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Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Quino. O artista. O homem. A sociedade.

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image: ogimg.infoglobo.com.br

 

A morte dos grandes artistas suscita-me inevitavelmente sentimentos de grande perplexidade perante as grosseiras incongruências do mundo. Ontem, a notícia da morte de Quino, o genial cartoonista criador da Mafalda, foi mais um pretexto para hoje eu acordar em plena convulsão interna.

 

Em primeiro lugar, importa que percebamos o que é que concedeu a Quino a sua propriedade de genial, como referi. Frequentemente, temos tendência a associar o genial ao domínio da técnica, à inovação, à novidade, sobretudo na era contemporânea, fortemente marcada pelo marketing, pela publicidade e pela propaganda. Mas serão mesmo estas as condições para a genialidade? No caso em questão, horas após o falecimento de Quino, terão sido estas as características que fizeram dele um génio intemporal? Eu acho que não.

 

É um facto que Quino dominava genialmente a técnica e também terá sido um inovador no seu tempo, disto não poderei opinar com propriedade pois não sei o suficiente sobre a área, mas admito que sim, dou isso de barato. Mas o que fez da Mafalda o símbolo que ainda hoje é, um símbolo da liberdade, da igualdade, da paz, do movimento feminista, não foi nada de natureza técnica ou publicitária: foi a mensagem veiculada que era própria, que era autêntica e genuína. O elemento diferenciador, o passaporte para a eternidade, é a mensagem.

 

As perguntas que Mafalda fazia em meados dos anos sessenta continuam igualmente válidas hoje em dia. Permanecem quase que imutáveis, como se a evolução do mundo não lhes conseguisse dar resposta. Em entrevista, Quino costumava dizer que quando começou a desenhar tinha a esperança de conseguir mudar o mundo. Lamentavelmente, o mundo mudou, mas para pior.

 

Em segundo lugar, algo que estou sempre a sublinhar quando um génio desta estirpe nos deixa, é a comoção mediática generalizada, a elevação do homem a uma espécie de estádio superior, ao qual justamente deve pertencer, pelo alcance da obra feita em vida. Não consigo de deixar de apontar o dedo à imensa hipocrisia que inunda a comunicação social e a sociedade, uma hipocrisia que permite, em simultâneo, elogiar a pessoa e a obra e continuar a alimentar as lógicas de uma sociedade cada vez mais desigual, cada vez mais injusta e exploradora. É difícil de entender como é possível alinhar neste jogo duplo e, nestes momentos, é quase como o assumir de uma contradição gritante entre os princípios assumidos e escolhidos para se viver a vida e os princípios desejáveis da moralidade ou da ética.

 

Quino morreu. Celebramos a sua vida, mas a vida que levamos e vamos construindo coletivamente é contraditória com o seu legado.

publicado às 09:07

Se tudo é, então nada é

No início de uma madrugada igual a tantas outras, entretive o espírito com um poema que me chegou ao olhar. Era um conjunto de frases elegantes, construídas com belas palavras. Falava de amor — claro, o omnipresente amor! —, dois amores, em verdade, que se confundiam: um amor carnal e um amor mais abstrato do que o primeiro, incorpóreo, por ter como objeto de afeição, nada mais, nada menos, que uma cidade. Isso mesmo: dois amores que se misturavam num só numa efervescência de palavras belas.

 

A leitura deste poema produziu em mim aquele sentimento de satisfação incompleta, um certo contentamento imperfeito, tão familiar, tão banal nos dias de hoje. Deem-me um desconto: já sou suficientemente velho para habitar em mim uma permanente impressão de que nada é novo e que tudo são variações mais ou menos descaradas de temas já amplamente tratados no passado.

 

A minha curiosidade prendeu-se, pois, não no conteúdo mas na forma do poema, mais precisamente na ausência de forma ou estrutura, sem métrica ou qualquer tipo de regularidade silábica ou a nível da rima. Aquele poema seria, assim, uma espécie de construção em verso livre. Sim: desta maneira não nos comprometemos e estamos sempre certos.

