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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

A sociedade do duplo critério

Num ápice o foco mediático deslocou-se por inteiro do conflito Rússia-Ucrânia, para o conflito Israel-Palestina. Creio que, a ocidente, terá sido muito oportuna esta sucessão dos eventos: foi o pé de que precisavam para abandonar de vez (?) as ambições de guerra do insensato ucraniano. Nunca deixará de me surpreender, todavia, é a mudança de critério que acompanhou a mudança do foco:  o que se dizia a propósito do primeiro conflito, não se diz a propósito do segundo conflito ou, pior, diz-se exatamente ao contrário. Arrepia-me viver numa sociedade de dois pesos e de duas medidas. Arrepia-me que umas vidas sejam mais importantes que outras. A este respeito, também o tratamento mediático é o oposto, a imagética, o argumentário aplicado inverteu-se, a conceptologia substituiu-se, já não há invasores nem invadidos, já não há agressores nem agredidos, os terroristas são os outros, são sempre os outros. Terrorista é aquele conceito que se aplica a quem convém e que se subleva a qualquer critério. É como o bárbaro na boca dos romanos. É o inimigo. Elogie-se ainda o discurso de António Guterres por se limitar a dizer o óbvio e deixar, por breves momentos, de ser o serventuário do tio Sam. E veja-se como, para Israel, quem ousa criticá-la é imediatamente enxovalhado de antissemita para baixo. É um tipo de atitude que corta pela raiz qualquer tipo de diplomacia, de diálogo ou de entendimento. Não será por acaso que o problema do médio-oriente não se resolve. Nada se pode resolver na sociedade do duplo critério.

publicado às 17:54

A ética segue critérios estéticos

Atribui-se a Friedrich Nietzsche o pensamento:

Se matarmos uma barata somos vistos como heróis. Todavia, se matarmos uma borboleta somos considerados maus. A ética segue critérios estéticos.

Sem dúvida que a ética segue critérios estéticos. Não serão apenas, nem meramente, estéticos, contudo, tais critérios da ética. A racionalidade humana vê-se constantemente ultrapassada, dominada, subordinada ao subconsciente, ao sugestivo, ao imaginário, ao subliminar. Como se a incoerência fosse endémica ao mundo dos homens... ou, pelo menos, da maioria deles.

publicado às 13:16

We will always have Kosovo?

Ai, que pena é já não nos lembrarmos do Kosovo... de como foi dada a independência em 2008 a essa pequena região sérvia sem nenhuma justificação que não fosse a de haver uma grande população de origem albanesa, de como o “direito internacional” de nada valeu então e dos bombardeamentos da NATO que destruíram gratuitamente boa parte da belíssima Belgrado...

Que pena a nossa falta de memória! É que daria tanto jeito para vermos a situação da Ucrânia de um outro modo!

Já não peço conhecimentos em história e geografia europeias: peço, simplesmente, memória! E não tão longínqua assim... Não peço para relembrar a crise dos misseis de Cuba e do estado de loucura que provocou na América dos anos 60. Claro, isso foi nos anos 60, quase ninguém era nascido nessa altura... Hoje é lícito os americanos colocarem misseis em tudo o que é país fronteiriço da Rússia. É muito diferente, claro.

É que tudo o que os americanos não gostam que lhes façam a eles, fazem aos outros e tudo aquilo que os americanos fazem aos outros não admitem que os outros façam. Complicado? Não, é muito simples. Com a atenuante de que o que está em causa, como sempre esteve, é a segurança da população russa naqueles territórios ucranianos a qual, desde o golpe de estado de 2014 que instaurou um regime com “simpatias” neo-nazis naquele país, tem estado seriamente comprometida.

Mas todos nós convivemos bem com um regime que “adora” suásticas, militarizar as populações e submetê-las segundo a regra da violência de milícias armadas. Claro que convivemos bem: a Europa patrocinou esse golpe de estado na Ucrânia, como poderia ser de outro modo? Se não aceitamos o direito que a Rússia tem em zelar pelos seus legítimos interesses, aceitemos, pelo menos, o direito que a Rússia tem em proteger os seus cidadãos. É só isso. O resto é propaganda descarada de uma grande potência que já só o é para as televisões e para os jornais amestrados (neste particular, note-se a grande adição que foi a CNN Portugal ao panorama de papagaios do imperialismo que já tínhamos aqui no bairro). Aos Estados Unidos da América, de facto, já não lhes resta mais do que isto: propaganda. Daí toda esta histeria dos capangas da NATO: como não podem fazer nada, berram e chamam nomes, como as crianças no recreio da escola.

publicado às 11:16

Alguma coisa não estará certa

Não era mesmo Israel o país com virtualmente 100% dos seus habitantes vacinados? E cujos cidadãos já podiam andar sem máscara? E que volta agora atrás porque as coisas não estão a correr bem?

 

Não sei, mas parece que há qualquer coisa aqui sobre as vacinas e os seus reais efeitos que não está bem explicada. Serão as estirpes? De um modo ou de outro, a este ritmo de desenvolvimento (deste super vírus!), serão necessárias tomas de vacina a cada três meses... ou menos.

 

É um caso para refletir, sem dúvida, mais a mais quando ouvimos o nosso “general” das vacinas a falar em atingirmos a imunidade de grupo no final do verão. Prestadas as devidas continências, alguém que lhe diga que Israel tem 100% da população vacinada e está a ficar outra vez com problemas.

publicado às 10:05

Avante 2020

Gosto muito da Festa do Avante!. Gosto mesmo. Considero a Festa como o evento cultural e político mais significativo do panorama nacional. Já o escrevi aqui, não mudo de opinião. A Festa é uma realização que deve orgulhar todos os comunistas que, durante três dias, mostram ao mundo, pela prática, que uma outra sociedade é possível, que o sonho comanda a vida e que a chama da utopia tem que ser mantida bem viva para não deixarmos de caminhar no sentido do progresso e da fraternidade. Adoro viver aqueles três dias da Festa do Avante!.

 

A edição deste ano, um ano que continua fortemente marcado pela pandemia, tem estado envolta em polémica motivada por motivos óbvios relacionados com a saúde pública e alimentada por outros, também óbvios e permanentes, relacionados com a guerrilha política habitual de cariz anticomunista primário.

 

É de sublinhar que, este ano, a realização da Festa do Avante! tem tido mais cobertura e atenção mediáticas do que todas as outras quarenta e tal edições já realizadas desde 1976 e tal facto promete aprofundar-se ainda mais com a realização propriamente dita da Festa, antevendo-se uma minuciosa observação dos espaços da mesma em busca de possíveis más práticas no contexto da saúde pública.

 

Não obstante tudo o que foi escrito acima, a minha posição é de não concordância com a realização da Festa do Avante! neste ano de 2020. Não concordo por dois motivos fundamentais.

 

Primeiro, por uma razão de saúde pública. A Festa representa uma concentração de muitas pessoas, não interessa se são cem mil, trinta e três mil, se são mais ou se são menos. São muitas pessoas. É verdade que o espaço é amplo, e ainda foi mais aumentado este ano, mas o simples bom senso, para além de qualquer diretiva da Direção Geral de Saúde, devia inibir a promoção de uma festa com tanta gente, estando o país, particularmente, na antecâmara da segunda vaga do vírus, como já está a acontecer no resto da Europa.

 

Acresce, em segundo lugar, que o lema da Festa é a fraternidade, o convívio intergeracional, a conversa, o debate, a troca de experiências, a manifestação dos sentires e das emoções. Ainda que, por absurdo, fosse possível cumprir um religioso distanciamento social e todas as normas e mais algumas, em que é que resultaria a Festa do Avante!? Será que vale a pena a Festa ser realizada, assim, a qualquer custo, sem o poder partilhar de um abraço ou de um beijo, de sorrisos escondidos atrás de máscaras, despida dos seus mais íntimos valores, da sua razão de ser?

 

A impressão que transparece é que sim, que a Festa tem que ser realizada a qualquer custo e tal não será alheio ao facto da Festa se ter tornado, com o passar dos anos, no porquinho mealheiro do Partido Comunista Português e de essa valência, natural numa realização como esta, ter vindo a assumir preponderância no orçamento do partido, mais a mais com os fiascos eleitorais sucessivos e os buracos financeiros correspondentes.

 

Claro que se pode sempre argumentar com a incoerência que impera em todo o país, particularmente desde a retoma pós-confinamento, no que diz respeito ao combate à pandemia, desde as praias aos concertos, passando pelos transportes públicos. No fim de contas, porém, qualquer partido político deveria assumir a responsabilidade de fazer o mais correto e dar um exemplo de prudência aos seus militantes, simpatizantes e a todos os cidadãos em geral. Não se justifica um erro com outro. É tão básico quanto isto.

 

Pedia-se, pois, mais a um partido com a história e as responsabilidades do PCP. Mas o PCP não só decidiu enveredar por outro caminho como ainda decidiu fazer uma gestão da coisa absolutamente lamentável, mandando números aleatórios para o ar, omitindo informação e, sobretudo, contribuindo para a politização do assunto. Defender, por exemplo, que a realização da Festa é imperativa para a defesa dos trabalhadores é, no mínimo, pouco sério. Ao PCP exigia-se uma posição organizada, transparente, coordenada com a lei e com a DGS, sem arrogância no discurso, sem vitimizações, sem politização. O PCP fez tudo ao contrário.

 

Nota final para uma realidade que parece ter vindo para ficar mas que não deixa nunca de me causar espanto. Não obstante a frente de críticas esperadas à posição do PCP vinda da direita, é surpreendente observar certos comentadores de direita, de repente, a fazer a defesa do PCP. Já ouvi dois, daqueles mesmo à direita, a dizer que o PCP é muito responsável e desfazendo-se em outros elogios ao partido. Para mim isso é sempre mau sinal. Estarão eles incumbidos de tentar salvar a muleta de governação do PS? Ao que nós chegámos...

publicado às 20:49

Uma ilusão que se esfuma

No final da semana passada fomos surpreendidos com a escolha de Rita Rato no concurso público para a direção do Museu do Aljube — Resistência e Liberdade. Aqui o uso do verbo surpreender é inexato e algo abusivo.

 

O que é surpreendente é ainda existir alguém que se surpreenda com concursos públicos de fachada, de faz-de-conta, com critérios desrespeitados, outros feitos à medida, entrevistas verdadeiramente geniais capazes de anular e suplantar currículos medíocres ou inadequados, que resultam em escolhas inesperadas e extraordinárias. Quem isto desconhece ou quem acha que o que acabei de escrever é irreal deve continuar assim, mudar de página, não deve investigar nem fazer nada: essa inocência pura é o seu passaporte mais seguro para a felicidade.

 

Acho que o que é mais agressivo à alma é esta perceção da hipocrisia. Será a hipocrisia, acima de tudo, o que mais fere, porque qualquer cidadão médio tem plena consciência de que todas as instituições têm uma inclinação política, uma orientação enviesada, mesmo aquelas que se financiam com dinheiros públicos, mesmo que se construam os mais diversificados crivos democráticos. E o que dizer de um museu com cinco anos de vida, “dedicado à história e à memória do combate à ditadura e ao reconhecimento da resistência em prol da liberdade e da democracia”? O que dizer de um projeto de vocação eminentemente política cuja origem, desenvolvimento e história estarão umbilicalmente ligados ao PCP? E seria natural, invertendo a questão, que a direção de um museu com estas premissas, dedicado à memória da resistência antifascista em Portugal, fosse entregue a um não comunista? Mas voltamos à hipocrisia, a esta hipocrisia visceral, este querer parecer o que não se é, esta obstinação por uma imagem, que não é a nossa, de aparência nívea, imaculada, escondendo uma realidade de compadrios e de jogos de interesses.

 

Dito isto, é evidente que o PCP sai chamuscado deste processo.

 

Primeiro, porque é o ator principal de uma peça que coloca numa instituição financiada com fundos públicos um quadro seu sem nenhuma qualificação académica para a função e cuja escolha se baseia simplesmente no facto de ter sido deputada, e deputada do PCP, na Assembleia da República. O critério político sobrepôs-se, portanto, ao critério académico e profissional. Saem igualmente melindrados a classe política como um todo e a imagem dos cargos nas instituições públicas ou com funções públicas.

 

Segundo, porque fica também aqui patente aquela deriva autista, para a qual venho alertando, que tomou o PCP desde o seu interior. Repare-se como teria sido fácil ao PCP ter construído um projeto de direção do Museu a partir de um dos seus muitos quadros na área da História. Teria sido fácil, mas não o fez.

 

Há uma sensação assustadora de que o partido não quer saber do que a sociedade pensa, no que lhe fica bem ou mal e prossegue um processo de conspurcação irrevogável de uma certa imagem que lhe era atribuída com propriedade, conquistada ao longo de muitos anos com muito sacrifício, de coerência, de honestidade, de integridade, de correção e de dignidade no desempenho de funções públicas, de defesa dos trabalhadores e do povo.

 

Neste particular, são deprimentes as defesas ensaiadas pelo PCP e pelos seus canais não oficiais a todo este processo. Não se trata sequer de aferir se as justificações são válidas ou não: é o constatar de que os comunistas se veem reduzidos a um argumentário próprio da direita política e das suas promiscuidades endémicas com o poder e os interesses económicos. A isto não estávamos habituados.

 

Quebra-se aqui uma ideia que os comunistas guardavam com cuidado, esfuma-se uma ilusão nutrida com afeto, de que o PCP era um partido diferente, que seguia as normas, as da ética e da moral antes das convenções sociais ou legais, um partido de gente séria no qual era possível confiar. Depois da gestão que foi feita da “geringonça”, depois das incoerências e das traições ao ideário marxista, das inéditas polémicas na gestão das autarquias, da questão da Festa do Avante! a realizar de qualquer forma e em contraponto com o que se passa no resto do país, esta escolha de Rita Rato para a direção do Museu do Aljube foi, talvez, a gota de água que faltava neste legado de destruição da imagem de um partido, um legado que Jerónimo de Sousa indelevelmente deixa enquanto secretário geral.

 

O tempo é, pois, de expetativa e desespero para marxistas e revolucionários. Desespera-se por uma inversão de políticas internas. Desespera-se pelo congresso. Questiona-se se o partido lá chegará com alguma coisa de si ainda intacta ou se dele sairá, definitivamente, como um partido aburguesado e igual a todos os outros.

 

publicado às 11:59

Um partido por um fio

Há uma força dentro do PCP, prestes a atingir a maioridade, que está investida em empurrar os comunistas para fora do partido. Dentro do partido, o pensamento comunista está subordinado àquilo que parece ser um pensamento utilitarista de sobrevivência, o pensamento progressista rendido a uma interpretação dogmática da realidade. Não existe justificação teórica ou prática. Não há filosofia política. O que há é um conjunto de diretivas arbitrárias que os militantes devem seguir.

 

Para um comunista há uma questão interna e individual que começa a impor-se por muito que dela fujamos: porque é que voto no PCP? Em que é que o PCP me representa?

 

A atualidade apresenta-nos a aberração diária de vermos o PCP, partido de comunistas anti-capitalistas, a apoiar com todas as forças um governo minoritário burguês de um partido social-democrata.

 

Os representantes do PCP no parlamento e pelo resto do país são, em regra geral, figuras deprimentes. Leem todos — e mal — os mesmos textos escritos pela mesmíssima pena. Alguns, parece que assumem os cargos para aprender a ler. As suas prestações nos debates é paupérrima, capacidade argumentativa sofrível, bagagem intelectual medíocre. Há honrosas exceções como João Ferreira, claro que há, mas são oásis no seio do partido. A liderança do partido é causa de permanente embaraço e não satisfaz quem exige uma defesa intelectual consistente dos ideais comunistas.

 

Os proletários deste país não veem o PCP como a vanguarda da defesa dos seus direitos. Estão demasiado habituados a propostas redistributivas da riqueza, taxas e impostos que, de uma forma ou de outra, acabam sempre por ir ao seu bolso para benefício de quem não trabalha e não contribui. O PCP, aos olhos dos proletários, daqueles que efetivamente trabalham, que são explorados pelo seu trabalho e, muitos, empobrecem trabalhando, é o partido do funcionalismo público e de quem não quer trabalhar. Tragicamente para o PCP, o funcionalismo público e a massa de indigentes do nosso país não vota, em regra, no PCP.

 

Esta nuvem difusa de ideias só poderia ser combatida assumindo uma direção revolucionária, intelectualmente justificada, cientificamente defendida, superiormente argumentada. Mas o PCP há muito deixou este caminho, o caminho dos comunistas, e optou por um caminho de sujeição às regras e às estruturas do sistema, o caminho da social-democracia. Nenhum comunista percebe ou aceita isto. E ninguém consegue vislumbrar que vantagens para o partido justificam tal opção.

 

E depois, pelo meio, surgem questões como a eutanásia e, então, é a confusão instalada: será que PCP é a sigla de alguma seita religiosa ou de algum movimento pró-vida? A argumentação é a mesma. Será que andámos distraídos todo este tempo? Reparem como o posicionamento do partido relativamente à eutanásia é tomado de forma perfeitamente autista: autista relativamente à sua matriz ideológica, porque não existe qualquer justificação teórica para suportar a sua posição de contra; e autista relativamente aos seus militantes, pois nenhum processo de debate interno ou de auscultação das bases foi promovido sobre o tema. A decisão veio de cima e as bases devem seguir as orientações e defendê-las porque sim.

 

Dois argumentos continuam a suportar o voto no PCP: o peso do hábito e o facto de não existir alternativa marxista minimamente organizada no quadro político português. É pouco sobretudo para alguém que se dá ao respeito do ponto de vista ideológico e político. E vai sendo um pouco cada vez mais poucochinho a cada ano que passa e que vai consagrando o PCP como um partido não de comunistas lutando por um ideal mas de funcionários lutando para manter um posto de trabalho. Um posto de trabalho que se vai mantendo por um fio.

publicado às 10:14

Obrigado, Que Fazer?

Uma das melhores coisas que me aconteceram este ano foi ter tomado conhecimento deste blog: Que Fazer?.

 

Trata-se de um blog de opinião, revolucionário, que foca a sua análise no dramático impasse ideológico que se vive no nosso país, desde a saída dos tempos da troika aos acordos parlamentares que originaram a chamada “geringonça”.

 

Identifico-me amplamente com o conteúdo das opiniões expressas e das análises realizadas e acompanho cada nova publicação com muito interesse. Mas mais do que qualquer outra coisa, é a esperança que me dá ao ler cada novo post, é ler e reconhecer verdade em cada palavra e, com isso, purgar, ver-me livre desta solidão ideológica que se vinha adensando em mim.

 

Por tudo isto, mas também pela coragem, pelo desassombro, pela coerência e pela verticalidade, obrigado, Que Fazer?.

publicado às 18:40

Um roteiro para compreender o resultado das eleições legislativas de 2019

É muito fácil compreender o resultado das eleições cujo desfecho se veio a conhecer na noite de domingo passado. Basta seguir a linha condutora dos eventos, passo a passo, sem perder o fio à meada.

 

O PS venceu as eleições porque foi-lhe permitido, durante quatro anos, fazer uma governação que agradou, simultaneamente, a gregos e troianos. Passo a explicar.

 

A troco de meia dúzia de políticas de natureza redistributiva da riqueza produzida, PCP e Bloco de Esquerda permitiram que o PS continuasse, aprimorasse e cristalizasse estruturalmente na nossa sociedade a política de austeridade que herdou do anterior governo. Com isto o PS conseguiu duas coisas: por um lado, pôde seduzir uma parte relevante da sociedade — os mais pobres e os que mais dependem do assistencialismo do estado — com medidas como os aumentos de reformas e de salário mínimo ou os passes dos transportes públicos; por outro lado, e mais importante, logrou esvaziar a direita política, que viu na governação do PS aquela que ela própria gostava de ter feito, com os objetivos dos números e das estatísticas, do défice e do crescimento económico, que gostava de ter atingido, e cujo eleitorado capitulou definitivamente para o lado do PS com as ações desse partido no campo laboral e na forma indecente com que este lidou com as greves e com as reivindicações de certas classes de trabalhadores.

 

Não se enganem: o PS ganhou estas eleições porque esvaziou a direita, porque ganhou a direita, porque a direita escolheu votar nele e não por causa das medidas sociais ou redistributivas ou de outra coisa qualquer. Dito isto, PCP e Bloco de Esquerda devem estar de parabéns pois foram, ao longo de quatro anos de governo, os principais obreiros desta vitória do PS.

 

Não é portanto de estranhar, e quem acompanha este espaço não estranhará certamente, o resultado obtido quer pela direita, quer pela esquerda.

 

À direita não sobrava razão para ser merecedora de votos. O PS, afinal, conseguiu melhores resultados e com um clima de paz social nunca antes visto, muito devido ao adormecimento coordenado dos sindicatos afetos à CGTP. Ao CDS acresceu ainda o fardo da anterior governação que este partido decidiu orgulhosamente carregar e que, indelevelmente, resultou no seu regresso ao passado dos tempos do “Partido do Táxi”. Foi isso e terá sido também a atitude incompreensível, sempre carregada de agressividade e de hipocrisia, da sua liderança que tudo criticava na governação, mesmo as políticas que antes, enquanto governo, replicava.

 

À esquerda, creio que há dois fatores importantes a destacar.

 

Em primeiro lugar, um reconhecimento geral da inépcia dos dois partidos, PCP e Bloco de Esquerda, em negociar com o governo quando efetivamente detinham o poder de acabar com a governação do PS de um dia para o outro. Fica a ideia que o PS pouco cedeu, tão escassas e limitadas que foram as conquistas durante este período. Este facto pode ter levado o eleitorado a considerar irrelevante o reforço da votação nestes dois partidos.

 

Em segundo lugar e, para mim, mais importante, há a ideia de subversão ideológica que fica patente destes quatro anos. Sobretudo no que ao PCP diz respeito, é difícil de explicar como se legitimou um governo de direita, que deu mais uma canelada no código de trabalho, que maltratou classes inteiras de trabalhadores como os professores, os enfermeiros ou os motoristas de matérias perigosas, entre outros, incluindo descarados atropelos ao direito à greve, sindicâncias pidescas a ordens profissionais, despachos ministeriais em favor das entidades patronais, etc. Tudo isto se passou sob o nariz de PCP e de Bloco de Esquerda e isto, que para os demais até pode ser de somenos, tem muito peso para o militante de base, aquele que viveu uma vida inteira lutando por um ideal sem lucrar nada com isso, bem pelo contrário, sofrendo na própria pele a devoção para com as suas ideias, e para o qual a honestidade ideológica está acima de tudo. Talvez seja por aqui, acredito, que se possa explicar alguns dos milhares de votos a menos nestes partidos.

