Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Porto de Amato

Porto de abrigo, porto de inquietação, porto de resistência.

Ressuscitar Sócrates, o filósofo. Derrotar os sofistas.

A experiência da democracia ateniense, que se estendeu a toda a região da Ática, sensivelmente por volta do século V a.C., acarretou outras transformações políticas e filosóficas, que não as que dizem estritamente respeito ao sistema de governação. Com efeito, da democracia de Péricles e do grande Sólon de Atenas surgiram formas de pensamento concomitantes que vieram a exercer uma grande influência na região durante vários séculos. Refiro-me a uma em particular: a escola de pensamento sofista.

 

Ainda que limitada a uma parte da população, o sistema democrático veio estabelecer um novo paradigma no qual todos os cidadãos atenienses tinham igual possibilidade de aceder a cargos de governação na pólis. Como resultado, a questão da verdade deixou de ser matéria de facto, um conceito protegido pela perenidade de um poder monárquico ou aristocrático, para se tornar em matéria de opinião: todos passaram a ter uma e, mais importante, ela passou a ser relevante consoante a sua posição política.

 

É neste contexto, em que passa a existir uma pluralidade de opiniões em jogo e uma constante mudança de sensibilidades, de prioridades e de conceções políticas, que surgem os sofistas, pensadores que fazem do relativismo o seu valor central: nada é absoluto, nada é definido, tudo é discutível, todas as opiniões são igualmente válidas, todas as posições igualmente defensáveis, enfim, tudo é relativo.

 

Não se depreenda da descrição efetuada qualquer tipo de posicionamento negativo face à posição filosófica sofista. Do ponto de vista intelectual, o relativismo é tão admissível como qualquer outra conceção epistemológica. A questão não é filosófica, é de oportunidade e os sofistas multiplicaram-se na democracia ateniense ganhando a vida enquanto professores dos mais abastados, ensinando-lhes a arte da retórica, ou seja, da persuasão através da palavra, de modo que qualquer um, independentemente do seu conhecimento ou saber — algo que não existia na ótica do sofista —, pudesse conquistar o eleitorado e aceder a cargos públicos. O que era importante não era chegar à verdade. A verdade não existia. O que era importante era vencer o debate.

 

Foi precisamente contra este oportunismo, contra a desonestidade intelectual destes princípios, que emergiu a figura de Sócrates, considerado o pai da Filosofia. Sócrates rejeitava ser pago pelos seus alunos, rejeitava o relativismo sofista e dedicou a sua vida à maiêutica, a arte de propiciar o nascimento do conhecimento, da verdade — coisa real e que existia efetivamente — nos outros. Sócrates dizia que nem toda a gente estaria igualmente apta para governar: saber governar daria tanto, senão mais, trabalho como qualquer outra arte e não se podia entregar essa responsabilidade a qualquer um incompetente para o cargo, por muito eloquente que fosse.

 

Há muito mais a dizer sobre a escola sofista — e dos seus méritos que também teve — e da figura misteriosa e ambivalente de Sócrates — e dos seus defeitos que também teve — mas há uma coisa que me parece fundamental nestas primeiras décadas do século XXI: ressuscitar o pensamento de Sócrates, o filósofo, e derrotar os sofistas que aí estão, proliferando por toda a parte, nos jornais, nas televisões e na internet, a passar a ideia de que tudo é igualmente válido, de que qualquer um, por ter um palco ou uns milhares de seguidores, likes ou partilhas, tem uma opinião que deve ser igualmente respeitada. Não, não tem. Que vá estudar, primeiro. Que vá trabalhar, depois, e que assuma uma vida feita de responsabilidades. Então, sim, que seja ouvido e feito influencer e outros nomes que tais.

 

É que o relativismo enquanto conceção filosófica é muito estimável. Já quando é aplicado na prática, reduz-se, tal como há dois mil e quinhentos anos, a uma ferramenta para os poderosos poderem reinar sob a capa de democratas, numa democracia de néscios que se julgam sábios. Esses, são os piores.

publicado às 22:01

Mais sobre mim

imagem de perfil

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub