Quadra de moralidade
Quando era mais novo, muito novo, quando não fazia ideia sequer das consequências dos atos, nem ponderava sobre as causas dos mesmos, quando pensava que todo o universo se movia em torno do meu ego, houve uma lista de valores, de princípios, que me foram impingidos, sem uma qualquer ordem natural. Eram valores que se considerava importantes e estruturantes daquilo que eu poderia ser e que, sob uma certa perspetiva de desenvolvimento, germinaram naquilo que hoje constitui o meu quadro moral.
Detesto a palavra moralidade. Detesto-a por estar tão umbilicalmente relacionada com as forças mais retrógradas das sociedades humanas e porque, ultimamente, serve sempre de pretexto para os poderosos enraizarem e perpetuarem o seu jugo sobre os mais fracos.
Por isso, esta moralidade de que falo nada tem que ver com aquela que se aprende nas catequeses. São os valores dos homens que existiam muito antes das religiões e dos deuses nascerem. São os princípios dos homens que trabalham e que juntos sobrevivem o dia-a-dia e que amam e se respeitam como irmãos e não como concorrentes. Em última análise, foi essa particularidade das sociedades primitivas humanas que permitiu ao Homem deixar os demais animais para trás na escada evolutiva.
Neste contexto e no contexto da presente quadra natalícia, independentemente do seu significado religioso, queria apontar o seguinte. Um dos valores que me foi transmitido foi que aquele que ajuda não se deve regozijar por isso. Ninguém deve saber. Não deve tomar crédito da ajuda que deu, nem tão pouco adquirir qualquer tipo de vantagem pelo que fez, pois não é por isso que o deve fazer. E contudo...
Hoje não há uma grande superfície, não há um tentáculo capitalista, que não tenha a sua pequena ação caridosa ou campanha solidária, às vezes até mais do que uma, ao sabor do bom espírito natalício. Não existe um que seja. Nunca vi tal igual. E anunciam-no aos sete ventos! Anunciam-no para que acorramos a comprar nos seus estabelecimentos transbordando de piedade ou do que quer que seja.
Ninguém impede que essas lojas e lojinhas façam os seus donativos que, aliás, devem fazer, mas usar a solidariedade como slogan publicitário é demasiado baixo. Tão baixo que me surpreende que aceitemos isto como natural. Surpreende-me que se permita isto. Estará o Homem do século XXI tão afastado assim do seu antepassado ancestral? Por ventura, tratar-se-á de um tipo contemporâneo de moralidade oportunamente disseminado nesta quadra.