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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Marcelo e o poder da palavra

Numa altura em que parece — tenhamos sempre cuidado com o que parece — que a sociedade como um todo se revolta contra Marcelo, permitam-me ensaiar uma posição contrária, como é, aliás, meu habitual timbre — eu, tantas vezes crítico da atuação do presidente. Este governo merece ser demitido, disso não há qualquer dúvida. É um governo que se tem envolvido em tanta situação imprópria que parece ter perdido qualquer vestígio de respeitabilidade. Este caso Galamba é simplesmente a cereja em cima do bolo dos casos que a maioria absoluta tem avolumado, embora, falando estritamente em termos do decoro e da famigerada “ética republicana”, poderíamos dizer que é o bolo em cima das cerejas...

É óbvio que o Presidente poderia ter demitido o governo. Com isso, corria dois riscos: que o PS ganhasse sem maioria absoluta e com a necessidade de encetar sempre belicosas negociações à esquerda para formar governo, num quadro em que é necessário executar projetos e verbas europeias no contexto do plano de recuperação; que a direita ganhasse as eleições, abrindo as portas do governo à extrema direita. Creio que Marcelo não quis correr nenhum destes riscos e não terá querido, sobretudo, prejudicar a sua imagem histórica, a coisa que, julgo, mais preza, o modo como a história olhará para ele.

Em vez de dissolver o parlamento e desmantelar uma maioria absoluta, para todos os efeitos, legitimada popularmente, escolheu, na minha opinião, fazer algo mais inteligente: usar a sua posição, credibilidade e popularidade para explicar pedagogicamente aos portugueses a situação em causa, o que resultou, como não poderia deixar de resultar, num enxovalho mais que merecido a ministro, primeiro-ministro e governo. Esta atitude não só é louvável como é recomendável: a política devia ser mais vezes assim e menos ensopada da hipocrisia do costume.

Não se trata de uma atitude frouxa, como muitos apressadamente e irrefletidamente a qualificaram, bem pelo contrário. Com o seu discurso, com o poder das suas palavras, Marcelo revelou elevado sentido de estado e colocou em evidência a “qualidade” de alguns dos membros do executivo. Deixo aqui a questão que me parece mais relevante: que género de pessoa ouve o discurso de Marcelo e não se demite imediatamente? Que valores é que o podem continuar a mover? É sobre isto que muitos portugueses, no final do dia, ficarão a pensar.

Que as oposições, sobretudo à esquerda que são as que mais me interessam, estejam aliviadas por evitarem eleições antecipadas, isso é outra questão, mas é uma que devia ser motivo de embaraço para as forças políticas em causa e grave sintoma do seu estado atual de morbidez e definhamento.

publicado às 15:29

Eufemismos

1. Costa é perito em tirar e fingir que dá.

2. Os meus leitores que me desculpem a frase eufemística. Bem me apetecia não a utilizar. Vejamos o que o nosso primeiro tenciona fazer com a bênção do nosso presidente dos afetos.

3. Os pensionistas tinham por lei o direito a receber um aumento na ordem dos 7%, pelo menos, nas suas pensões, no início do próximo ano. Houve produtividade, houve aumento do PIB, houve inflação, uma conjugação de eventos que quem fez esta lei nunca esperava, em boa verdade, que ocorresse. Mas ocorreu. Era preciso fazer algo para não se pagar aos pensionistas.

4. Costa dá um bónus, único, de meia reforma em outubro aos pensionistas o que equivale a 3,57% do supra-mencionado aumento. O que sobra dos cerca de 7% dará como aumento no início do próximo ano.

5. Com isto os pensionistas nada perdem em 2023, mas nos anos seguintes os seus aumentos serão menores uma vez que incidirão sobre cerca de 4% e não sobre cerca de 7% do valor das suas pensões que auferem hoje.

6. A maioria dos pensionistas esfrega as mãos de contente com o dinheiro na mão e sem preocupação com o seu futuro e com o futuro dos outros.

7. Era justamente isto que Costa queria, aclamação popular, um povo incapaz de ver que lhe dão com uma mão menos do que lhe tiram com a outra, ao mesmo tempo que se dá uma injeção no consumo interno mesmo antes do Natal com uma antecipação do dinheiro que já era devido aos pensionistas.