 

O que é certo é que a coisa fez germinar em mim uma dúvida fundamental: deste modo, sem regularidade que me valesse, sem estrutura para me dar um chão, como poderia eu, um leigo, qualificar o que havia lido como poesia? É que hoje em dia já ninguém escreve sonetos ou odes, ninguém perde tempo a contar sílabas, a acomodar rimas interpoladas ou cruzadas, nem a submeter-se a qualquer tipo de estrutura ou forma. O verso livre é a expressão, na poesia, desta filosofia de liberdade que alcança todas os braços da arte e se liberta com violência das restrições da forma, num culminar de toda uma evolução iniciada desde o Renascimento. Expressões similares encontramos também na pintura, na escultura, no bailado ou na música.

 

Liberdade, liberdade, liberdade! Liberdade! Foi este o caminho.

 

Ou não?

 

O problema é este: se tudo é passível de ser considerado como poesia, se tudo é poesia, se tudo é poema, então… nada é. Pensem nisto.

 

Quase tudo é definido por negação. Sabemos o que as coisas são, não através de uma epifania qualquer que nos bate nos sentidos da alma mas através do que não é. O que não é define o que é. Se tudo é poesia, então nada é poesia, esvazia-se o conceito, deixa de ser relevante a qualificação. Se qualquer sarrabisco numa tela é pintura enquanto arte, então nada é pintura. Se qualquer conjunto aleatório de sons é qualificado como música contemporânea, então até o barulho produzido pelos automóveis na hora de ponta pode ser qualificado como música e, portanto, nada mais é música porque tudo o é. Se qualquer aglomerado de pedras é escultura, então nada mais é, nada mais é escultura. É tudo uma expressão subjetiva da atividade humana de valor relativo às impressões e não à técnica que, mais não é que o domínio da forma que perece, que deixa de existir.

 

A forma é, pois, importante. As regras são importantes. As restrições à liberdade, também na arte, são determinantes para dotar o ser humano de liberdade, precisamente, na criação. A arte mostra-nos como a liberdade sem limites é um método infalível para coartar a própria liberdade, por paradoxal que isto possa soar. Se quisermos matar a criação humana, basta dar-lhe toda a liberdade, destruir as estruturas, matar as formas. Veja-se como é infértil a arte contemporânea, sobrevivendo, envergonhada, sem o assumir, à custa das formas célebres do passado. O verso livre é infértil, assim como as expressões contemporâneas da música, da pintura ou da escultura, perfeitamente incompreendidas por um público sem norte. Porque sem forma, não há arte. Sem restrições à liberdade, não há liberdade. Porque se tudo é, então nada é.

publicado às 18:39

Andamos a pregar aos peixes e ainda não demos por isso

Sermão de Santo António aos Peixes

image: oamarense.b-cdn.net

 

De tempos a tempos retomo o pertinente tema da educação e da instrução dos nossos jovens. Será que temos consciência do que andamos a ensinar? Melhor: será que temos consciência da “bagagem” cultural com que um jovem sai do sistema educativo de que tanto nos orgulhamos? Esqueçam as pedagogias. Concentrem-se na essência. Sejamos muito pragmáticos, tanto quanto seja humanamente possível. Temo que é demasiado o tempo em que vivemos alimentando uma mentira,  dentro de uma bolha de ilusão que, mesmo que queiramos genuinamente dela sair, rebentar a bolha para observar o real com os nossos próprios olhos, não seremos capazes de distinguir a verdade da mentira, a realidade da ilusão.

           

Falava ontem com amigos estrangeiros sobre os atos de vandalismo que mancharam o final da semana, particularmente os estragos que fizeram à estátua do nosso Padre António Vieira no Rossio. Julgaram eles inicialmente esses atos na mesma proporção com que observaram os outros, mundo fora, particularmente nos Estados Unidos da América, e foi preciso que lhes explicasse que não era exatamente a mesma coisa. Sendo certo que todos estes atos de vandalismo partilham uma aguda irracionalidade, sendo certo que procuram qualquer símbolo do colonialismo e da opressão como bode expiatório para o despejar de uma fúria coletiva, a verdade é que a figura do Padre António Vieira não pode ser colocada no mesmo saco que generais esclavagistas do sul na guerra civil americana, colonialistas ingleses ou, até mesmo, o próprio Cristóvão Colombo.

