalhar até mais tarde. Ainda esta semana vimos como a Bosch, a poderosa multinacional alemã apressou-se a colocar os seus trabalhadores em regime de lay-off sem qualquer tipo de justificação ou de necessidade que não a de manter intactos os seus proveitos à conta de todos nós.

 

Não, o nosso governo tem-se limitado a jogar o jogo dos interesses e tem tido sorte. Afinal, sermos um pequeno país tem algumas vantagens no que ao controlo de calamidades diz respeito. Isso e, claro, o facto de que o vírus, vá-se lá saber porquê, não gostar muito dos nossos ares. Sorte a nossa.

 

Sorte a nossa.

publicado às 11:21

Nas sombras da pandemia

Deixem-me dizer-vos o que aí vem, o que já vai em preparação adiantada nas sombras da pandemia. Deixem que deixe isto aqui escrito, registado para memória futura e correndo o risco de se revelar, mais tarde, depois do desfecho da coisa, estar completamente a leste do paraíso.

 

O que é interessante no capitalismo, esta organização da vida que escolhemos, é precisamente esta sua natureza cíclica mas, simultaneamente, impossível de prever exatamente, impossível de responder ao quando? e ao como? E, em verdade, sabíamos perfeitamente que à crise ou às crises — talvez assim sejamos mais precisos — de 2011 seguir-se-iam outra ou outras. Disso não sobrava qualquer dúvida. Todavia, dando de barato a nossa impotência preditiva para responder à primeira questão, relativamente à segunda era mais expectável que as crises surgissem do rebentar da bolha imobiliária, que vinha enchendo assustadoramente transversalmente no mundo ocidental, associada, no nosso país, à outra bolha que, por aqui, persistia num crescimento que parecia não ter sustentabilidade: o turismo. Pois o que pouca gente esperava era que a próxima crise tivesse origem num mero vírus da gripe.

 

E aí está, os estados, em geral, vão replicando no momento atual as respostas dadas por eles próprios em 2011. Claro que há diferenças, há um estilo, uma linguagem, idiossincrasias e um contexto próprios, mas a substância das medidas é inegavelmente a mesma: injeções de capital nas empresas quer através de linhas de crédito, quer através da torneira da segurança social, sempre abundante para acudir a burguesia. Esqueçam os juros: isto é dinheiro do qual o estado não voltará a ver a cor.

 

A isto acresce a situação de estado de emergência, a verdadeira novidade na atuação do governo, que é como que uma carta branca para o despedimento, para o abuso, para a falcatrua laboral, para a ausência de responsabilidade social no que concerne o trabalho, um verdadeiro regime de exceção à lei e à democracia.

 

Em simultâneo, à promoção de um clima de consumo exacerbado, de histeria mediática impulsionadora desse mesmo consumo, juntou-se uma permissividade grosseira na agiotagem, no inflacionamento dos preços da generalidade dos bens. Todos os institutos, agências e organismos de supervisão criados para o efeito revelam descaradamente o seu papel decorativo no contexto do sistema.

 

Não tenham, todavia, pena do estado. Quando isto começar a dar para o torto, que é como quem diz quando se começar a fazer o rescaldo da pandemia, quando tudo voltar a uma certa normalidade no que ao funcionamento da sociedade diz respeito, então aí o plano será outro. Aí, os holofotes mediáticos concentrar-se-ão nas imparidades, nos buracos orçamentais, nos desequilíbrios das contas públicas e das balanças comerciais e, então, bem convencidos da necessidade dos nossos sacrifícios para a salvação do país, assistiremos a uma nova versão do brutal aumento de impostos de Gaspar, Passos e Portas, a uma sempre renovada necessidade de flexibilizar a economia e o trabalho para gerar mais competitividade e emprego e o resto. Todos nós conhecemos esta ladainha do costume de princípio a fim.

 

Quando erguermos novamente a cabeça veremos um país destroçado em emprego, em custo de vida, em poder de compra; veremos um povo com as suas poupanças delapidadas, com os seus direitos novamente reduzidos, com as suas reformas de novo adiadas e minguadas, com as suas perspetivas novamente revistas. Vamos ver os serviços públicos, em particular a saúde, ainda mais mirrados e isto passar-se-á mesmo após a pandemia nos ter mostrado o quão determinantes e importantes estes são. O povo assistirá a tudo isto, só não sentirá o cheiro daqueles milhões de euros de superavit anunciados no último orçamento de estado. Esse refinado odor terá sido já, por essa altura, exclusivamente aspirado pelas ávidas narinas da burguesia do país.

publicado às 16:04

Um adeus a Bernie, um adeus à esperança

Estas semanas de confinamento tiveram em mim, como os meus leitores já devem ter notado, um efeito de distanciamento social no verdadeiro sentido da palavra. Distanciei-me da sociedade, dos seus ecos, das suas ilógicas, das notícias, dos jornais, da repetição, do condicionamento.

 

Por um lado, confesso não ter tolerância para este fluxo contínuo e ininterrupto de notícias sobre o covid-19, para este jorro demente de informação sem critério, sem contexto e sem juízo, para esta prova acabada de como a sociedade se converteu num rebanho de doutores tosquiados ao som dos clamores de um pastor histérico.

 

Por outro lado, também não disponho da energia para andar a rebater e a contrariar este movimento universal. Afinal, quem sou eu — no contexto das limitações que também me afligem — para o fazer? Não disponho — nem posso dispor — de provas ou de cabais demonstrações e da autoridade moral que elas conferem para encetar tal demanda. Do que disponho é deste senso comum que persiste em não me abandonar e que vive, por este dias, ofendido, agredido a cada instante, a cada mirada fugidia no jornal, a cada descuido do ouvido com a mudança do canal. E, claro, disponho também da memória do passado que não me permite aquele brilhozinho no olhar, que apenas quem observa as coisas pela primeira vez pode ter, e a mundividência, o ter mundo, o conhecer muitos lugares mais ou menos longínquos e ter sempre presente que não vivemos isolados numa ilha, que o que nos acontece não nos confere uma qualquer qualidade especial.