 

Relativamente aos partidos mais pequenos, também é muito fácil entender os seus resultados.

 

O PAN, cavalgando a histeria momentânea da emergência climática, cresceu como era esperado. O seu voto é um voto de protesto baseado numa ideia mais ou menos vaga, em convicções mais ou menos genéricas, porque ninguém, em consciência, sabe o que é que o PAN defende, porque o que defende é muito moldável, altera-se de uma hora para a outra, e porque ninguém quer prestar muita atenção a coisas de política. Nesta legislatura o PAN fará exatamente o mesmo que fez na anterior: abster-se-á em tudo o que for discutido e, no meio, fará uma ou duas intervenções mais ou menos apalhaçadas com adereços ou outras coisas que tais. As pessoas votaram nisto: é um voto nulo que elegeu quatro deputados.

 

A eleição de um deputado do Chega era também esperado e, se acaso não ocorresse agora, aconteceria numa próxima eleição. É o voto de protesto contra o politicamente correto e contra uma sociedade cada vez mais desorganizada e doente, sobretudo na capital do país onde há maior concentração populacional. Para muitos, a resposta mais tentadora a problemas concretos que nunca são abordados no espaço público é a extrema direita neofascista e xenófoba, securitista e ignorante. É triste, é desolador, mas era esperado.

 

Quanto à Iniciativa Liberal, o seu resultado até acaba por ficar aquém daquele que podia ter atingido com alguma naturalidade. Repare-se que a IL constituiu-se como o espaço de recolha do “passismo”, dos seus quadros, dos seus think tanks, opinion makers e influenciadores de redes sociais. Toda essa gente, que atingiu patamares de relevância e influência políticas no tempo da troika e de Passos Coelho e Paulo Portas, viu-se, com a constituição da geringonça e, posteriormente, a eleição de Rui Rio no PSD, sem emprego, sem serventia. Santana Lopes ainda tentou chamá-los para a Aliança, mas foi na IL que eles encontraram o seu nicho provisório. Deste processo ter resultado apenas um deputado, parece-me modesto, medíocre mesmo.

 

Por fim, o Livre apresenta, à partida, o resultado talvez mais inesperado de todos, mas que pode ser entendido. No plano nacional, este partido ideologicamente muito vago e algo oportunista com a questão da “esquerda verde”, viu a sua mensagem essencial ser, de certo modo, extinguida. Com efeito, o Livre apresentava-se há quatro anos como o promotor de uma grande coligação de esquerda, algo que veio a verificar-se com a geringonça e sem a sua participação. Volvidos estes quatro anos o Livre não tinha nada de substantivo para apresentar no plano nacional. Mas a questão é que esta eleição da deputada do Livre não se explica pelas propostas nacionais do partido que representa que, aliás, pouca ou nenhuma visibilidade mediática tiveram. Será antes em razão da influência local na área de Lisboa da personalidade notável de Joacine Moreira que, com a sua capacidade dinâmica e mobilizadora de massas, terá congregado suficiente eleitorado para conseguir a sua própria eleição. Não menosprezar também alguns votos perdidos e extraviados da área de Bloco e PCP.

 

Gostava de terminar este texto com uma nota. A vitória do PS não significa necessariamente a conquista de uma governação mais estável, antes pelo contrário. Com o PCP a voltar às ruas, as quais nunca devia ter abandonado, com Rio preso por arames no PSD, com o Bloco sedento, como sempre e mais do que nunca agora depois de perder cinquenta mil votos, por protagonismo, o caminho mais fácil e mais natural para o PS, que é tornar-se mais autista e prepotente na sua governação de direita, pode muito bem vir a tornar-se no prenúncio para um fim precoce e inglório do seu segundo quadriénio governativo.

publicado às 04:13

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