 

Missionário português do século XVII, o Padre António Vieira foi um revolucionário que se destacou, naquele tempo, como o maior defensor dos povos indígenas do Brasil, lutou contra a escravatura, a sociedade de classes e contra a inquisição da “sua” igreja, entre muitas outras injustiças a meias entre a monarquia e a religião. O Sermão de Santo António aos Peixes destaca-se entre a sua vasta produção escrita como uma obra-prima fundamental da história das letras portuguesas, uma obra revolucionária que regista muito daquele que era o pensamento avançado e progressista do autor.

 

Ao espanto inicial dos meus interlocutores seguiu-se a natural exclamação: «quem fez aquilo à estátua do Padre com os três meninos indígenas seguramente que desconhece, seguramente que ignora!». Pois, pois, pois ignora. Ignoravam eles, os meus amigos, que o Sermão de Santo António aos Peixes é obra de estudo obrigatório no ensino secundário. Pois é. Mas aqueles, os que fizeram aquilo à estátua, não sabiam.

 

O que ensinamos nós aos nossos jovens? O que é que eles aprendem? De que adiantam as médias, os rankings, os números, as metas europeias, os “sucessos” escolares, os aproveitamentos, os acessos à universidade? O sucesso escolar está aqui, esteve esta semana no Chiado quando um certo conjunto de pessoas, as quais, provavelmente, tiveram contacto com a obra e a figura do Padre António Vieira, mostrou tudo aquilo que (não) aprendeu na escola. A vida real, nas ruas, a forma como nos comportamos, como nos relacionamos uns com os outros, como pensamos e questionamos o mundo, o que exigimos desta nossa sociedade, o que ousamos sonhar, tudo isto constitui o nosso verdadeiro diploma, são as verdadeiras linhas do nosso certificado de estudos. De que adiantam os outros, os pedaços de papel, se, na realidade, quando a realidade vem ter connosco e somos chamados a agir, nos comportamos como um conjunto de ignorantes, pouco mais que animais selvagens que exigem a satisfação imediata das suas necessidades aos seus donos?

 

O nosso sistema de ensino devia estar de luto, envergonhado como um todo, porque tal como no célebre Sermão do Padre António Vieira, mais lhe valia que andasse a pregar aos peixes já que os jovens, homens e mulheres, cidadãos em potência, pouco lhe ligam, pouco ou nada se interessam, apenas se interessam por “sucessos” e notas e entradas em faculdades que, em boa verdade, não significam nada.

publicado às 11:02

Descargos de consciência

Há sempre um irritante que efervesce quando uma pessoa morre. Sabem? É aquele elogio de caráter obrigatório que brota das bocas com facilidade, porque a morte tem este peculiar condão: faz da pessoa mais vil a mais virtuosa num passo de magia, entre um estalar de dedos. Era o “amigo do seu amigo”, era o “grande homem” e outras generalidades que tais.

 

O caso de José Mário Branco não é exatamente este: pessoa generosa, altruísta e solidária, que dedicou a sua a vida à luta por esses valores e por uma sociedade bem diferente daquela onde nasceu e onde, infelizmente, não merecia ter morrido. Estes predicados foram essenciais para catapultar a sua arte na escrita e composição de canções para os sublimes patamares da eternidade.

 

Já o escrevi aqui, algures, que a diferença entre um artista comum e um grande artista é exatamente esta: a existência de um propósito maior que o egoísmo e que a ambição, a presença de valores que superem o próprio artista, que a obra produzida seja mais que um mero exercício de excreção do que vai na alma, masturbatório, egocêntrico. A grande obra é a que se inspira nas gentes e inspira as gentes. A grande obra é a que é a expressão da vida coletiva e não apenas da vida individual. E José Mário Branco tinha exatamente esse ingrediente. Muita gente desconhece, mas várias obras eternizadas na voz de Zeca Afonso e de outros grandes cantores eram da autoria de José Mário Branco. Esta, de Sérgio Godinho, também.

 

Por que comecei, então, do modo como comecei? Porque os elogios que se multiplicam a José Mário Branco são vazios. Porque as palavras não têm correspondência com a realidade. Porque não se pode elogiar a vida de um homem ao mesmo tempo que se vive a própria vida de um modo diametralmente oposto. Ou, se se pode, trata-se de uma autocrítica. Caso contrário, é hipocrisia pura. É oportunismo. É falso elogio. A sociedade que abundantemente elogia José Mário Branco é a antítese dos seus valores, é a razão de ser das suas angústias.