8. O que se chama a este tipo de política? O se chama a este tipo de atitude? Qualquer eufemismo me parece vergonhoso.

publicado às 17:58

Foi tempo de mais

O único problema do chumbo deste orçamento de estado foi não ter acontecido há mais tempo:

  1. Foi tempo de mais de carta branca ao PS para este cristalizar as políticas sociais e laborais da troika e da direita.
  2. Foi tempo de mais de desrespeito, de falta de integridade e caráter nas negociações que manteve com os seus parceiros à esquerda corporizados nas cativações orçamentais regulares e crescentes e em promessas jamais cumpridas.
  3. Foi tempo de mais de adiamentos, de “para o ano é que vai ser”, ao mesmo tempo que os serviços públicos caíam na lama e no descrédito.
  4. Foi tempo de mais de malabarismo fiscal para disfarçar mais impostos sobre quem trabalha.
  5. Foi tempo de mais de medo do papão da direita que, em boa verdade, não teria feito muito pior se tivesse no lugar do PS.
  6. Foi tempo de mais de chantagem e ameaça, foi tempo de mais de uma esquerda refém da social-democracia burguesa. Historicamente, foi um tempo negro para a esquerda em Portugal.

Foi tempo de mais. Seis anos é tempo de mais. O único problema do chumbo deste orçamento de estado foi não ter acontecido há mais tempo.

Primeira nota: foi o PS que quis governar assim; foi o PS que não quis acordos ou aproximações de princípio; era o PS que não tinha maioria absoluta; era ao PS que se exigia que encontrasse o apoio parlamentar maioritário que não tinha. A responsabilidade de tudo o que aconteceu é do PS. Faltam bases objetivas e racionais a quem anda pela comunicação social a espalhar o contrário e ao povo que repete esta cançoneta sem pensar. PCP e Bloco não precisam de se preocupar muito com esta linha de argumentação: ela é alimentada por pessoas que nunca votaram (e dificilmente o farão) à esquerda.

Segunda nota: em todo este processo, o comportamento do Presidente da República foi impróprio, procurando condicionar a sucessão dos eventos e as negociações quando deveria ter-se limitado a promover o encontro entre as partes e a saudável discussão dos temas. Pelo contrário, ameaçou a dissolução da Assembleia da República de forma precipitada e injustificada, sem ouvir as partes, sem consultar o Conselho de Estado, sem considerar outras alternativas, numa clara tentativa de forçar a aceitação de um orçamento de estado que não tinha o acordo da maioria da Assembleia da República. Acresce ainda a inaudita e absolutamente irregular audiência concedida ao candidato à liderança do PSD. Não lhe chega meter-se diariamente em “bicos de pés” para fingir ser o chefe do governo de Portugal que não é: também tem que meter o dedo nas eleições internas dos partidos políticos. É admirável, contudo, como, sabendo de tudo, metendo o seu dedo em tudo, consegue sempre escapar às responsabilidades quando as coisas dão para o torto.

Terceira nota: para o papel politicamente medíocre do PAN, o partido que faz da abstenção a tudo o que mexe a sua regra dourada porque, em boa verdade, não tem posição bem definida sobre nada que não se mova sobre quatro patas, vem criticar quem tem a coragem de assumir uma posição, de quem ainda tem princípios e ideais — bem sei que é coisa que vai rareando — e se bate por eles. Neste particular, o PAN assemelha-se à direita que diz que a pior coisa que poderia acontecer a Portugal era haver uma crise política, como se ela própria não tivesse votado contra um orçamento de estado que poderia muito bem ter sido proposto por si. Nestes debates, se há coisa verdadeiramente indigerível é a hipocrisia oportunista e descarada.

publicado às 10:09

Se eu fosse a Rosa Mota, exigiria que retirassem o meu nome do pavilhão

O ano era 1984. A revolução fazia uns escassos dez anos de vida e parecia que a esperança que trouxera já se havia desvanecido por entre duas visitas do FMI ao país, nos anos de 77 e, mais recentemente, de 83, acompanhadas dos mais agrestes tempos de profunda carestia. O leite em pó para o bebé levava quase todo o salário em escudos no início do mês e o que sobrevava fazia dos dias que faltavam duros e penosos.

 

O ano era 1984. A cidade, Los Angeles, nos Estados Unidos da América. Carlos Lopes, cruzava a meta da maratona dos jogos Olímpicos em primeiro lugar, garantindo a primeira medalha de ouro de sempre na história do nosso país e enchia os corações dos portugueses de uma substância da qual julgávamos não sermos merecedores: orgulho. Nesse mesmo ano e nessa mesma prova, uma atleta baixa e franzina, de seu nome Rosa Maria Correia dos Santos Mota, cruzava a meta da maratona dos Jogos Olímpicos em terceiro lugar, garantindo a medalha de bronze na competição feminina.

