Se tudo é, então nada é
No início de uma madrugada igual a tantas outras, entretive o espírito com um poema que me chegou ao olhar. Era um conjunto de frases elegantes, construídas com belas palavras. Falava de amor — claro, o omnipresente amor! —, dois amores, em verdade, que se confundiam: um amor carnal e um amor mais abstrato do que o primeiro, incorpóreo, por ter como objeto de afeição, nada mais, nada menos, que uma cidade. Isso mesmo: dois amores que se misturavam num só numa efervescência de palavras belas.
A leitura deste poema produziu em mim aquele sentimento de satisfação incompleta, um certo contentamento imperfeito, tão familiar, tão banal nos dias de hoje. Deem-me um desconto: já sou suficientemente velho para habitar em mim uma permanente impressão de que nada é novo e que tudo são variações mais ou menos descaradas de temas já amplamente tratados no passado.
A minha curiosidade prendeu-se, pois, não no conteúdo mas na forma do poema, mais precisamente na ausência de forma ou estrutura, sem métrica ou qualquer tipo de regularidade silábica ou a nível da rima. Aquele poema seria, assim, uma espécie de construção em verso livre. Sim: desta maneira não nos comprometemos e estamos sempre certos.
O que é certo é que a coisa fez germinar em mim uma dúvida fundamental: deste modo, sem regularidade que me valesse, sem estrutura para me dar um chão, como poderia eu, um leigo, qualificar o que havia lido como poesia? É que hoje em dia já ninguém escreve sonetos ou odes, ninguém perde tempo a contar sílabas, a acomodar rimas interpoladas ou cruzadas, nem a submeter-se a qualquer tipo de estrutura ou forma. O verso livre é a expressão, na poesia, desta filosofia de liberdade que alcança todas os braços da arte e se liberta com violência das restrições da forma, num culminar de toda uma evolução iniciada desde o Renascimento. Expressões similares encontramos também na pintura, na escultura, no bailado ou na música.
Liberdade, liberdade, liberdade! Liberdade! Foi este o caminho.
Ou não?
O problema é este: se tudo é passível de ser considerado como poesia, se tudo é poesia, se tudo é poema, então… nada é. Pensem nisto.
Quase tudo é definido por negação. Sabemos o que as coisas são, não através de uma epifania qualquer que nos bate nos sentidos da alma mas através do que não é. O que não é define o que é. Se tudo é poesia, então nada é poesia, esvazia-se o conceito, deixa de ser relevante a qualificação. Se qualquer sarrabisco numa tela é pintura enquanto arte, então nada é pintura. Se qualquer conjunto aleatório de sons é qualificado como música contemporânea, então até o barulho produzido pelos automóveis na hora de ponta pode ser qualificado como música e, portanto, nada mais é música porque tudo o é. Se qualquer aglomerado de pedras é escultura, então nada mais é, nada mais é escultura. É tudo uma expressão subjetiva da atividade humana de valor relativo às impressões e não à técnica que, mais não é que o domínio da forma que perece, que deixa de existir.
A forma é, pois, importante. As regras são importantes. As restrições à liberdade, também na arte, são determinantes para dotar o ser humano de liberdade, precisamente, na criação. A arte mostra-nos como a liberdade sem limites é um método infalível para coartar a própria liberdade, por paradoxal que isto possa soar. Se quisermos matar a criação humana, basta dar-lhe toda a liberdade, destruir as estruturas, matar as formas. Veja-se como é infértil a arte contemporânea, sobrevivendo, envergonhada, sem o assumir, à custa das formas célebres do passado. O verso livre é infértil, assim como as expressões contemporâneas da música, da pintura ou da escultura, perfeitamente incompreendidas por um público sem norte. Porque sem forma, não há arte. Sem restrições à liberdade, não há liberdade. Porque se tudo é, então nada é.