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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

João Ferreira, o único

Fiquei feliz, ontem. Acho que, como eu, uma parte dos eleitores de esquerda estava a desesperar por um momento assim: um político comunista a vencer um debate de ideias, assim, claro, preto no branco, sem ponta de contestação, face a um não comunista, particularmente um despudoradamente vestindo a camisola liberal.

 

João Ferreira nunca desilude verdadeiramente. Está sempre bem preparado, domina os vários temas, é ideologicamente muito sólido, é um excelente orador e ainda, como bónus, consegue sempre manter a sobriedade e a calma. Até ao momento, tem estado muito bem nos debates em que tem participado.

 

O debate contra André Ventura foi o que lhe correu pior, mas só com muita boa vontade é que podemos chamar àquilo que se passou um debate. André Ventura é alguém com uma capacidade invulgar em disparar mentiras, algumas bastante óbvias, e meias verdades e, a partir de determinado momento, limitou-se a berrar repetições de Coreia do Norte e Venezuela, desrespeitando as intervenções de João Ferreira e boicotando o debate até ao fim em perfeita consonância com a medíocre moderação da TVI. O pior momento de João Ferreira, na minha perspetiva, foi ter feito de advogado do governo na questão indefensável da nomeação do procurador europeu.

 

Ao contrário dos demais candidatos, João Ferreira é o único, Presidente Marcelo incluído, que parece conhecer o texto da Constituição da República, citando-a quase artigo a artigo. Isto diz muito sobre a competência das pessoas que estão a concorrer para um cargo onde, supostamente, a função principal é zelar pelo cumprimento da Constituição da República.

 

Voltando ao princípio do texto, é verdade que, contra um candidato como o que a Iniciativa Liberal apresenta, não era muito difícil brilhar. Tiago Mayan Gonçalves, de seu nome, apresenta-se com um conjunto de ideias tão frágeis, tão abundantemente refutadas pela realidade das sociedades capitalistas mundo fora que é muito difícil até que sejam articuladas num discurso minimamente inteligível sem o recurso aos chavões anticomunistas do costume. Nem isso, todavia, esse candidato conseguiu produzir, engasgando-se e enganando-se até (!) na Coreia com a qual queria atingir o candidato comunista. Não era a Coreia do Sul, Tiago, era a do Norte! Neste particular, acho impressionante a quantidade de gente das universidades que apoia isto, que alimenta este tipo de ideias. É revelador sobre a qualidade intelectual que tem tomado conta e preenchido o mundo académico no nosso país.

 

O debate contra Mayan foi, pois, amplamente dominado de princípio a fim por João Ferreira, traduzindo-se por uma vitória ideológica em toda a linha. Na verdade, é assim que devia de ser. Quem viu o debate teve a oportunidade de ver alguém que sabe do que fala, que argumenta logicamente, que explica o que se passou e faz propostas inteligíveis para resolver os problemas, alguém moderado e que faz sentido para além dos nossos gostos pessoais. Do outro lado, viu-se um conjunto de preconceitos económicos e ideológicos, de conceções utópicas e de apelos ao egoísmo, ao individualismo e ao bolso do povo, preconceitos que, verdadeiramente, nunca deram resultado em parte nenhuma do planeta, nem na América, o farol do capitalismo mundial, resultam. Preste atenção: o primeiro era o candidato comunista, o segundo era o liberal.

publicado às 14:31

Avante 2020

Gosto muito da Festa do Avante!. Gosto mesmo. Considero a Festa como o evento cultural e político mais significativo do panorama nacional. Já o escrevi aqui, não mudo de opinião. A Festa é uma realização que deve orgulhar todos os comunistas que, durante três dias, mostram ao mundo, pela prática, que uma outra sociedade é possível, que o sonho comanda a vida e que a chama da utopia tem que ser mantida bem viva para não deixarmos de caminhar no sentido do progresso e da fraternidade. Adoro viver aqueles três dias da Festa do Avante!.

 

A edição deste ano, um ano que continua fortemente marcado pela pandemia, tem estado envolta em polémica motivada por motivos óbvios relacionados com a saúde pública e alimentada por outros, também óbvios e permanentes, relacionados com a guerrilha política habitual de cariz anticomunista primário.

 

É de sublinhar que, este ano, a realização da Festa do Avante! tem tido mais cobertura e atenção mediáticas do que todas as outras quarenta e tal edições já realizadas desde 1976 e tal facto promete aprofundar-se ainda mais com a realização propriamente dita da Festa, antevendo-se uma minuciosa observação dos espaços da mesma em busca de possíveis más práticas no contexto da saúde pública.

 

Não obstante tudo o que foi escrito acima, a minha posição é de não concordância com a realização da Festa do Avante! neste ano de 2020. Não concordo por dois motivos fundamentais.

 

Primeiro, por uma razão de saúde pública. A Festa representa uma concentração de muitas pessoas, não interessa se são cem mil, trinta e três mil, se são mais ou se são menos. São muitas pessoas. É verdade que o espaço é amplo, e ainda foi mais aumentado este ano, mas o simples bom senso, para além de qualquer diretiva da Direção Geral de Saúde, devia inibir a promoção de uma festa com tanta gente, estando o país, particularmente, na antecâmara da segunda vaga do vírus, como já está a acontecer no resto da Europa.

 

Acresce, em segundo lugar, que o lema da Festa é a fraternidade, o convívio intergeracional, a conversa, o debate, a troca de experiências, a manifestação dos sentires e das emoções. Ainda que, por absurdo, fosse possível cumprir um religioso distanciamento social e todas as normas e mais algumas, em que é que resultaria a Festa do Avante!? Será que vale a pena a Festa ser realizada, assim, a qualquer custo, sem o poder partilhar de um abraço ou de um beijo, de sorrisos escondidos atrás de máscaras, despida dos seus mais íntimos valores, da sua razão de ser?

 

A impressão que transparece é que sim, que a Festa tem que ser realizada a qualquer custo e tal não será alheio ao facto da Festa se ter tornado, com o passar dos anos, no porquinho mealheiro do Partido Comunista Português e de essa valência, natural numa realização como esta, ter vindo a assumir preponderância no orçamento do partido, mais a mais com os fiascos eleitorais sucessivos e os buracos financeiros correspondentes.

 

Claro que se pode sempre argumentar com a incoerência que impera em todo o país, particularmente desde a retoma pós-confinamento, no que diz respeito ao combate à pandemia, desde as praias aos concertos, passando pelos transportes públicos. No fim de contas, porém, qualquer partido político deveria assumir a responsabilidade de fazer o mais correto e dar um exemplo de prudência aos seus militantes, simpatizantes e a todos os cidadãos em geral. Não se justifica um erro com outro. É tão básico quanto isto.

 

Pedia-se, pois, mais a um partido com a história e as responsabilidades do PCP. Mas o PCP não só decidiu enveredar por outro caminho como ainda decidiu fazer uma gestão da coisa absolutamente lamentável, mandando números aleatórios para o ar, omitindo informação e, sobretudo, contribuindo para a politização do assunto. Defender, por exemplo, que a realização da Festa é imperativa para a defesa dos trabalhadores é, no mínimo, pouco sério. Ao PCP exigia-se uma posição organizada, transparente, coordenada com a lei e com a DGS, sem arrogância no discurso, sem vitimizações, sem politização. O PCP fez tudo ao contrário.

 

Nota final para uma realidade que parece ter vindo para ficar mas que não deixa nunca de me causar espanto. Não obstante a frente de críticas esperadas à posição do PCP vinda da direita, é surpreendente observar certos comentadores de direita, de repente, a fazer a defesa do PCP. Já ouvi dois, daqueles mesmo à direita, a dizer que o PCP é muito responsável e desfazendo-se em outros elogios ao partido. Para mim isso é sempre mau sinal. Estarão eles incumbidos de tentar salvar a muleta de governação do PS? Ao que nós chegámos...

publicado às 20:49

Uma história de sobrevivência

Julio Anguita (1941-2020)

image: www.lavanguardia.com

 

Maio de 2020 fica marcado, na semana que agora termina, pelo desaparecimento físico de Julio Anguita, líder histórico do Partido Comunista Espanhol (PCE) e, mais tarde, da Esquerda Unida (Izquierda Unida - IU).

 

A história da vida e da morte de Anguita confunde-se, a traços largos, com a história do movimento comunista internacional: é uma história de luta e de sobrevivência desde a primeira aurora. Como Angeles Maestro nos conta, foi a história de alguém que lutou até ao limite das suas possibilidades contra as forças corruptivas que, quer externas, quer internas, minavam o movimento comunista espanhol, procurando, no pós queda do Muro de Berlim, a sua institucionalização, o seu afastamento das ruas e dos interesses do proletariado, o seu estabelecimento, enfim, como muleta da social-democracia espanhola ao serviço do poder burguês.

 

A derrota de Anguita neste processo de esvaziamento ideológico do PCE - IU, culminada no final de 1999 e que coincidiu com a sua substituição na liderança do movimento, veio a ditar o definhamento acelerado do comunismo espanhol o qual, desacreditado, incoerente, ideologicamente enfraquecido, foi perdendo a sua então relevante presença parlamentar, eleição após eleição, não obstante as tentativas de colagem ao PSOE, os ensaios de coligações e, mais recentemente, a junção ao Podemos — uma força política inconsistente, nascida do mediatismo das redes sociais —, com a criação do Unidos Podemos/Unidas Podemos, que hoje apoia o governo PSOE, liderado por essa personificação da hipocrisia e da dissimulação que é Pedro Sánchez.

 

Tal como Angeles Maestro escreve, as principais figuras oposicionistas a Anguita e promotoras da “renovação” no seio do PCE e da IU estão hoje — surpresa das surpresas! — bem colocados em lugares governativos, parlamentares ou institucionais sob a bandeira e tutela do PSOE. A “renovação” operada está bem à vista e não carece de legendagem. As sucessivas transformações do movimento comunista marxista espanhol — PCE, IU, Unidos Podemos, Unidas Podemos — conduziram ao desaparecimento do comunismo não apenas da sigla dos movimentos mas sobretudo das ideias políticas dos mesmos. É verdade que, hoje, a Unidas Podemos suporta parlamentarmente a solução governativa, mas... e depois? O que é que isso quer dizer? O que é que isso significa? O que é que este governo PSOE tem de progressista? Qual é o contributo da Unidas Podemos e, a existir, que palavra teve o Partido Comunista Espanhol, no seio da Izquierda Unida, nesse contributo? E, nessa palavra, subsistirá alguma sílaba de comunismo?

 

Se a intenção era apenas a obtenção de um vislumbre de poder pelo poder, então devemos felicitar as forças de “renovação” comunista. Conseguiram o que pretendiam. Conseguiram, finalmente, um suporte governativo para o PSOE poder mais facilmente dançar o tango da governação com o PP. Quando esse suporte desaparecer — porque, a continuar por este caminho, desaparecerá seguramente — terá sido desimpedido o caminho para a tão ambicionada bipolarização política espanhola à direita.

 

Face ao exposto, é impossível não traçar paralelismos com a situação portuguesa, não obstante as diferenças de contexto: o Partido Comunista Português (PCP), a Coligação Democrática Unitária (CDU), os movimentos de renovação externos e internos, o aparecimento do Bloco de Esquerda (BE), o suporte parlamentar do PCP/CDU e do BE ao governo burguês PS, o consequente definhamento generalizado e acelerada perda de influência eleitoral e social do comunismo marxista em Portugal.