 

Querem elogiar José Mário Branco? Vivam a própria vida como ele viveu a dele. Tomem as opções que ele tomou em cada dia. E, no mais, deixem-se de palavras. As palavras são fáceis. São descargos de consciência.

 

José Mário Branco. Foto tirada de https://vilanovaonline.pt/wp-content/uploads/2019/11/jos%C3%A9-m%C3%A1rio-branco-fb-Webp.net-resizeimage-ec.jpg

 

publicado às 16:06

Que força é essa, amigo?

 

Vi-te a trabalhar o dia inteiro,

Construir as cidades p'ros outros,

Carregar pedras, desperdiçar

Muita força pra pouco dinheiro,

Vi-te a trabalhar o dia inteiro,

Muita força pra pouco dinheiro.

 

Que força é essa que força é essa que trazes nos braços?

Que só te serve para obedecer que só te manda obedecer?

Que força é essa, amigo?

Que força é essa, amigo,

Que te põe de bem com outros e de mal contigo?

Que força é essa, amigo?

Que força é essa, amigo?

Que força é essa, amigo?

 

Não me digas que não me compr'endes

Quando os dias se tornam azedos,

Não me digas que nunca sentiste,

Uma força a crescer-te nos dedos,

E uma raiva a nascer-te nos dentes,

Não me digas que não me compr'endes.

 

Que força é essa que força é essa que trazes nos braços?

Que só te serve para obedecer que só te manda obedecer?

Que força é essa, amigo?

Que força é essa, amigo,

Que te põe de bem com outros e de mal contigo?

Que força é essa, amigo?

Que força é essa, amigo?

Que força é essa, amigo?

publicado às 11:42

Ensaio sobre primeiras impressões

Esta semana que passou, a quarta de janeiro de 2019, ficará para sempre marcada na minha memória. Tomei verdadeiro conhecimento do génio, não de um, mas de dois excecionais compositores: Johannes Brahms e Sergei Rachmaninoff.

 

A verdade é que eu já tinha tido contacto com estes dois vultos gigantes da história da música no passado, porém, nunca lhes tinha dedicado especial atenção. Talvez pela menos avisada juventude desses meus anos, talvez pelas circunstâncias inerentes ao próprio contexto, eram compositores que tinha, de certo modo, rejeitado às primeiras audições. De Brahms havia permanecido, dentro de mim, a ideia de um compositor austero, rígido, revivalista, um pouco contra natura no seio do movimento romântico, de harmonias pesadas e esgotantes, ao passo que Rachmaninoff sempre me soou demasiado complexo, de harmonias e melodias difíceis de interiorizar, carregado e abafado em virtuosismos excessivos que me soavam a exibicionismo bacoco e, até mesmo, pouco musical, mas próprio em meados do século XX.

 

A meio da semana, todavia, dei por mim a enamorar-me por uma obra maravilhosa que ouvi na Antena 2, num programa chamado Véu Diáfano, de Pedro Amaral, uma obra de uma delicadeza melódica, de uma eloquência lírica, um tema inebriante e, no final, não pude crer nos meus sentidos quando ouvi o nome da mesma e do seu compositor: era a 3ª sinfonia de Brahms, aquele mesmo que eu considerava aborrecido e pesadão. A 3ª sinfonia é, com efeito, um exemplo perfeito para ilustrar a entrada enciclopédica obra-prima e o seu terceiro andamento é de uma beleza particularmente tocante.

 

No final da semana, apanhei a meio, na mesma rádio, um programa interessantíssimo chamado Ecos da Ribalta do melómano João Pereira Bastos. Neste último episódio, dedicado à lendária pianista grega Gina Bachauer e a um concerto que esta dera no Tivoli em 1969, enamorei-me de um concerto para piano e orquestra que me fazia lembrar as sonoridades da banda sonora de Lawrence da Arábia, mas, claro, mais requintado, com uma textura mais sólida e robusta, com mais sumo, com mais substância. O concerto era o nº 2 de Rachmaninoff, aqueloutro compositor que eu havia considerado complexo e demasiado virtuoso e, assim mesmo, havia arrumado numa gaveta da memória.