 

Passaram-se quatro anos até ao próximo evento olímpico. Durante esses quatro anos muita coisa começou a mudar no nosso país, que aderiria à então Comunidade Económica Europeia em 86. Os fundos pelos quais vendemos a nossa autonomia e soberania começaram a fazer o país arrancar, mas ainda era cedo em 88. Havia passado pouco tempo. Ainda era cedo. A cidade, desta feita, era Seul, na Coreia do Sul. Rosa Mota viria a conquistar o seu ouro na maratona e a imortalizar o seu nome na nossa história e na memória dos portugueses que ainda resistem dessa altura.

 

No Porto, cidade que a acolheu, decidiram homenageá-la dando o seu nome a um pavilhão para o hóquei. Foi uma homenagem parca. Rosa Mota merecia o seu nome num estádio dedicado ao atletismo para o apoio à formação de novos valores no país e não num pavilhão dedicado a modalidades desportivas que nada tinham que ver consigo. Mas neste país o dinheiro não é canalizado para coisas desse género, nem o objetivo do desporto é exatamente esse, sabemo-lo bem. Vale mais apoiar o sórdido negócio do futebol e das lavagens de dinheiro na compra e venda de jogadores dos quatro cantos do mundo que pouca ou nenhuma ligação têm ao nosso país e às nossas regiões. De qualquer modo foi exatamente isso que foi feito e o anteriormente chamado de Pavilhão dos Desportos, e que havia constituído justificação para a demolição do lindíssimo Palácio de Cristal, passaria a chamar-se, desde 91, de Pavilhão Rosa Mota.

 

Com a passagem do tempo, a referida estrutura rapidamente caiu numa situação de negligência e descuido, no que à sua manutenção diz respeito, e chegou aos dias de hoje numa situação lamentável, incapaz de prestar serventia para o objetivo com que foi concebida ou, até, para qualquer outro que se lhe quisesse adequar.

 

Incapaz, ao que consta, de recuperar o edifício, a autarquia delegou em privados para o fazerem a troco do naming do edifício. O nome de Rosa Mota ainda lá está, bem entendido, mas em letras tão minúsculas, sobretudo se comparadas com as garrafais “Super Bock Arena”, que mal se distinguem. Rosa Mota não gostou do quadro, principalmente por lhe terem proposto a coisa ao contrário, com maquete e tudo, ou seja, “Pavilhão Rosa Mota” em letras garrafais e “Super Bock Arena” em letras pequenas. Como direi? É mais que um desrespeito: é uma baixeza, é uma canalhice. Se eu fosse a Rosa Mota, exigiria que retirassem o meu nome do pavilhão. Era só isso. A dignidade das pessoas vale mais do que qualquer coisa, não tem preço.

 

Este caso mostra como os tempos mudam e como as massas perdem a sua memória histórica. Não existe isso de memória de um povo. Isso é coisa de livro de história e livros ninguém lê. E como não há app para isso, as novas gerações nem conhecem a Rosa Mota ao passo que da Super Bock são incondicionais fãs. No meio de todo este processo, acho estranho que a segunda maior autarquia do país não disponha de meios para manter ou recuperar as suas estruturas essenciais e acho que mais gente devia de achar isto estranho. Acho também que esta é mais uma parceria público-privada da qual conheceremos o verdadeiro alcance daqui a alguns anos, não agora. Guardarei este pensamento na gaveta para quando for útil. E acho que o caráter das pessoas é daquelas coisas que não vale a pena falar muito, não vale a pena a indignação e a fúria. Basta-nos sentar e esperar. O que é desprezível, abjeto e ignóbil acaba sempre por se revelar aos olhos de todos.

publicado às 21:11

Amazónia, imperialismo e PAN

O governo português, na pessoa dos seus mais altos representantes, é, em certos domínios, rápido e assertivo, contundente mesmo, no conteúdo e na forma como aborda determinadas situações internacionais. Ao ouvir as palavras que o seu ministro dos negócios estrangeiros proferiu, por exemplo, aquando dos momentos mais quentes, entretanto esfriados, da tentativa de golpe de estado na Venezuela, fica-se com a ideia de estarmos perante um representante de um país relevante no quadro internacional, tamanha foi a contundência empregue e o tom que até soava a ameaça. Presentemente, é pena que o governo português não estenda a sua eloquência ao drama que se vive no Brasil, país irmão de Portugal, onde um dos maiores patrimónios naturais mundiais é, neste momento em que escrevo, irremediavelmente destruído e, pelo contrário, escolha remeter-se ao mais gutural silêncio.

 

Podemos ser levados a pensar que esta diferença de comportamentos se deve à própria experiência deste governo de Portugal no que concerne a fogos florestais. Afinal, neste escasso período de quatro anos, sob o olhar e a responsabilidade deste governo, arderam tantos hectares de floresta quantos os que havia para arder, incluindo alguns de floresta milenar como o pinhal de Leiria, o que, à nossa escala, terá representado, não sei, talvez duas ou três Amazónias juntas. Mas desengane-se o leitor. A razão não é mera vergonha na cara ainda que essa seja mais que justificada.

 

A razão de ser deste comportamento dúbio é simples. O governo não serve em primeiro lugar o estado, o país ou o seu povo: serve prioritariamente os interesses do capitalismo mundial e do imperialismo. É o imperialismo que alimenta a revolta na Venezuela tentando colocar as suas unhas no petróleo daquele país. É o imperialismo que arma as populações, que forma e paga milícias populares. Por isso, o governo português apoia a revolta contra um estado soberano e um governo democraticamente eleito. Por isso, reconhece à margem de qualquer lei ou direito internacionais autoproclamados presidentes da Venezuela.

 

Do mesmo modo, é o imperialismo que, por ora, incendeia a Amazónia para expandir o seu negócio de exploração de gado e de plantações de cereais geneticamente manipulados. É o imperialismo que suporta e alimenta este governo absurdo, este presidente absurdo que desgoverna o Brasil, porque têm a promessa de altos dividendos económicos futuros. Por isso, o governo português, neste caso, mantém-se calado.

 

Bolsonaro foi eleito à custa de um golpe de estado descarado e sem vergonha movido pelo sistema judicial brasileiro e apoiado pelos media que derrubou um governo democraticamente eleito sob pretextos dúbios e absolutamente irrelevantes no contexto do país. Bolsonaro foi eleito tendo por base um programa político que se podia reduzir à frase “privatizar tudo”. O tudo incluía, evidentemente, a Amazónia. O mundo assistiu a tudo isto e achou piada. Agora lançam-se umas bocas para o ar e nada se faz. Porquê? Porque o mundo está, em geral, ao serviço dos interesses do imperialismo e é o imperialismo que está a queimar a Amazónia. Deixem-se de tretas e de hipocrisias.

 

Ai se isto estivesse a acontecer na Venezuela...

 

É por isso que me dá vontade de rir quando ouço André Silva, do PAN, os “ecologistas progressistas”, dizer que não é de esquerda nem de direita, que esses conceitos estão ultrapassados. Só há duas possibilidades para este André Silva: ou faz parte desta nova vaga de políticos que pretende enganar o povo com esta conversa de chacha “apartidária” ou trata-se, simplesmente, de um triste ignorante. Por ventura, será uma mistura dos dois. Infelizmente, parece ser essa a receita que o nosso povo mais gosta.

publicado às 10:51

Um prédio chamado Portugal

Nesta última semana, assistimos ao precipitar forçado de um desenlace no caso do prédio Coutinho, um caso que se prolonga há coisa de vinte anos mas do qual a maioria de nós apenas agora tomou conhecimento.

 

Corria o ano de 1972. O terreno do então mercado municipal da cidade era vendido em hasta pública a Fernando Coutinho, emigrante no Zaire, que, naqueles novecentos e setenta e cinco metros quadrados de área, edifica um prédio de imponentes treze andares que ficou conhecido pelo nome do seu construtor.

 

O edifício, erigido em pleno centro histórico da cidade, beijando uma das margens do rio Lima, levantou, logo desde o momento da sua construção, as mais variadas críticas, sendo que a primordial é absolutamente evidente: basta observar o panorama arquitetónico da cidade para identificar o desfeio estético que o gigante de treze andares provoca no casario histórico de Viana.