 

Em boa verdade, não precisávamos do exemplo de Anguita para percebermos isto, que a sentença de morte do comunismo é assinada no momento exato em que os seus valores e princípios começam a ser moldados ao sistema, objeto de infindáveis compromissos com o poder burguês e de um permanente enquadramento nas instituições capitalistas, e quando se vai deixando ficar esquecida a palavra revolução ora na gaveta, ora em discursos incredíveis devido à prática incoerente dos partidos e dos seus dirigentes. Mas a vida de Julio Anguita aí está, bem presente após a sua morte, a reforçá-lo, não adianta o que digam agora que se foi, não adianta o que escrevam sobre a sua memória: será sempre como um fantasma pairando sobre todos aqueles que permanentemente nos pretendem convencer do contrário.

publicado às 10:19

Um partido por um fio

Há uma força dentro do PCP, prestes a atingir a maioridade, que está investida em empurrar os comunistas para fora do partido. Dentro do partido, o pensamento comunista está subordinado àquilo que parece ser um pensamento utilitarista de sobrevivência, o pensamento progressista rendido a uma interpretação dogmática da realidade. Não existe justificação teórica ou prática. Não há filosofia política. O que há é um conjunto de diretivas arbitrárias que os militantes devem seguir.

 

Para um comunista há uma questão interna e individual que começa a impor-se por muito que dela fujamos: porque é que voto no PCP? Em que é que o PCP me representa?

 

A atualidade apresenta-nos a aberração diária de vermos o PCP, partido de comunistas anti-capitalistas, a apoiar com todas as forças um governo minoritário burguês de um partido social-democrata.

 

Os representantes do PCP no parlamento e pelo resto do país são, em regra geral, figuras deprimentes. Leem todos — e mal — os mesmos textos escritos pela mesmíssima pena. Alguns, parece que assumem os cargos para aprender a ler. As suas prestações nos debates é paupérrima, capacidade argumentativa sofrível, bagagem intelectual medíocre. Há honrosas exceções como João Ferreira, claro que há, mas são oásis no seio do partido. A liderança do partido é causa de permanente embaraço e não satisfaz quem exige uma defesa intelectual consistente dos ideais comunistas.

 

Os proletários deste país não veem o PCP como a vanguarda da defesa dos seus direitos. Estão demasiado habituados a propostas redistributivas da riqueza, taxas e impostos que, de uma forma ou de outra, acabam sempre por ir ao seu bolso para benefício de quem não trabalha e não contribui. O PCP, aos olhos dos proletários, daqueles que efetivamente trabalham, que são explorados pelo seu trabalho e, muitos, empobrecem trabalhando, é o partido do funcionalismo público e de quem não quer trabalhar. Tragicamente para o PCP, o funcionalismo público e a massa de indigentes do nosso país não vota, em regra, no PCP.

 

Esta nuvem difusa de ideias só poderia ser combatida assumindo uma direção revolucionária, intelectualmente justificada, cientificamente defendida, superiormente argumentada. Mas o PCP há muito deixou este caminho, o caminho dos comunistas, e optou por um caminho de sujeição às regras e às estruturas do sistema, o caminho da social-democracia. Nenhum comunista percebe ou aceita isto. E ninguém consegue vislumbrar que vantagens para o partido justificam tal opção.

 

E depois, pelo meio, surgem questões como a eutanásia e, então, é a confusão instalada: será que PCP é a sigla de alguma seita religiosa ou de algum movimento pró-vida? A argumentação é a mesma. Será que andámos distraídos todo este tempo? Reparem como o posicionamento do partido relativamente à eutanásia é tomado de forma perfeitamente autista: autista relativamente à sua matriz ideológica, porque não existe qualquer justificação teórica para suportar a sua posição de contra; e autista relativamente aos seus militantes, pois nenhum processo de debate interno ou de auscultação das bases foi promovido sobre o tema. A decisão veio de cima e as bases devem seguir as orientações e defendê-las porque sim.

 

Dois argumentos continuam a suportar o voto no PCP: o peso do hábito e o facto de não existir alternativa marxista minimamente organizada no quadro político português. É pouco sobretudo para alguém que se dá ao respeito do ponto de vista ideológico e político. E vai sendo um pouco cada vez mais poucochinho a cada ano que passa e que vai consagrando o PCP como um partido não de comunistas lutando por um ideal mas de funcionários lutando para manter um posto de trabalho. Um posto de trabalho que se vai mantendo por um fio.

publicado às 10:14

Uma epifania em janeiro

O anúncio do sentido de voto do Partido Comunista Português relativamente ao orçamento de estado deste ano é uma desilusão e, como todas as desilusões, tem a potencialidade de se tornar numa espécie de epifania, uma revelação.

 

O parlamento português está agora dividido, PCP incluído, entre partidos sociais-democratas e partidos liberais, uns mais populistas do que outros. A palavra comunista no PCP passa a valer tanto como a palavra socialista no PS. Valem o mesmo, ou seja, nada.

 

Nenhum partido comunista apoiaria um orçamento deste género que literalmente rouba o povo para gerar lucros para entregar à banca e aos mercados monopolistas. O líder parlamentar do PCP diz que o partido vai-se abster, é certo, mas isso é verbalismo, é brincar com as palavras. Se fosse necessário, votaria a favor. Não existe retórica suficiente no mundo da dialética para nos convencerem do contrário.

 

O insólito da coisa, ao que consta, é que este apoio terá sido dado a troco de um aumentozinho extraordinário de pensões. Prossegue, portanto, a confirmar-se o boato, esta linha miserabilista, este contentamento, esta satisfação com as migalhas lançadas por Costa sejam elas quais forem. Prossegue esta falta de respeito pela sua ideologia, que é o mesmo que dizer por si próprio, porque só um partido sem um pingo de amor próprio persiste em estender a mão a quem reiteradamente o desrespeita e desvaloriza, como ficou bem patente antes, durante e após as últimas eleições legislativas, com o desenvolver da “geringonça” e com o fim da mesma.

 

Mas isto tudo é demais, tudo isto é demasiado para que o leitor não desconfie, de si para consigo, que tanta incapacidade, que tanto defeito não seja apenas uma mera causalidade de um espírito mais ou menos inocente ou mais ou menos incapaz. A verdade encontra-se no princípio deste texto. O meu erro está em continuar a assumir certas premissas sobre o PCP como verdadeiras quando elas, claramente, já o deixaram de o ser. Porque se o comunista cair da denominação do partido, então deixa de haver qualquer problema e passa a valer tudo como, de facto, vale para qualquer outro partido onde a ideologia é coisa incerta, é coisa do passado. Se considerarmos a palavra comunista como simples adereço de sigla, então qualquer decisão é tão válida como outra qualquer e cada opção poderá ser justificada com maior ou menor dificuldade.

