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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

O clã Bach e a perceção do sucesso

Pensem no universo de todos os melómanos deste mundo, daqueles com, pelo menos, médios conhecimentos ou razoáveis noções em música clássica. Imaginem que escolhem um elemento deste conjunto, ao acaso, e lhe pedem que enumere os três compositores que considera serem os mais marcantes na história da música, aqueles que, independentemente das suas preferências particulares, considera ser os mais revolucionários, os percursores da técnica, os definidores de um paradigma musical. Se tudo isto fizermos, é muito provável que, entre os três nomes da lista, conste o nome de Johann Sebastian Bach, o mestre dos mestres do Barroco.

 

É natural que assim aconteça. O contrário implicaria que o nosso melómano escolhido não entendesse muito do assunto ou estivesse investido de uma postura sobre o tema intelectualmente pouco séria. Com efeito, Johann é hoje em dia um dos compositores mais tocados, mais estudados e mais reconhecidos globalmente. Sobre a sua obra inúmeros outros grandes compositores nasceram e sobre o seu legado ergueram-se novas linguagens musicais. Não existe um aprendiz de música, seja qual for o seu instrumento de eleição, que não dedique uma considerável parte do seu tempo de estudo às obras originais de Bach ou a adaptações, nos casos em que Bach não tenha composto particularmente para esses instrumentos.

 

É curioso perceber que esta notoriedade contemporânea de Johann, que é extraordinária, não tem qualquer relação com a fama que o compositor (não) gozou em vida. Johann Sebastian Bach foi um dos compositores mais profícuos de toda a história da música. Do acervo da sua obra constam mais de mil composições conhecidas de índole sobretudo sacra, ele que foi mestre de capela das principais catedrais alemãs do seu tempo. Sublinho aqui a palavra 'conhecidas'. Efetivamente, o tempo de Johann era o tempo da improvisação por excelência e não o tempo da escrita e reprodução rigorosas das obras em papel de pauta. Esse tempo é posterior ao de Johann e, por isso, é natural que às tais mais de mil composições que se conhecem, possam ser adicionadas outras tantas, pelo menos, ao número de obras que o compositor terá, de facto, composto ao longo da sua carreira.

 

Como dizia, não perdendo o fio à meada, é curioso perceber que Johann foi, em vida, um compositor de popularidade residual. O povo, o mais ilustrado e o nem tanto, considerava-o um compositor austero, rígido, demasiado ortodoxo, agarrado a um contraponto antigo que já estava a sair de moda e que já ninguém estava interessado em ouvir. Johann, bem entendido, era um reputado professor da arte da improvisação e do contraponto e, enquanto compositor, era bastante considerado nas esferas religiosas onde essencialmente se movia. O que Johann não era, e nunca foi, era um compositor popular. Nenhum nobre encomendava as suas obras para seu entretenimento privado. Nenhum mecenas mostrou interesse na sua música. A isto Johann referia-se com desprezo, não se sabe se genuíno ou se por despeito, dizia qualquer coisa como que a sua música servia para agradar a Deus e a Deus apenas e se acontecesse ser apreciada pelo público, sendo absolutamente indiferente, seria tanto melhor.

 

Johann, fervoroso devoto como era, cumpriu a sua “obrigação” conjugal bíblica a preceito e produziu abundante prole. De entre os seus vinte filhos provindos dos seus dois casamentos, alguns seguiram as pisadas musicais do pai prolongando, aliás, uma tradição que já começara no trisavô de Johann, Veit Bach. Os dois que obtiveram maior sucesso foram Carl Philipp Emanuel Bach e Johann Christian Bach. Ao contrário do pai, Carl Philipp e Johann Christian abraçaram as novas tendências musicais e o novo estilo ao qual se chamaria de Classicismo e que viria a substituir de vez o velho Barroco que já se prolongava por quase dois séculos no panorama musical europeu. Os dois, mas sobretudo Carl Philipp, granjearam incomensurável fama, sendo constantemente solicitados e patrocinados para animar as festas dos nobres e dos abastados da sociedade alemã setecentista. Carl Philipp e Johann Christian eram, assim, as estrelas pop do seu tempo, contrariamente ao pai, Johann, que era, quanto muito, um artista menor conhecido apenas no austero contexto religioso luterano.