 

Foi, por isso, natural que, desde o primeiro momento, tenham brotado iniciativas para reverter a situação e demolir o edifício. Essas iniciativas começaram logo em 75 e estenderam-se até aos dias de hoje. A maioria dessas iniciativas foi frustrada por uma argumentação absolutamente pragmática: um país pobre como o nosso não poderia desbaratar o capital necessário quer para a demolição de um prédio de treze andares em perfeitas condições quer para indemnizar os muitos habitantes do edifício. E, assim, o conflito permaneceu em jeito de banho-maria até à viragem do século, mantido pelo pragmatismo inexorável da coisa. Na calda, todavia, medrava uma espécie de bactéria que crescia no silêncio, pela calada, à sombra quiça dos ideais puros e inocentes envolvidos.

 

No ano 2000, José Sócrates, então ministro do ambiente do governo de António Guterres, qualificava o prédio Coutinho, que já contava com um quarto de século em respeitável idade, como um “cancro e um aborto arquitetónico” e defendia abertamente a sua demolição. Reparem que José Sócrates foi o mesmo ministro do ambiente que achou bem, por exemplo, a construção do Freeport de Alcochete em plena zona de proteção especial do estuário do rio Tejo. Entretanto, Portugal ficou “de tanga” com os governos de Durão Barroso e Santana Lopes e o processo voltou a estagnar.

 

O avanço decisivo no processo de demolição do prédio Coutinho viria a dar-se em 2005 quando — adivinhem — José Sócrates ascende a primeiro-ministro. Em junho desse ano é declarada a utilidade pública do prédio Coutinho e a sua consequente expropriação com vista a construir — imagine-se! — um mercado municipal.

 

Depois de uma morosíssima batalha legal, que opôs os moradores e proprietários das frações do prédio Coutinho à câmara municipal de Viana do Castelo e ao governo, chegamos aos dias de hoje. A troco de uma verba irrisória que não lhes permite adquirir uma propriedade equivalente nem nos arredores de Viana, quanto mais no centro da cidade, os moradores estão obrigados a sair das suas propriedades, estando sujeitos às mais infames coações e intimidações, a última das quais por parte do atual ministro do ambiente que os acusa de serem os fora-da-lei em todo o processo.

 

Neste momento, sobram nove habitantes, já idosos, que resistem a sair. Desde esta semana, estão privados de água e comida, estão impedidos de consultar o seu advogado, ou de receber qualquer tipo de visita, ao mesmo tempo que o prédio começa a ser demolido com eles ainda no seu interior.

 

Reparem na justiça e na moralidade do processo. Parem um pouco, fechem os olhos e reflitam.

 

  • A câmara de Viana vendeu o terreno do seu mercado.

 

  • O construtor edificou um prédio respeitando rigorosamente a volumetria permitida pela câmara.

 

  • As pessoas adquiriram as suas habitações pagando o seu justo valor.

 

  • A câmara e o estado decidem que afinal mudaram de ideias e a coisa não está bem feita.

 

  • As pessoas são forçadas a sair e a abandonar os seus imóveis para se construir um novo mercado da cidade.

 

É ridículo. O prédio Coutinho é, na verdade, um prédio chamado Portugal apenas possível porque nós, portugueses, somos, acima de tudo, pessoas de bem e pessoas pacíficas.

publicado às 10:24

Triste insígnia

Discutir uma nova lei de bases da saúde ao mesmo tempo que se encerram rotativamente as urgências das maternidades de Lisboa por falta de pessoal é algo que roça a obscenidade. Faltava dizer isto sobre o tema. Está dito.

 

Os últimos anos já nos habituaram à vergonha que, por altura do verão, afeta os serviços de saúde do país, com hospitais e centros de saúde a funcionar a meio gás com falta de pessoal para trabalhar, com doentes a acumularem-se nos corredores à espera de atendimento ou, simplesmente, esquecidos em rios de macas mal encaixadas umas nas outras. Este ano, acrescenta-se o encerramento rotativo das urgências de obstetrícia de quatro maternidades de Lisboa, a área mais sobrelotada do país.

 

É que — venderam-nos essa brilhante ideia — em Lisboa, como no resto do país, os serviços foram sendo concentrados, os hospitais convertidos em centros hospitalares gigantes servindo áreas cada vez maiores e números de utentes cada vez mais exorbitantes. Era pela qualidade do serviço, diziam-nos então. Hoje vemos que não. Vemos que os serviços perderam qualidade, eficiência e, porque não dizê-lo, higiene. Hoje vemos que a ideia era tão somente reduzir pessoal. O resultado está aí bem à vista de todos, mas nós, povo, ainda vamos acabar revoltados com os médicos e o seu irresponsável gozo sazonal de férias.