 

Já não há desculpas que subsistam. A troika partiu do país há mais de quatro anos. O medo que a direita, a direita assumida, retome o poder nas suas mãos existirá sempre e é um medo imbecil, infecundo, porque estamos fadados, neste sistema político de alternância, a que, mais cedo ou mais tarde, isso aconteça. E, todavia, o governo PS prossegue uma política de incrível sobrecarga de impostos, de subjugação do país ao poder económico, de destruição dos serviços públicos, de condenação das gerações mais jovens de proletários a vidas de trabalho precário, sem direitos, sem perspetivas, sem futuro.

 

Como pode um partido comunista apoiar um governo destes? A resposta é simples: não pode.

publicado às 15:21

Uma questão de social-democracia

Gostava de discorrer um pouco sobre um ponto que considero que esta campanha eleitoral teve a virtude, mesmo que por mero acaso ou imponderável acidente, de iluminar. Refiro-me à questão ideológica dos partidos que compõem o espectro político nacional.

 

A questão veio ao de cima quando a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, afirmou em entrevista de pré-campanha, que o programa do seu partido, tido pela maioria inculta do povo português como um partido de extrema-esquerda, era, afinal, social-democrata.

 

Quem acompanha a minha escrita sabe bem que nada disto me surpreende, nem um pouco, indo exatamente de encontro ao que penso. As propostas do Bloco, independentemente da multiplicidade de tendências que possam coabitar no seu seio, são de cariz marcadamente social-democrata, de natureza meramente redistributiva, keynesianas até, se preferirmos. Dito de outro modo, trata-se de um partido do sistema que procura corrigir o sistema e não transformá-lo. E o sistema é o sistema capitalista burguês.

 

Durante esta semana, soubemos também do apoio de um reputado economista português, Ricardo Paes Mamede, à CDU. Nas redes sociais, o economista elencou as cinco razões porque votaria CDU, não obstante as diferenças ideológicas que mantinha com a coligação que integra PCP e Verdes. Ricardo Paes Mamede é daquelas escassas personalidades que vale a pena ouvir e ler no panorama nacional. Pessoa culta, ilustrada e estudiosa, fala e escreve de forma fundamentada e faz uso de uma argumentação lógica que é muito rara nos dias de hoje. A respeito do título deste texto, vem-me à memória uma monumental lição que Ricardo Paes Mamede deu, há umas semanas, ao triste e ínscio João Miguel Tavares acerca do conceito de social-democracia do qual este último fazia boçal uso.

 

Confesso que, quando tomei conhecimento do apoio de Ricardo Paes Mamede à CDU, desencadeou-se dentro de mim um sentimento de profunda alegria. Em primeiro lugar, pela personalidade em causa. Em segundo lugar, porque a ideologia comunista precisa exatamente de gente com qualidade intelectual, e particularmente da área económica, que a defenda não na base do chavão e das palavras de ordem, mas na base da argumentação racional.

 

Com o passar do tempo, todavia, a minha alegria esmoreceu-se, pelo menos em parte. Ricardo Paes Mamede não é um economista marxista, é social-democrata assumido e alguma coisa tem que estar seriamente errada quando sociais-democratas apoiam comunistas. É que os sociais-democratas têm em vista a correção dos defeitos do sistema capitalista através de apoios, subsídios e intervenções estatais. Os comunistas lutam pela transformação do sistema, pelo derrube do capitalismo, pela criação de uma sociedade nova e diferente, com diferentes alicerces filosóficos. Os sociais-democratas atuam a jusante; os comunistas agem a montante. A interseção é vazia, não há ponto de encontro, não há compromisso possível. A menos que algo esteja muito distorcido.

 

Então, dei por mim a refletir que o problema será do nosso panorama político que está tão empurrado para a direita que os sociais-democratas foram deixando cair a máscara de tempos ideologicamente mais quentes e assumiram-se como descarados liberais, enquanto que os partidos de esquerda foram circunscrevendo a sua veia revolucionária aos seus inflamados discursos, deixando para as suas práticas apenas umas envergonhadas medidas sociais-democratas.

 

É por isso que eu considero um pouco triste e bastante surreal ver os mais destacados líderes do PCP, o Partido Comunista Português, vangloriarem-se nas redes sociais com o apoio de Ricardo Paes Mamede. Eles não entendem, não conseguem ver que o apoio de um social-democrata ao seu partido acaba por ser um atestado passado a uma doença ideológica grave que afeta o seu país e o seu partido. Para um comunista, o apoio de Ricardo Paes Mamede não deve ser motivo de particular orgulho, mais do que aquele que advém de um qualquer anónimo.

 

Por ventura, a culpa será minha. Será erro meu acreditar ainda que o PCP mantém intacta a sua espinha dorsal revolucionária e transformadora da sociedade. Mas essa é, afinal, a única razão pela qual voto e votarei CDU nas próximas eleições. Ao contrário de Ricardo Paes Mamede, não preciso de cinco razões para votar CDU, não preciso de fazer um rol, não preciso de as elencar, apenas preciso de uma razão: acreditar na transformação da sociedade, numa sociedade de paz, fraternidade e cultura, livre do capitalismo ou qualquer uma das suas versões de exploração dos homens.

 

A minha razão é acreditar que a CDU representa este meu sonho, mesmo que na CDU o sonho possa servir apenas para animar festas e discursos e seja convenientemente esquecido no pragmatismo inexorável e desprezível das opções que se tomam sobre a inércia dos dias.

publicado às 18:12

A História do pensamento único

Era já domingo há algumas horas. Uma luz trémula amarelava o espaço. Procurava escapar, ainda, ao final do dia anterior e ia, assim, dando clicks aleatórios no ecrã, em busca de não sei bem o quê. O país entrou já no seu período sazonal merecido de estupidificação. Este ano não há campeonato do mundo ou europeu, mas o futebol inunda o espaço mediático. Como sempre. Discute-se o nada, horas a fio.

 

No DN vim a descobrir uma entrevista de Ernest Oberländer Târnoveanu, diretor do Museu Nacional de História da Roménia. A propósito da sua visita ao nosso país para inaugurar uma exposição sobre os principados romenos, patente no Mosteiro da Batalha, Târnoveanu falou ao DN sobre alguns aspetos gerais da história do seu país. O título da entrevista era, desde logo, prometedor: A independência romena não foi um presente dado pelos russos.

 

O que despertou o meu interesse àquela hora avançada era precisamente saber mais sobre esta animosidade, sobre este ódio, que parece visceral, que os romenos nutrem pelos russos. Não é sentimento que seja exclusivo dos romenos, diga-se. Ao longo das minhas viagens, encontrei semelhante animosidade em países como República Checa, Eslováquia, Hungria, Bulgária, Polónia e, também, nos três irmãos do Báltico, Estónia, Letónia e Lituânia.

 

A entrevista tem algumas partes com interesse como não poderia deixar de ser. A história da Roménia está intimamente ligada ao império romano, à sua cisão e, particularmente, à sua metade oriental resultante, o império Bizantino de Constantinopla, mais tarde chamado Otomano aquando da conquista pelos turcos. Como naturais guardiões do Danúbio, avenida que liga as extremidades da Europa, os principados que deram origem à Roménia contemporânea assumiram desde sempre uma relevante importância estratégica comercial e, daí, a história daquele lugar sobre a barriga da Europa é repleta de desventuras e acontecimentos fascinantes.

 

Não desiludindo as minhas expetativas, Târnoveanu é lesto a incluir os russos na conversa. Os russos são pintados como uma espécie de inimigos mortais, as suas ações são revestidas de duplicidade e de infâmia, ao passo que os romenos, investidos de uma certa incapacidade ou inocência, vão sendo permanentemente enganados e roubados. Este quadro atinge o seu apogeu com o comunismo e a era de domínio soviética. Nas palavras de Târnoveanu: “Foi uma pilhagem em larga escala, maior ainda que as pilhagens turcas e mongóis juntas”. Atente-se bem na hiperbolização utilizada, pois ela é marcante no que concerne ao revestimento ideológico da narrativa.

 

Não deixa de ser surpreendente que um país, ou conjunto de principados, permanente sob domínio ou influência de estrangeiros, permanentemente cobiçado e invadido, seja por turcos otomanos, seja por austro-húngaros ou polacos, eleja os russos como alvo, mais que primordial, das suas antipatias e dos seus ódios.

 

Tomo a liberdade de adivinhar o pensamento que assalta agora mesmo o meu caro leitor neste ponto da sua leitura: este Amato, por ser comunista, não consegue ver o quanto o comunismo suprimiu aqueles povos de leste. Adivinhei? Deixem-me assegurar-vos, pois, que a minha posição neste texto não se inspira na ideologia e de ideológica apenas se apossa da lógica para construir pensamento sobre o assunto.

 

Quando me dedico ao estudo e reflexão das páginas da História só uma coisa tem o condão de me arrepiar o ser. Essa coisa é o pensamento único, os factos indiscutíveis e insofismáveis, as verdades evidentes. O tema em questão é um bom exemplo disto mesmo: na Roménia, assim como noutros países, é difícil encontrar uma pessoa capaz de tecer um elogio que seja ao regime pró-soviético que vigorou no seu país. É quase como se houvesse um pacto silencioso entre todos, uma história combinada de antemão. Acreditem que eu dou de barato que em muitos desses regimes foi feita muita coisa desprezível e repugnante, mas é difícil de acreditar que apenas tenha sido feito isso e que nada de positivo resulte quando se olha sobre o ombro para esses tempos. Em seguida, deixo alguns pontos que me fazem duvidar da verdade destes discursos. Centrar-me-ei no exemplo romeno, embora os argumentos possam ser igualmente aplicados noutros contextos.

 

Em primeiro lugar falemos do passado, isto é, do passado anterior ao regime comunista pró-soviético na Roménia. Como já foi dito, a região a que hoje se chama Roménia foi consecutivamente dominada politicamente por poderes estrangeiros. Desses sucessivos domínios resultou uma terra ocupada por uma espécie de camponeses nómadas, que se refugiavam nos bosques, nas montanhas e nos vales dos rios, sempre em movimento, sem nunca se fixarem. Em meados do século XX, a Roménia era pouco mais que um país retirado da idade das trevas, de um cristianismo ortodoxo extremamente conservador, uma sociedade em tudo medieval, pouco evoluída tecnologicamente, pouco civilizada e parada no tempo.

 

É curioso perceber o olhar algo terno que os romenos contemporâneos dedicam a esses tempos e a admiração que especialmente dedicam aos ocidentais que sempre os dominaram. Não se pronunciam grandes críticas, não se apontam dedos. É uma história que é aceite na sua plenitude porque formou o caráter e a identidade comuns a todos os povos romenos.

 

Já é revelador, todavia, perceber que os romenos raramente se referem aos alemães e, particularmente, a Hitler e ao nazismo. Nesta entrevista que dá o mote a esta reflexão, Târnoveanu não os refere uma única vez. Por que é que eu adjetivo o facto de revelador? A Alemanha nazi, na antecâmara para a Segunda Guerra Mundial, começou por invadir e ocupar uma série de países na Europa central e de leste: Áustria, Hungria, Polónia, Roménia e Bulgária, entre outros. Estes países serviram como passadeira vermelha para o Terceiro Reich se colocar às portas da Rússia antes de a invadir sem uma prévia declaração de guerra. Os recursos desses países — e isto, sim, trata-se de um facto indesmentível — foram totalmente usurpados e colocados ao serviço do exército nazi. Admira-me que, na sua entrevista, Târnoveanu não dedique uma única palavra a este assunto. Admira-me que não reconheça a evidência da exploração do seu país pelo regime ideologicamente mais hediondo de que há memória. Adiante.