 

Passados mais de duzentos anos, falar em Bach é falar de Johann Sebastian Bach. A História dedicou a Carl Philipp e a Johann Christian honrosas notas de rodapé nas páginas que abordam a música na segunda metade do século XVIII. Dedicou-lhes isso e nada mais do que isso, ao passo que ao pai, Johann Sebastian, entregou a imortalidade dentro de uma taça dourada. Carl Philipp e Johann Christian também são estudados e tocados, é certo, mas apenas circunstancialmente e, sobretudo, em certos círculos pelos amantes exaustivos da época. Carl Philipp, inclusivamente, é hoje mais conhecido por um tratado que escreveu sobre como tocar instrumentos de tecla, cravo, clavicórdio e piano forte, leitura obrigatória para todos os pianistas ainda hoje, do que propriamente pelas suas composições musicais.

 

O exemplo do clã Bach não é original e, aliás, vai-se repetindo ao longo da história da música, da pintura, da literatura, da arte em geral, mas também em outros domínios muito diversos da atividade humana, como a ciência. Não raras vezes, o valor das coisas, isto é, a sua relevância, a sua influência na vida, nas sociedades, para as gerações vindouras, parece ser inversamente proporcional ao sucesso que têm e à notoriedade com que são recebidas. As massas parecem atribuir um maior valor àquilo que as entretém, àquilo que é novo, que soa a novo ou que, simplesmente, parece novo, talvez porque o que parece novo melhor entretém. O sucesso é medido na efémera escala do entretenimento. Cada vez mais, os artistas atingem níveis cada vez maiores de sucesso para serem completamente esquecidos no final de uma década.

 

A história do clã Bach faz-me refletir sobre o que me rodeia. Nesta sociedade cada vez mais dedicada ao entretenimento vazio, cada vez mais fugaz, sem memória e sem compromisso coletivo, sem solidariedade, enfim, se acaso nos fosse dado a escolher, creio que a maioria de nós escolheria ser Carl Philipp ou Johann Christian, em vez de Johann Sebastian Bach. O nosso propósito individual e de vida é mesmo esse. Nascemos e morremos para este sucesso sem significado e mais nada. Nascemos e morremos para ter sucesso e ter sucesso, para nós, é ser um contemporâneo bobo de corte, é entreter, é ser ator, cantor, modelo ou jogador da bola. É aparecer. Porquê? Não interessa. O que fazemos com esse sucesso? Não interessa. O sucesso parece ser coisa que é fim em si mesma. E nós sentimo-nos bem sucedidos, orgulhosos de nós próprios.

publicado às 20:48

Fugir dos nossos obstáculos

“Don't you ever get the feeling that all your life is going by and you're not taking advantage of it? Do you realize you've lived nearly half the time you have to live already?”
“Yes, every once in a while.”
“Do you know that in about thirty-five more years we'll be dead?”
“What the hell, Robert," I said. "What the hell.”
“I'm serious.”
“It's one thing I don't worry about,” I said.
“You ought to.”
“I've had plenty to worry about one time or other. I'm through worrying.”
“Well, I want to go to South America.”
“Listen, Robert, going to another country doesn't make any difference. I've tried all that. You can't get away from yourself by moving from one place to another. There's nothing to that.”
“But you've never been to South America.”
“South America hell! If you went there the way you feel now it would be exactly the same. This is a good town. Why don't you start living your life in Paris?”
― Ernest Hemingway, O Sol Também se Levanta

publicado às 14:12

Posse

Existe um deus único que governa sobre todos os mortais. Um deus de muitos nomes, escritos em todas as línguas e dialetos falados no mundo. No ocidente chamam-lhe Deus, simplesmente. Dizem que é omnipresente, omnisciente e omnipotente. Tudo vê, a tudo assiste, tudo conhece, tudo sabe e tudo pode. As pessoas, por toda a parte, acorrem a templos para o venerar e para cair nas suas boas graças. Para pedir. Um favor para si e para os seus, a proteção do que é seu. Precisam da intervenção dele para isso. E se forem atendidas nas suas preces nada mais importa. Continuam a pedir. Ainda que ao lado, justamente ao lado, iguais pedidos não sejam igualmente atendidos, é irrelevante. O que releva é o próprio. É a noção de que nós sim! Nós é que somos especiais aos olhos dele. A relação que estabelecemos com deus diz muito sobre a relação que estabelecemos connosco mesmos, com os que nos rodeiam e nos são semelhantes enquanto membros da espécie. A semelhança termina, contudo, aí, aos nossos olhos. Pois cada um de nós se entende mais especial e mais digno do que qualquer outro que imediatamente se nos segue. Não fosse deus uma cínica construção à nossa imagem. E, portanto, o deus do Homem tem implicações diretas e concretas em muitas outras dimensões: a sociedade do Homem, a democracia do Homem, o caminho do Homem, a liberdade do Homem. Falta apenas dizer ao Homem que o seu deus tem um nome pelo qual deve ser conhecido. Posse.

publicado às 16:31

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