 

Quer num quer noutro caso, tivesse eu tido conhecimento do nome do compositor antes de ter sido exposto à beleza das obras e provavelmente teria desligado a rádio e, com isso, permanecido na minha ignorância. O destino quis que não fosse assim e que hoje eu pudesse ser um ser humano um pouco mais rico, tendo me dado, também, uma importante lição.

 

Isto é exatamente o problema das primeiras impressões e o meu é um bom exemplo para esta sociedade de primeiras impressões que nos envolve, de julgamentos a priori, de pouco juízo, de pouca reflexão e de muita e célere sentença. Chamemos-lhes primeiras impressões que é para não lhes chamar de preconceitos ou de coisa pior. Elas partem de cada um de nós, mas também retornam e atingem-nos de volta. É, assim, uma espécie de bullying psicológico coletivo para o qual todos contribuímos de algum modo. E não serve para nada, se não para nos amordaçar os pulsos e os tornozelos, no que ao conhecimento diz respeito, e para nos impedir de sermos verdadeiramente livres.

 

publicado às 10:53

O clã Bach e a perceção do sucesso

Pensem no universo de todos os melómanos deste mundo, daqueles com, pelo menos, médios conhecimentos ou razoáveis noções em música clássica. Imaginem que escolhem um elemento deste conjunto, ao acaso, e lhe pedem que enumere os três compositores que considera serem os mais marcantes na história da música, aqueles que, independentemente das suas preferências particulares, considera ser os mais revolucionários, os percursores da técnica, os definidores de um paradigma musical. Se tudo isto fizermos, é muito provável que, entre os três nomes da lista, conste o nome de Johann Sebastian Bach, o mestre dos mestres do Barroco.

 

É natural que assim aconteça. O contrário implicaria que o nosso melómano escolhido não entendesse muito do assunto ou estivesse investido de uma postura sobre o tema intelectualmente pouco séria. Com efeito, Johann é hoje em dia um dos compositores mais tocados, mais estudados e mais reconhecidos globalmente. Sobre a sua obra inúmeros outros grandes compositores nasceram e sobre o seu legado ergueram-se novas linguagens musicais. Não existe um aprendiz de música, seja qual for o seu instrumento de eleição, que não dedique uma considerável parte do seu tempo de estudo às obras originais de Bach ou a adaptações, nos casos em que Bach não tenha composto particularmente para esses instrumentos.

 

É curioso perceber que esta notoriedade contemporânea de Johann, que é extraordinária, não tem qualquer relação com a fama que o compositor (não) gozou em vida. Johann Sebastian Bach foi um dos compositores mais profícuos de toda a história da música. Do acervo da sua obra constam mais de mil composições conhecidas de índole sobretudo sacra, ele que foi mestre de capela das principais catedrais alemãs do seu tempo. Sublinho aqui a palavra 'conhecidas'. Efetivamente, o tempo de Johann era o tempo da improvisação por excelência e não o tempo da escrita e reprodução rigorosas das obras em papel de pauta. Esse tempo é posterior ao de Johann e, por isso, é natural que às tais mais de mil composições que se conhecem, possam ser adicionadas outras tantas, pelo menos, ao número de obras que o compositor terá, de facto, composto ao longo da sua carreira.

 

Como dizia, não perdendo o fio à meada, é curioso perceber que Johann foi, em vida, um compositor de popularidade residual. O povo, o mais ilustrado e o nem tanto, considerava-o um compositor austero, rígido, demasiado ortodoxo, agarrado a um contraponto antigo que já estava a sair de moda e que já ninguém estava interessado em ouvir. Johann, bem entendido, era um reputado professor da arte da improvisação e do contraponto e, enquanto compositor, era bastante considerado nas esferas religiosas onde essencialmente se movia. O que Johann não era, e nunca foi, era um compositor popular. Nenhum nobre encomendava as suas obras para seu entretenimento privado. Nenhum mecenas mostrou interesse na sua música. A isto Johann referia-se com desprezo, não se sabe se genuíno ou se por despeito, dizia qualquer coisa como que a sua música servia para agradar a Deus e a Deus apenas e se acontecesse ser apreciada pelo público, sendo absolutamente indiferente, seria tanto melhor.