 

Quando o exército vermelho libertou a Roménia, juntamente com muitos outros países, do jugo nazi, foi instaurado um regime socialista pró-soviético. Durante esse regime a Roménia atingiu os mais elevados índices de bem estar e de desenvolvimento da sua história. Não existe comparação possível relativamente a domínios como a educação, a cultura, a saúde, a habitação, o trabalho ou o aquecimento. Os russos dotaram o país das estruturas necessárias para o catapultar para a era moderna como casas, escolas, universidades, hospitais, canalização ou condutas de aquecimento. Índices como a mortalidade na infância, a esperança média de vida ou a alfabetização falam pelo que foi feito nessa altura e pelo que nunca havia sido feito anteriormente, particularmente pelos admirados ocidentais. A Roménia deixou de ser um país de camponeses incultos para se tornar num país de escritores e cientistas.

 

A independência romena não foi um presente dado pelos russos? Talvez não, Sr. Târnoveanu. O que os russos deram aos romenos foi muito mais do que independência. Por que razão Târnoveanu, ou qualquer um dos conterrâneos que representa, não é capaz de reconhecer qualquer uma destas virtudes? Por que é que, pelo contrário, prefere deixar frases como aquela a propósito dos soviéticos: “Foi uma pilhagem em larga escala, maior ainda que as pilhagens turcas e mongóis juntas”?

 

Já sabemos que, na opinião dos romenos, no tempo dos nazis ou de outros que os precederam não aconteceram grandes “pilhagens”. E hoje em dia, como é? Sim, porque o comunismo já abandonou a Roménia há uns bons trinta anos. Não sabem? Deixem-me que vos diga, então: a Roménia não tem nada de seu, nem empresas, nem recursos, nem serviços; os seus vastíssimos recursos fósseis são drenados para as grandes potências capitalistas mundiais que deixam ficar pequenas migalhas à população romena; o povo vive miseravelmente mas agora pode dizer, com orgulho e propriedade, que tem ricos e que vive em democracia e liberdade. Acresce ainda que encontrei na Roménia as mais obscuras igrejas ortodoxas de toda a Europa, igrejas mal iluminadas, repletas de fieis divididos por género, com um culto perfeitamente retrógrado, com as mulheres tapadas da cabeça até aos pés de onde apenas um singular olhar inquisidor sobre os turistas, desobedientes ao seu código ético, conseguia escapar.

 

Ao mesmo tempo, atualmente a Roménia empenha-se com todas as suas forças para que a acolham na família da União Europeia. A adesão à NATO foi instantânea, mas a União Europeia é mais exigente. Por parte da Roménia, dado o seu quadro histórico, seria de esperar alguma cautela e até aversão à dominação estrangeira, mas tal não se verifica. Pertencer ao clube dos países ricos é uma ilusão muito apetecível. Bem fariam se olhassem com olhos de ver para o exemplo português.

 

Podia ainda falar de Ceausescu e das marcadas diferenças e divergências entre o regime comunista romeno e a União Soviética, que também concorrem para o desmascarar deste discurso parcial e desequilibrado pintado a uma só cor. Podia, mas o texto já se prolongou para além da conta.

 

Termino reconhecendo o quão fácil é, portanto, entender a razão de ser do pensamento único romeno. Como se costuma dizer, o coração quer o que o coração quer. E o que o coração quer é igreja, poucas obrigações de estudar ou trabalhar, pouco trabalho, dinheiro fácil, sonho americano, poder ser rico, ou melhor, poder ter mais dinheiro que o vizinho ao lado. E é por isso que os russos são o demónio. É por isso que o comunismo foi horrível, ao contrário de qualquer outro poder incluindo o nazismo. Ernest Oberländer Târnoveanu é uma personalidade simbólica, porque é mais do que o diretor do Museu Nacional de História da Roménia: é uma espécie de clérigo deste pensamento dominante. Ave ocidente. Ave livre mercado. Ave capitalismo.

publicado às 15:22

A corrida ao espaço — uma retrospetiva reflexiva

Hoje dei por mim a folhear documentos antigos e a relembrar alguns momentos da história da corrida ao espaço (Space Race), uma disputa científica que opôs os Estados Unidos da América (EUA) à então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e teve o condão de alimentar a imaginação dos homens e mulheres da época de ilusões e esperanças com o quebrar da derradeira fronteira.

 

O final da Segunda Grande Guerra deixou a geopolítica mundial nas mãos de duas superpotências: os EUA, a nação que mais cresceu e lucrou com as duas Grandes Guerras através das exportações massivas para os vários lados dos conflitos e da dívida gerada no processo; e a URSS, uma nação jovem, fortemente massacrada na pele pelas duas Grandes Guerras, com grandes carências, mas que vinha aproximando-se dos EUA nos domínios da indústria e da economia e ultrapassando largamente os EUA no que diz respeito a todos os índices sociais, de educação e de saúde.

 

A criação da NATO, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, por parte dos EUA, que tinha como objetivo inscrito e declarado o combate ao comunismo, foi o mote para a instituição de um clima de hostilidade entre as duas potências, estes dois regimes tão díspares, tão diametralmente opostos, tão contraditórios do ponto de vista filosófico e de valores, que vigorou até praticamente ao final do século passado, e ao qual se convencionou chamar de “Guerra Fria”.

 

Olhando para a poeira desses tempos passados, uma das facetas mais interessantes e entusiasmantes dessa Guerra Fria foi, sem dúvida, a corrida ao espaço. Na segunda metade do século XX, sobretudo, as duas potências digladiaram-se numa disputa científica pelos maiores feitos no que diz respeito à conquista do espaço. Para os EUA, esta contenda significava uma categórica afirmação de superioridade própria, do país relativamente aos outros e à URSS, mas também uma superioridade dogmática do capitalismo relativamente ao comunismo. Para a URSS, significava a sua afirmação no mundo, do seu projeto e do seu ideal e, claro, também uma vitória da convicção no comunismo sobre o capitalismo.

 

Ao contrário do que muita gente pensa, ou adivinha sem saber, a guerra do espaço foi inicialmente amplamente ganha pela URSS que venceu sucessivas batalhas infligindo aquilo que os próprios media americanos descreveram como duros golpes e tremendas humilhações aos EUA. Em agosto de 1957, a URSS lançou o primeiro satélite no espaço, o Sputnik. Os EUA ficaram incrédulos por terem sido tão completamente ultrapassados pelos seus rivais. Tanto assim foi, que os jornais encheram-se de críticas, chegando mesmo a acusar o sistema educativo americano da culpa daquela derrota pela sua incapacidade ou inépcia em formar bons valores na ciência. Um mês depois, a URSS lançava a Laika no espaço, o primeiro animal a orbitar o planeta, abrindo as portas para o ser humano seguir-lhe as pisadas.