 

Mas volto ao meu ponto inicial: discutir uma nova lei de bases da saúde neste contexto é surreal. Para isto, qualquer lei serve. Para destruir e descredibilizar o sistema nacional de saúde qualquer coisa serve. Como escrevi no post anterior, era com isto que PCP e Bloco se deviam preocupar. Ah, mais uma coisa: segundo notícias da manhã, parece que nem a eliminação das taxas moderadoras irá ser conseguida pela esquerda. Nesta questão da lei de bases da saúde, parece que, uma vez mais, o PS prepara-se para se deitar com a amante PSD. Não há nenhum mal nisso, bem entendido: viva o amor! O problema é que, para PCP e Bloco, sobra apenas o papel daquele género de pessoa que não se dá ao respeito e que ninguém respeita, constantemente enganada e traída, mas que sempre volta, que sempre tenta uma vez mais. É uma imagem que ficará como triste insígnia destes quatro anos de “geringonça”.

publicado às 10:08

Falta coragem a quem era importante que tivesse coragem

O que aprendemos com esta crise política?

 

  1. Que a palavra de certos políticos vale zero, que são mentirosos, intrujões, sem caráter e sem escrúpulos. O que aconteceu foi tenebroso. Desde as mentiras descaradas ao povo sobre as “boas contas” à inversão da palavra dada num par de dias, particularmente a quem usa da palavra para influenciar as populações e liderar o país é desprezível. Termos o país entregue a seres humanos tão reles como estes é dramático.

 

  1. Que PS, PSD e CDS — reflexo da sociedade que os elege — não têm um pingo de respeito pelos professores e que, com isto, quer queiramos quer não, moldam o tipo de homens e de mulheres que teremos na sociedade de amanhã.

 

  1. Que BE e PCP, tendo sido coerentes em todo o processo, não conseguem esconder o alívio pela mudança de posição de CDS e PSD e por não terem que enfrentar eleições antecipadas neste momento.

 

A dialética sempre foi, desde a antiguidade clássica, uma disciplina estrutural para se ilustrar os cidadãos. A capacidade de bem falar, de argumentar, de defender uma posição, de seduzir o auditório e o próprio opositor, de ganhar uma disputa através da palavra, era vista como uma ferramenta essencial para o Homem, visto pelos gregos como um animal eminentemente político.

 

Quer-me parecer que temos demasiado disto nos dias que correm. Temos demasiada dialética, demasiada palavra e pouca ação. Demasiada justificação do injustificável. No rescaldo desta crise política, o que se me afigura é uma superlativa falta de coragem, sobretudo a quem importava que tivesse alguma coragem. Perante a ameaça de eleições antecipadas de Costa, do alto da sua posição privilegiada que as sondagens lhe parecem conferir, o parlamento estremeceu de medo, desde a direita até à esquerda. Ninguém enfrentou as ameaças de Costa com força de caráter, com inabalável convicção. Ninguém. Todos tremeram de uma ponta à outra.

 

BE e PCP temem pelo fim de um mísero poder que ninguém sabe muito bem quanto vale exatamente, mas que já toda a gente adivinha que o que vale é muito pouco. Tremem os dois como verdes varas. Dizem que ainda há muito a fazer. Mas quem pensam eles que enganam? Se ainda havia alguma coisa a fazer ou a conquistar a este governo burguês, sempre de mãos dadas com o poder económico, com o resultado desta crise deixou de haver. Aliás, para sermos mais rigorosos, depois da aprovação do derradeiro orçamento de estado, última oportunidade perdida para a esquerda poder afirmar as suas posições, já não restava grande coisa a fazer. Escrevi-o aqui várias vezes e repito-o.

 

Falta muita coragem, sobretudo a quem era importante que tivesse coragem, entenda-se: BE e PCP. E isto é algo que até um cão vadio fareja à distância mais depressa do que a um pedaço de toucinho gorduroso esquecido na soleira da porta de um talho. E é um funesto presságio para as eleições que aí vêm.

publicado às 13:16

Quem se mete com patifes...

Quando o país foi mergulhado na última crise de tesouraria, motivada por andar a desbaratar dinheiro em obras públicas e em linhas de crédito a bancos a mando da União Europeia, sublinhe-se, os governos recorreram aos mesmos de sempre para sair do poço sem fundo onde se metera. Particularmente, a classe dos Professores, bem como os demais funcionários públicos, viu o seu tempo de serviço congelado durante mais de nove anos para efeitos de progressão das carreiras. Foi à custa desta e de outras extorsões sobre o povo trabalhador que o Estado foi capaz de pagar os seus próprios erros de gestão e os auxílios, sempre abundantes, à banca e ao setor empresarial do país.