 

Este texto não serve, pois, para falar do covid-19 nem para beliscar sequer esta loucura à qual estamos todos forçadamente confinados. Deixarei o tempo passar e, no final, se assim o entendermos, poderemos olhar para trás e fazer as nossas avaliações ao que foi feito, ao que nos sujeitaram e, coletivamente, à diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada. Essa avaliação, todavia, nunca é feita. Sei-o bem. Repare-se, a título exemplificativo, como as autoridades de saúde portuguesas diziam no início do mês passado, coadjuvadas pela generalidade da comunidade médica, que o uso de máscaras era absolutamente ineficaz e contraproducente e, agora, essas mesmas pessoas defendem o seu uso generalizado. Não vejo ninguém propriamente indignado com isto. O rebanho vive a histeria do momento e não consegue parar para refletir sobre o que o aflige. São os tempos modernos... são os tempos modernos.

 

Queria escrever, hoje, sobre Bernie Sanders, o quase octogenário que tentava, uma vez mais, ser o candidato presidencial democrata contra Donald Trump em terras do tio Sam.

 

Tive conhecimento das primeiras vitórias auspiciosas de Bernie sobre a sua concorrência, mas depois, a infeção mediática do covid-19 fez com que deixasse de acompanhar a corrida. Em boa verdade, não é que esta encenação democrática tão enraizada no folclore dos Estados Unidos da América me suscitasse um qualquer particular interesse. Não sei, até, se já o escrevi aqui, mas nunca vi em Bernie uma alternativa verdadeira para a América e para os americanos começarem a transformar o seu modo de vida. Acho improvável que alguém que fez toda a sua carreira no establishment, dentro do sistema, possa vir a contribuir para a sua reforma ainda que, na minha opinião, a reforma do sistema capitalista seja atividade perfeitamente infecunda. Para mim, sempre se afigurou muito mais provável que Bernie estivesse a usar essa retórica dita “socialista” como um pretexto para almejar um poder que nunca teve. Todavia, é certo que Bernie se apresentava com uma linguagem rejuvenescedora pela sua assertividade, transportava uma mensagem sem mas e sem ses, abrangente e unificadora de diversos quadrantes e isso parecia constituir um upgrade relativamente à oratória oca e dissimulada de Obama que cavalgou a onda das aspirações da população afro-americana e resultou em coisa nenhuma. Bernie era isso, era uma esperança reforçada em algo que pudesse ser novo ou diferente, que pudesse constituir um passo em frente civilizacional num grande país que persiste em viver de forma tão atrasada, parado ainda antes do início do século XX, organizado de forma tão pouco solidária, sob regras tão pouco humanas, tão primárias. Bernie era só uma esperança e nada mais que uma esperança.

 

Foi, por isso, com grande surpresa e desolação que tomei conhecimento hoje da desistência de Bernie Sanders da corrida à nomeação, deixando Joe Biden sozinho. Não se trata de que Biden, como versão masculina de Hillary Clinton, íntimo dos mais perversos interesses económicos americanos, não terá qualquer hipótese de derrotar Trump. Mesmo que tal, por milagre, acontecesse, e ao contrário do que a maioria infundadamente pensa, isso não traria nenhuma vantagem aos americanos nem ao mundo. A questão é outra.

 

A questão é que, se nem agora, depois de uma década de americanos a amontoarem-se nas valetas das ruas e das estradas e nos parques e debaixo das pontes com as suas tendas, com as suas roulottes, despedidos dos seus trabalhos, despejados das suas casas, e que não vêm qualquer futuro para si e para os seus filhos, sequelas palpáveis da última crise do capitalismo, se nem agora, morrendo mais e mais sem qualquer assistência médica — chegam informações que o número de mortes por pneumonia nos EUA já vinha aumentando exponencialmente desde o ano passado ainda antes do covid-19, para não referir as crescentes mortes de diabéticos e de outros doentes crónicos sem acesso a medicação — se nem depois de tudo isto, e de tudo o resto que podia ser aqui também elencado, os americanos votam numa esperança de mudança, seja ela chamada de Bernie Sanders ou não, então é difícil acreditar se algum dia o farão. A tristeza da coisa é esta.

 

Esta desistência de Bernie é, pois, mais que um adeus ao senador que, com certeza, não deve aventurar-se mais nestas coisas: é, sobretudo, um adeus à esperança. O país bastião do capitalismo no mundo que atualmente vê a sua influência a escapar-se acelerada e irremediavelmente como areia por entre os seus dedos, é, fundamentalmente, um país condenado a um futuro de decadência porque, nele, dentro das suas fronteiras morais e filosóficas, não subsiste um singelo vestígio de esperança.

 

Nota final para o site onde li sobre a notícia da desistência de Sanders. Diz aqui, no Diário de Notícias da Madeira, e passo a citar, que “Bernie Sanders, 78 anos, senador pelo estado de Vermont, tinha começado as primárias do Partido Democrata com três importantes vitórias, apesar das suas ideias radicais de esquerda, sobretudo nas áreas da economia e da saúde.” Reparem bem: para um jornal português as ideias de Sanders, como por exemplo criar um sistema nacional de saúde para os americanos, são “ideias radicais de esquerda”. É elucidativo do panorama que temos.

publicado às 11:34

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