Sociedade estranha de estranhos símbolos
Aos cento e seis anos de idade faleceu Manoel de Oliveira, um cineasta de invulgar longevidade e de reconhecimento mundial. Esse reconhecimento, aliás, foi transportado e multiplicado da sua vida para os dias imediatos à sua morte. O que me causa espanto, no que torneia a personalidade imortal de Oliveira, é a atitude da sociedade perante o homem, perante o cidadão: este unanimismo endeusado que, subitamente, se abateu sobre a pessoa e sobre a sua obra. Exige-se o Panteão! Não discuto este assunto, admitindo-o perfeitamente, contudo. Não é isso que me importa.
Não tenho cento e seis anos mas possuo uma vasta memória de várias décadas e lembro-me... Lembro-me de, durante toda a minha vida, ouvir aquelas piadolas injustas e abjetas sobre a obra de Manoel de Oliveira. Lembro-me do escárnio cruel. Não me lembro de ver um filme seu passar nos grandes cinemas. E espanta-me, por isso, este unanimismo súbito, estas frases feitas, este elogio fácil e bacoco produzido por pessoas de que me asseguro nunca terem visto um filme de Oliveira.
É estranho... Parece que é necessário ser-se suficientemente neutral, passar-se suficientemente ao lado da polémica, para se ter este tipo de unanimismo na hora da morte. É uma sociedade estranha, esta em que vivemos. Manoel de Oliveira nunca foi um ídolo, mas foi tratado como tal, por todos nós, à hora da sua morte. Qual será a sua função social no dia de amanhã, quando o luto estiver findado? Que simbolismo refletirá a carreira do cineasta no Portugal que se há de cumprir?