 

Teria sido da mais elementar justiça que, tendo o país saído da situação de desequilíbrio de contas e de crise de tesouraria em que se encontrava, tendo invertido a sua trajetória económica — este governo passou os últimos quatro anos a gabar-se disso mesmo —, que os Professores e demais funcionários afetados tivessem exigido o pagamento de todo o dinheiro retirado ao longo da última década. Nada disso foi feito. Para os trabalhadores, note-se, nunca há contratos a cumprir, o que se rouba não se devolve. Ao invés, os Professores exigiram simplesmente a contabilização do tempo de serviço congelado para efeitos de progressão da carreira e que essa contabilização pudesse ser gradual ao longo dos próximos anos. É isto uma reivindicação não razoável? É isto uma posição inflexível? Para o governo parece que é.

 

As voltas e voltinhas que este processo já deu ao longo dos anos que já leva não são de somenos relevância. Primeiro, o governo disse que sim senhora, que ia recuperar o tempo de serviço, só que não era para já, que ficava para o ano. Depois, ficava para o outro, até que os parceiros de esquerda o obrigaram a inscrever a medida no orçamento de estado. Mas quando que o orçamento era para ser cumprido, eis que na recuperação do tempo de serviço o do não era do era de e esse de fazia toda a diferença porque implicava que o governo não tinha que recuperar todo o tempo de serviço congelado mas só algum. Numa guerra facialmente linguística mas visceralmente de caráter, porque é mesmo disto que se trata, de falta de caráter do governo, o executivo, obrigado pelo Presidente da República, finge negociar com sindicatos e aprova unilateralmente um decreto que, dos mais de nove anos de tempo de serviço, recupera apenas cerca de dois.

 

Esta semana, porém, o parlamento obrigou o governo a fazer o que está correto e a recuperar todo o tempo de serviço. Mas esperem: isto não fica assim. Em vez de respeitar a casa da democracia, Costa e Centeno não aceitam a decisão democrática e ameaçam com a demissão no caso do diploma ser aprovado! Como que por artes mágicas, Centeno surge nas televisões afirmando que esta medida faria com que a despesa passasse de duzentos para oitocentos milhões! Notável!

 

A ciência destes números, ninguém percebe. Imagino que a ideia não seja entender. Porque, se entendêssemos, surgiriam de seguida outras questões como: e o dinheiro para resgatar bancos ou para os privatizar? Quanto custam essas operações? Quanto custa ao estado a privatização da TAP e dos CTT? Quanto vai custar, por exemplo, a mais recente brincadeirinha da Lone Star no defunto Banco Espírito Santo? Já foi contabilizada para este ano ou é só para o próximo? Ah, claro, essas matérias nunca entram nas contas do orçamento do estado, nós só sabemos delas porque as pagamos mais tarde.

 

Nada disto me surpreende. Absolutamente nada. Neste meu espaço, discorri copiosamente sobre este governo, sobre a sua natureza e a natureza do PS e o que está a suceder apenas me vem dar razão. Esta solução governativa só chegou onde chegou porque o PCP e o BE fizeram de tudo para a aguentar começando por aceitar apoiar o governo a troco de um conjunto de reivindicações absolutamente minimal. E viu-se, claramente, ao longo da governação, como o governo sempre desprezou abertamente a esquerda nas questões verdadeiramente estruturantes e essenciais e se aliava à direita no fundamental como nas questões europeias e no código de trabalho.

 

PCP e BE tudo fizeram para que o governo chegasse até ao fim, rebaixaram-se tanto quanto podiam, muito mais do que deviam, ao ponto de aceitar que este governo fizesse aquilo que consideravam inadmissível aos outros governos, particularmente ao antecedente de direita. No fim de contas, todos estes esforços revelaram-se inglórios por mero taticismo eleitoral da parte de António Costa, que vê aqui uma oportunidade para tentar uma maioria absoluta.

