O caso Caixa Geral de Depósitos (CGD) tem que forçosamente ser contemplado desde longe. De perto, com o nariz colado ao plasma ou ao LCD, as notícias que se sucedem afogam-nos num enredo burlesco, de conteúdo pouco relevante, que nos afasta do essencial, não nos permitindo obter um entendimento claro sobre os acontecimentos. A sequência dos eventos impinge-nos uma opinião genérica de genuína repulsa por todos os intervenientes sem distinção. Na verdade, não conseguimos distinguir este, daquele ou daqueloutro e a todos condenamos segundo os mesmos genéricos princípios e isso é, na realidade, não condenar ninguém, é deixar tudo na mesma.
Se dermos uns passos atrás, todavia, o caso CGD reveste-se todo ele de um simbolismo sinistro relativamente a um retrato mais apurado da sociedade em que vivemos, daquilo que coletivamente somos, como que um diagnóstico cabal do estado doente em que nos encontramos.
Damos, portanto, dois passos atrás sobre a sucessão dos episódios da novela para produzirmos um melhor entendimento.
Vamos ao princípio: o caso começa com o anterior governo, o qual se empenhou em liquidar o banco público. PSD e CDS tudo fizeram em termos de influência em gestão danosa para depauperar a Caixa — em tempo oportuno, alertei para este facto — num misto de ações injustificáveis de suporte à banca privada e a outros intervenientes do setor. O objetivo era claro: deixar a Caixa num tal lastimável estado que não pudesse subsistir hipótese alguma para além de a entregar de mão beijada nas mãos do capital privado. O objetivo da privatização da CGD era tão claro que o guião seguido pelo governo anterior foi precisamente o mesmo que foi aplicado a outras empresas entretanto privatizadas, das quais a transportadora aérea TAP é exemplo último.
Quando o atual executivo assume funções vê-se confrontado com esta situação de quase não retorno. Podemos especular que, acaso o governo não tivesse que responder perante os partidos que, à sua esquerda, o suportam parlamentarmente e para os quais a banca pública assume capital importância, talvez não tivesse sido tão enérgico e profícuo em resolver o imbróglio e, por esta altura, já a CGD não seria mais um banco público.
Foi neste contexto que o atual governo chamou António Domingues para desenhar um plano de recapitalização da CGD e recuperar o banco. António Domingues, vindo da banca privada — sempre esta relação suja de promiscuidade entre o estado e o setor privado —, exigiu — qual eleito pelos deuses —, contrapartidas muito curiosas para assumir funções, as quais incluíam um estatuto diferente dos demais gestores públicos que lhe permitisse, a si e à sua equipa, evitar uma declaração pública de rendimentos. Ao que tudo indica, o Ministro das Finanças terá concordado com tais exigências sob o pressuposto de conseguir aprovar no parlamento essa alteração à lei, facto que não veio a suceder.
Neste ponto, observe-se a moralidade decadente dos intervenientes, ainda que agindo dentro das fronteiras da lei.
Todavia, PSD e CDS, os mesmos partidos responsáveis pelo criminoso processo que conduziu a este lamentável estado contemporâneo da banca pública, têm alimentado uma ordinária ofensiva ao Ministro das Finanças com base numa interpretação de que este terá mentido numa comissão de inquérito. O festival protagonizado inclui a falta de respeito ao parlamento e ao Presidente da Assembleia da República, segunda figura do Estado, o obstar aos trabalhos da comissão de inquérito e a inusitada demissão do presidente da referida comissão.
Observe-se — palavra que isto nunca me deixa de espantar — o tempo de antena, a voz, que é dada pela comunicação social tanto a PSD como a CDS em todo este processo. É o mesmo que uma igreja fazer de um criminoso o seu novo pastor para pregar moralidade aos demais.
Ao mesmo tempo, António Domingues vai fornecendo informações avulsas sobre as comunicações que terá trocado com o Ministro das Finanças. Por que razão não as forneceu à comissão de inquérito em que foi ouvido, ninguém percebe.
O que para mim resulta de mais extraordinário depois de tudo isto é o facto de que nenhuma estrutura do país parecer estar preocupada com o facto de António Domingues não querer revelar a extensão do seu património. Não há vivalma que se interesse por isso. O que será que os bens de Domingues poderão revelar? Que “benfeitores” estará Domingues a proteger? Que sórdidas relações com os poderes do mercado de capitais poderão ser reveladas com a sua declaração de bens?
Uma coisa é certa: se acaso se tratasse de um cidadão comum a exibir um padrão comportamental deste tipo seguramente que a sua vida estaria já completamente escalpelizada na praça pública.