 

Para adicionar escândalo a esta dupla derrota, os EUA apressaram-se a lançar em dezembro de 1957, apenas quatro meses depois do lançamento do Sputnik, o satélite Vanguard que, depois de subir uns poucos metros, explodiu em chamas. A resposta dos EUA à URSS revelou-se patética. O Vanguard ficou conhecido pela alcunha pouco abonatória kaputnik. Mas a história não ficou por aqui.

 

Em abril de 1961, Iuri Gagarin, soviético, tornou-se no primeiro astronauta, ou cosmonauta como os russos chamavam. A bordo da nave Vostok, Gagarin deu uma volta completa em torno do planeta e regressou em segurança. Neste ponto, a URSS superava os EUA em todos os domínios da corrida ao espaço.

 

Completamente derrotados e desacreditados, os EUA lançaram-se num ambicioso objetivo em serem os primeiros a pisar a superfície da Lua, eles que estavam tão ultrapassados e atrasados em tudo o resto. Houve nesse objetivo algo de simbólico mais do que qualquer outra coisa. Na altura, ninguém que fosse minimamente sério na área espacial conseguia perceber muito bem a razão de ser de tamanha empreitada que não fosse simplesmente a capitalização em termos de reputação e glória. Tal veio, com efeito, a consumar-se em julho de 1969. Neil Armstrong, americano, tornou-se no primeiro homem a pisar a face da Lua. As imagens da façanha foram transmitidas em direto pelas televisões. As suas palavras, Um pequeno passo para um homem, um gigantesco salto para a humanidade, ficaram para sempre gravadas nos corações de todos.

 

Hoje em dia, evidências várias apontam para a encenação da expedição: a bandeira esvoaçando com o vento lunar, as sombras suspeitas, as incríveis parecenças com filmes de Hollywood que tinham sido realizados há pouco tempo e muitas outras coisas, mas sobretudo, a incapacidade tecnológica americana na altura para realizar o feito. É claro que o mito ficou e perdurará contra todas as evidências que vão sendo, cirurgicamente, apagadas dos cantos das páginas da História, nem que não seja pelo inexorável desaparecimento das poucas pessoas que, como eu, sabem e têm memória. Não fugindo à regra, a minha vez também chegará. Quando a última voz dissonante deixar de se ouvir e, enfim, desaparecer, entraremos numa consonância perfeita de uma só narrativa dogmática de vozes inconscientes e ignorantes. Porque quem domina o mundo dita também o que os livros de história nos contam.

 

Acredito que os melhores engodos são efetuados a uma audiência com disponibilidade para ser enganada. Todos os sinais indicavam que a caminhada na Lua seria um engodo. Os EUA não tinham capacidade para o fazer. Mas nós quisemos acreditar no que víamos. Os nossos olhos brilhantes, ávidos, como os de uma criança que vê pela primeira vez as luzes do Natal, quiseram acreditar-se. Não há razão, não há verdade, que seja mais forte do que isso.

publicado às 22:04

"Um comunista deve ser um santo, um não comunista pode ser o que quiser"

Estava a pensar escrever umas linhas sobre este anedótico assunto do deputado comunista António Filipe ter sido fotografado na sala de espera de um hospital privado lisboeta. Mas estava a custar-me apontar o óbvio: uma parte do nosso povo tem tanta falta de caráter e de ideias coerentes dentro da cabeça que até dói. Felizmente descobri este artigo excelente de Pedro Tadeu sobre o assunto. Obrigado ao autor por me poupar ao aborrecimento da tarefa.

 

Alguns excertos que me parecem preciosos:

 

  • “Esta inferência, se for aceite como verdadeira, leva, dedutivamente, a outras conclusões: um comunista pode lutar toda a vida pelo que acha ser melhor para a sociedade, por melhores salários para os trabalhadores, por mais direitos para os desprotegidos, por serviços de saúde gratuitos e bons para todos. No entanto, o comunista, para respeitar os seus princípios políticos, só pode ter um salário decente, usufruir de direitos básicos ou, simplesmente, escolher o que é melhor para si quando toda a sociedade poder beneficiar dos resultados da sua luta - até lá, em solidariedade para com os mais desfavorecidos, o comunista não pode usufruir do que a sociedade tem disponível...”

 

  • “Com tanta fome no mundo, imagino que um comunista a comer bife da vazia já seja, para esta moral distorcida, um pecado mortal.”

 

  • “Um comunista, pelos princípios desta teoria, é, portanto, um mártir e se não se portar na sua vida privada como um mártir, é um hipócrita.”

 

  • “Claro que ninguém pergunta se um defensor da privatização da saúde deve ir a um hospital público, se um defensor dos PPR privados pode receber pensões do Estado ou se quem quer destruir o ensino público pode meter os filhos nas melhores universidades do país (que, não por acaso e muito graças aos comunistas, são as públicas).”

 

Mais poderia ser acrescentado, claro, mas é desnecessário. Há, todavia, esta ideia recorrente sistematicamente veiculada no mundo capitalista desde os primeiros tempos da propaganda anticomunista da guerra fria: a um comunista deve-se exigir tudo — princípios, moral, prática, coerência, até mesmo santidade —, ao passo que a um não comunista não se tem que exigir rigorosamente nada. “Um comunista deve ser um santo, um não comunista pode ser o que quiser”. As redes sociais só acrescentam esta valência inquestionável: magnificam a estupidez humana, mostram-nos o que temos de mais medíocre.

publicado às 10:19

A política portuguesa está estranha

Confesso que me sinto confuso com o Portugal político contemporâneo. No passado, a esquerda não tinha força política parlamentar. O poder esteve, desde as primeiras eleições livres após a revolução de 74, entregue aos partidos do chamado arco da governação, PS, PSD e CDS, que, com diferenças pontuais de estilo, muito subordinadas, aliás, às lideranças que neles pontificavam, guiaram o país por um mesmo caminho. Esse caminho que se faz longo na poeira dos nossos passos coletivos é o caminho da liberalização da sociedade.