 

Seria outra coisa de esperar, todavia? Os sinais foram surgindo, um atrás do outro e, a cada um deles, PCP e BE foram fechando os olhos. Foi permitido também que o PS dominasse a agenda, controlasse a geringonça do primeiro ao último dia e dela recolhesse todos os frutos. Sempre aqui afirmei, e afirmarei novamente uma última vez, a minha total estupefação perante o facto do PS, estando completamente dependente do PCP e do BE para governar, conseguir ser a parte dominadora no governo. Como o PS conseguiu dominar o PCP e o BE sendo efetivamente a parte mais fraca na coligação é, para mim, espantoso. Os resultados estão à vista.

 

Não podemos, pelo exposto, ter pena dos partidos de esquerda. Quanto muito, podemos admitir que foram traídos pela sua inexperiência a estes níveis ou por alguma inocência. Com franqueza, porém, esperaríamos nós semelhante complacência se acaso nos envolvêssemos com patifes, oportunistas, miseráveis e acabássemos atraiçoados? Não. Claro que não. E isto é só o início. Vêm aí as eleições.

publicado às 08:09

Diz-me com que andas e dir-te-ei quem és

Desculpem-me os meus amigos de esquerda. Desculpem-me particularmente aqueles, que muito prezo, que ainda se desmultiplicam em desculpas para este governo, em ensaios de defesa desta “geringonça” que logrou estabelecer neste país o que a direita que a precedeu tanto tentou, que continuam a desenrolar putativas boas intenções que só subsistem, ainda, nas suas próprias cabeças. Desculpem-me.

 

Este governo é um engodo tão grande que daria uma boa anedota se todos estivéssemos mais atentos. É que não há uma coisa que o executivo se proponha a fazer que efetivamente leve a cabo, assim, de forma limpa e transparente. Pelo contrário, depois de anunciar pomposamente as medidas, tudo faz para não as cumprir.

 

Não me canso de evocar, aqui, em todas as oportunidades que tenho, a baixeza das cativações orçamentais. Em todas as áreas, indiscriminadamente, o governo acorda com os seus interlocutores parlamentares determinados gastos orçamentais associados a objetivos negociados e bem definidos, para depois reter verbas e não autorizar os gastos acordados, faltando com a palavra dada. Foi assim em diversas áreas, ano após ano, orçamento após orçamento — na educação, na saúde, na justiça, nos serviços públicos em geral —, mas talvez a mais simbólica que tenha vindo ao espaço mediático tenha sido a questão da ala pediátrica do Hospital de S. João no Porto. A situação é tão inenarravelmente miserável que continua a ser discutida no orçamento de estado deste ano depois de já ter sido incluída no do ano passado. Continua a ser discutida, bem entendido, porque o governo não cumpriu com o que se comprometeu.

 

O azar dos utentes da ala pediátrica do S. João, bem o sabemos, é não se constituírem como banco ou fundo de investimentos. Se assim fosse, ninguém tenha dúvidas, quebrar-se-iam nesse mesmo momento todas as barreiras orçamentais, todos os limites do défice e investimentos extraordinários seriam autorizados com urgência. Também aqui se vê bem para quem é que este governo governa.

 

Mas as coisas não ficam por aqui. Parece não haver término para a vilania orçamental deste executivo. Viemos a saber no final desta semana que até mesmo aquela medida dos manuais escolares gratuitos — aquela singela medida de natureza frívola, de alcance pueril, que não aquece nem arrefece no contexto dos graves problemas estruturais que afetam a nossa débil sociedade, com vestigial impacto orçamental —, tem sido cumprida de forma impostora, com a generalidade das livrarias credoras de altos valores referentes aos livros trocados pelos vouchers. Muitas ameaçam não alinhar mais neste embuste já a partir do próximo ano letivo.

 

Não há nada que seja implementado por este governo de forma limpa e transparente. Ao longo desta legislatura, o governo tem-se comportado como uma pessoa falsa, de mau caráter e sem escrúpulos. Diz que faz uma coisa e não faz. Promete uma coisa e esquece-se, diz que não foi bem assim. Chegámos ao ponto de discutir posições de vírgulas no texto orçamental como reflexo inequívoco da má fé que está em jogo.

 

Palavra que não consigo entender como, à esquerda, tanto se defende uma pessoa (coletiva) desta baixeza moral, deste calibre humano. Não consigo entender como se continua a negociar, sequer a falar, com este governo. O maior problema é que, cada dia de vida a mais desta “geringonça”, cada dia mais que se passa a lidar com este governo, a esquerda vai-se conspurcando de um bafio, de um bolor, que não sairá com um simples banho. Já dizia Goethe, e o povo antes dele, Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és.

publicado às 09:58

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