 

Johann, fervoroso devoto como era, cumpriu a sua “obrigação” conjugal bíblica a preceito e produziu abundante prole. De entre os seus vinte filhos provindos dos seus dois casamentos, alguns seguiram as pisadas musicais do pai prolongando, aliás, uma tradição que já começara no trisavô de Johann, Veit Bach. Os dois que obtiveram maior sucesso foram Carl Philipp Emanuel Bach e Johann Christian Bach. Ao contrário do pai, Carl Philipp e Johann Christian abraçaram as novas tendências musicais e o novo estilo ao qual se chamaria de Classicismo e que viria a substituir de vez o velho Barroco que já se prolongava por quase dois séculos no panorama musical europeu. Os dois, mas sobretudo Carl Philipp, granjearam incomensurável fama, sendo constantemente solicitados e patrocinados para animar as festas dos nobres e dos abastados da sociedade alemã setecentista. Carl Philipp e Johann Christian eram, assim, as estrelas pop do seu tempo, contrariamente ao pai, Johann, que era, quanto muito, um artista menor conhecido apenas no austero contexto religioso luterano.

 

Passados mais de duzentos anos, falar em Bach é falar de Johann Sebastian Bach. A História dedicou a Carl Philipp e a Johann Christian honrosas notas de rodapé nas páginas que abordam a música na segunda metade do século XVIII. Dedicou-lhes isso e nada mais do que isso, ao passo que ao pai, Johann Sebastian, entregou a imortalidade dentro de uma taça dourada. Carl Philipp e Johann Christian também são estudados e tocados, é certo, mas apenas circunstancialmente e, sobretudo, em certos círculos pelos amantes exaustivos da época. Carl Philipp, inclusivamente, é hoje mais conhecido por um tratado que escreveu sobre como tocar instrumentos de tecla, cravo, clavicórdio e piano forte, leitura obrigatória para todos os pianistas ainda hoje, do que propriamente pelas suas composições musicais.

 

O exemplo do clã Bach não é original e, aliás, vai-se repetindo ao longo da história da música, da pintura, da literatura, da arte em geral, mas também em outros domínios muito diversos da atividade humana, como a ciência. Não raras vezes, o valor das coisas, isto é, a sua relevância, a sua influência na vida, nas sociedades, para as gerações vindouras, parece ser inversamente proporcional ao sucesso que têm e à notoriedade com que são recebidas. As massas parecem atribuir um maior valor àquilo que as entretém, àquilo que é novo, que soa a novo ou que, simplesmente, parece novo, talvez porque o que parece novo melhor entretém. O sucesso é medido na efémera escala do entretenimento. Cada vez mais, os artistas atingem níveis cada vez maiores de sucesso para serem completamente esquecidos no final de uma década.

 

A história do clã Bach faz-me refletir sobre o que me rodeia. Nesta sociedade cada vez mais dedicada ao entretenimento vazio, cada vez mais fugaz, sem memória e sem compromisso coletivo, sem solidariedade, enfim, se acaso nos fosse dado a escolher, creio que a maioria de nós escolheria ser Carl Philipp ou Johann Christian, em vez de Johann Sebastian Bach. O nosso propósito individual e de vida é mesmo esse. Nascemos e morremos para este sucesso sem significado e mais nada. Nascemos e morremos para ter sucesso e ter sucesso, para nós, é ser um contemporâneo bobo de corte, é entreter, é ser ator, cantor, modelo ou jogador da bola. É aparecer. Porquê? Não interessa. O que fazemos com esse sucesso? Não interessa. O sucesso parece ser coisa que é fim em si mesma. E nós sentimo-nos bem sucedidos, orgulhosos de nós próprios.

publicado às 20:48

Consciência de si

Desde muito cedo, quando este blog ainda mal tinha acabado de ser lançado, criei a tag “consciência de si” para classificar as temáticas de alguns dos primeiros posts que ia escrevendo. Volvidos mais de quatro anos sobre esses posts, a tag “consciência de si” é uma das mais usadas neste blog. Parece que quase tudo quanto escrevo acaba por levar esta etiqueta. Não se trata de uma questão estilística, no entanto.