 

Os teóricos de direita vociferarão contra a factualidade deste ponto e, em parte, terão razão. O objetivo não é a liberalização total, ampla, generalizada. O objetivo não é um capitalismo puro e selvagem, mas antes um capitalismo de estado, um capitalismo em que o estado se constitui como simultaneamente o advogado e o juiz de um corpo só dos interesses da classe burguesa. O problema é que a razão destes teóricos de direita só encontra sustentação na sua própria teoria económica que é assim uma miscelânea de conceções ilusórias, axiomas débeis e enviesados e matemática medíocre. Não há, com efeito, um único exemplo de capitalismo que não possa ser qualificado como capitalismo de estado. E quando temos dúvidas sobre estas questões, devemos olhar diretamente para os Estados Unidos da América, que é o melhor exemplo de um país estruturalmente cristalizado para proteger os interesses das suas multinacionais burguesas. O presidente dos Estados Unidos da América consegue mais facilmente lançar um míssil sobre um outro país para garantir uma reserva de óleo do que passar uma lei sobre a educação ou sobre a saúde dos americanos.

 

Mas afastei-me da minha linha de raciocínio. No passado, a política em Portugal era simples: o rebanho governamental estava entregue aos lobos da direita, tivessem eles melhores ou piores vestes de cordeiro. À esquerda restava a rua. Melhor: ao Partido Comunista Português restava a rua.

 

É bom lembrar que o Bloco de Esquerda é um fenómeno recente que, ainda hoje, volvidos dezoito anos após a sua formação, mantém uma ligação ao povo pouco mais que vestigial. Neste ponto, atacam-me os bloquistas apontando para a maior expressão parlamentar do seu partido face ao PCP e têm razão. A política portuguesa está a mudar, está estranha. Como pode um partido que não tem uma freguesia, quanto mais uma autarquia, em todo o território nacional ter a expressão que o Bloco tem a nível parlamentar? É estranho. Como digo, a política está a mudar e o Bloco tem lucrado com isso. Será essa mudança sustentável? O passado sugere que o eleitorado do Bloco é pouco sólido, flutuante, que se baseia num protesto pouco refletido e muito condicionado à situação atual e, portanto, de natureza egoísta. Com Francisco Louçã, por exemplo, um político e parlamentar muitíssimo mais capaz do que Catarina Martins, o Bloco passou do oitenta para o oito de uma eleição para a outra, que é como quem diz, da noite para o dia. Podia ensaiar duas ou três explicações para o fenómeno, sendo que a minha preferida é a inconsistência ideológica aberrante do Bloco de Esquerda de cuja origem trotskista atinge, no mundo contemporâneo, a mais refinada versão. Tenho consciência, porém, de que qualquer ensaio de explicação esbarraria na realidade que é a absolutamente insondável vontade das massas. Não há lógica que resista a essa parede que é a realidade e que nos surpreende a cada esquina.

 

Perdi-me novamente, peço desculpas. É que esta problemática é complexa e é difícil expor o que penso com clareza sem dispersar-me. Servia isto para dizer que, incluir o Bloco de Esquerda nos movimentos das massas, na dinamização da rua não é muito relevante. O Bloco não tem rua, só tem parlamento. Como dizia, ao Partido Comunista restava a rua, as organizações de trabalhadores, o movimento sindical. A rua era a forma de o Partido se fazer ouvir, de dar voz aos trabalhadores, ainda que estes, em maioria, não a quisessem ter. A rua foi a forma de contrariar a hegemonia da direita sobre a sociedade, de se garantir que alguns direitos permanecessem e que outros fossem conquistados ao ímpeto liberalizador dos sucessivos governos.

 

Mas hoje... Hoje o Partido Comunista tem voz no parlamento. Hoje o Partido Comunista é fundamental para que haja governo. Hoje o Partido Comunista pode estabelecer as regras do jogo, dizer por que é que troca o seu apoio parlamentar a este governo. E na verdade, fê-lo. Trocou-o pela defesa dos funcionários públicos e pensionistas e por um punhado de outras minudências. Para mim é muito estranho assistir à manifestação de ontem, àquelas palavras de ordem que conheço de cor. Aquilo que para mim era real, aquilo que era vivo, aquilo que era a força e luta legítimas e honradas de uma minoria política sem expressão parlamentar, porque era disso que se tratava e ainda se trata, resultou numa espécie de encenação que se faz porque se faz e porque se tem que fazer. O Partido Comunista Português assumiu definitivamente, neste quarto ano de mandato governamental, uma dupla face, um jogo duplo: no parlamento protege o governo e defende-o — o que ainda é o mais penoso de se observar — a troco de ganhos de classe minimais; na rua exulta os demais trabalhadores a lutarem pelos seus direitos, os mesmos que não são atendidos no parlamento nem considerados pela ação governativa.

 

Bem sei que há condicionantes importantes na ação do PCP e tenho plena consciência de que, acaso o PCP exigisse mais do governo, a coligação cairia no mesmo dia. Tudo isto é uma questão de estimar o peso relativo dos pratos de uma balança, de fazer a diferença entre os ganhos e os proveitos de uma solução de compromisso. Mas isso é uma outra história, a qual seria importante aprofundar, porque quando se parte para uma solução deste tipo — e foi o PCP que a criou — é preciso ter consciência plena no que é que se está a meter. Do que este texto trata é de outra coisa, é de uma questão de caráter e de identidade. Um partido que pede aos seus seguidores para lutar na rua por aquilo que os seus dirigentes não lutam com todas as suas forças e armas no parlamento é de todo em todo indecente. Não há outro qualificativo. E sim, não basta apresentar propostas de lei que se sabe que serão chumbadas pelo PS, pelo PSD e pelo CDS. E mais: assistir a isto tudo — já lá vão três anos! — e continuar a apoiar o governo é revelador de uma grande falta de respeito e de dignidade pelo partido e pelos seus militantes.

publicado às 09:44

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