 

Uma das coisas que mais me fascina na humanidade é a frequente falta evidente desta qualidade. Não temos consciência do que somos. Não conseguimos observar a nossa condição desde fora, desde longe. Fruto talvez da nossa ilimitada imaginação, somos capazes de criar qualquer mundo fantástico, qualquer história ficcional, de imaginarmos o que quer que queiramos ser, e, nesse processo, perdemos a noção do chão que pisamos, de onde estamos, do que somos e de para onde vamos.

 

Paralelamente, julgamo-nos sempre de outro modo diverso do que aos outros. Somos diferentes e especiais. O que se diz dos outros não se aplica à nossa pessoa. Porque a nossa pessoa é diferente. Porque a nossa pessoa é especial.

 

Escrevo estas palavras a propósito de umas declarações que li de Bolsonaro, o energúmeno que se prepara para ascender ao poder no Brasil. Disse ele, com todas as palavras, que “vamos fuzilar a pretalhada”, “acabar com os subsídios” [da pretalhada] e que vai imperar “a lei do lombo” [para a pretalhada].

 

Esqueçamos, por ora, para não arruinar a prosa, o caráter ofensivo e racista da palavra. O que mais me fascina no meio disto tudo é pensar que Bolsonaro vai ganhar as eleições num país onde a esmagadora maioria da população é mulata ou negra, o que me leva a admitir o óbvio: quando os negros ou mulatos ouvem a palavra “pretalhada”, devem pensar que é para os outros, para o amigo do lado. Deve haver sempre alguém com a tez mais escura, afinal. Os brasileiros acham que “pretalhada” é para os outros. Cada brasileiro deve considerar-se branco, caucasiano até. Os outros todos é que são negros!

 

Vem-me à memória aquela frase de John Steinbeck:

 

“O socialismo nunca formou raízes na América porque os pobres vêem-se a si próprios não como proletários explorados mas como milionários atravessando um período difícil.”

 

E vem-me também à memória aquele poema de Bertold Brecht:

 

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

 

O ser humano é assim mesmo. Nunca é connosco. É sempre com os outros. Quando reparamos que é connosco é sempre tarde demais. Não temos consciência do que somos.

publicado às 15:04

Regina, memórias de uma atriz

Uma das atrizes brasileiras pela qual desenvolvi um maior apreço ao longo dos anos foi, indubitavelmente, Regina Duarte. Na sua época dourada, Regina desempenhou múltiplos excecionais papéis em novelas como Rainha da Sucata ou Roque Santeiro. As suas novelas chegavam a Portugal em abundância, sobretudo nos anos oitenta e noventa, e, naturalmente, a atriz criou profundas raízes junto dos portugueses e eu não constituo aqui exceção.

 

De entre todos os papéis da atriz, guardo no coração um em particular: o papel de Chiquinha Gonzaga, personagem principal de uma minissérie homónima que contava a vida da compositora e maestrina Francisca Edwiges Neves Gonzaga. “Chiquinha”, como ficou conhecida, dedicou a sua vida à música brasileira, desenvolvendo e solidificando estilos musicais característicos do Brasil, como o samba ou o choro. Deste último estilo, Chiquinha Gonzaga pode ser considerada como criadora e pioneira, tendo sido a primeira pianista de choro de que há registo.

 

Simultaneamente, Chiquinha Gonzaga foi uma lutadora corajosa e obstinada contra o conservadorismo da sociedade em que vivia, tendo colocado a sua música ao serviço do ativismo pelo abolicionismo da escravatura, pelos direitos das mulheres, pela liberdade cultural.

 

Esta minissérie marcou-me tanto, tocou-me tão profundamente, que me levou a associar Regina, a atriz, pelo excelente papel que aqui desempenhou, às tendências políticas mais progressistas. Não poderia estar mais afastado da realidade.

 

Há uns anos, aquando de uma eleição, já não sei se de Lula ou se de Dilma, ouvi de Regina umas declarações sinistras, de conservadorismo provinciano e bafiento, que me deixaram entre a surpresa e a perplexidade. Dizia, então, Regina, que estava com muito medo da vitória do PT. Agora, Regina sai definitivamente do armário, assim como muitos outros seus conterrâneos, e apoia declaradamente, abertamente, essa figura grotesca que abana o mundo de cada vez que abre a boca e que chamam de Bolsonaro.

 

É preciso que se enfrente a realidade conforme ela se nos é apresentada: há uma grande parte da população brasileira que é a favor da pena de morte, da liberalização do porte de armas, da desigualdade de género, da homofobia, dos baixos salários, da precariedade ou terceirização como se diz no Brasil, da perseguição das pessoas pela sua opção sexual, política ou religiosa. Bolsonaro afirma cada uma destas coisas sem rodeios, sem metaforização. Trata-se de um indivíduo tão reacionário, tão abjeto, que é difícil encontrar justificações ou eufemismos para a coisa ou para quem o está a carregar em ombros até ao poder no Palácio do Planalto.

 

Descansem, todavia, irmãos brasileiros, pois não vos considero espécie única. Por todo o lado se vê uma admiração, mais ou menos disfarçada, pelo personagem. Os chamados media de referência, nomeadamente os portugueses, já têm dificuldade em disfarçar o fascínio que nutrem por Bolsonaro e dedicam-lhe uma redobrada atenção que não dedicam a mais nenhum político brasileiro.

 

Ainda tenho dentro de mim a imagem de Regina desempenhando o papel de Chiquinha Gonzaga e a forma heroica como, com a sua música, com os seus “chorinhos” ao piano, combatia o conservadorismo que impedia o divórcio, o aborto e legitimava a violência doméstica sobre as mulheres. Ainda tenho isso dentro de mim. Agora, volvidas décadas, Regina, a atriz, apoia um indivíduo que personifica o que de mais retrógrado existe na humanidade e no que, em particular, aos direitos das mulheres diz respeito.

 

Se Chiquinha Gonzaga fosse viva, tocaria contra Bolsonaro.

 

Lembro-me do verso de Pessoa: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.

 

Que tolo que sou. Julgava eu, na minha ignorância, que o verso servia apenas para poetas...

publicado às 19:00

O estado da arte em 2018

Hoje de manhã, ainda mal tinha acordado, dei por mim a percorrer a entrevista do Público ao novo diretor do Museu de Serralves, João Ribas. Foi curiosidade pura para colmatar a minha falta de conhecimento do personagem, mas também para desvendar um pouco, aspirava, do véu da direção artística do museu de arte contemporânea, o que, para a maioria de nós, é sempre de difícil acessibilidade.

 

Não cheguei ao fim da dita entrevista, confesso. Não tive estômago para continuar. Fiquei a saber que, para as entrevistadoras, Inês Nadais e Isabel Salema, as prementes questões sobre o museu, a sua oferta e a sua direção artística, são, por esta ordem, o facto do museu não ter na sua agenda a exibição de obras da Joana Vasconcelos; o facto de não existir paridade na promoção de artistas homens e artistas mulheres em Serralves; e o facto de haver pouca representatividade de corpos negros ou figuras negras.

 

Para mim, é cada vez mais difícil digerir esta realidade em que tudo é reduzido a números perfeitamente artificiais, em que tudo é avaliado por um sistema de quotas que pouca ou nenhuma relação com a realidade tem. Cada vez mais, ao que parece, perde-se o valor intrínseco das coisas. Na arte, em particular, que devia ser o espaço máximo de liberdade, as obras são sujeitas a um escrutínio a montante que nada tem a ver com o seu valor enquanto obra, enquanto objeto artístico.

 

Há tantas obras de mulheres quanto as de homens? As raças estão representadas equitativamente? A obra não é sexualmente ou religiosamente ofensiva, de algum modo? Já agora, o Cristiano Ronaldo está representado no museu? E a obra, é da Joana Vasconcelos?

 

Mas em que é que isto é relevante em termos artísticos? Em quê?!

 

Em nada.

 

Novamente, trata-se da manifestação de um politicamente correto mesquinho e profundamente ignorante que parece invadir todos os domínios da atividade humana. Mas não se enganem: este politicamente correto é parcial, é controlador dos conteúdos, inquina o pensamento e a reflexão das sociedades. É feroz opositor da liberdade. Este politicamente correto é detergente eficaz de lavagem cerebral.

 

É isto que temos. Quem diria que as sociedades ocidentais, apregoadas baluartes da democracia e da liberdade, se revelassem tão eficientemente castradoras da arte e das suas manifestações.

publicado às 12:54

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