Petrogal: um quase conto de Natal
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No início desta semana concretizou-se uma tragédia que pairava no ar, já há muitos anos, como um fumo cinzento de ameaça sobre as cabeças de muitas famílias de trabalhadores na região norte do país. A notícia viria a surpreender a todos precisamente no início da semana do Natal: a refinaria de Matosinhos da Petrogal iria encerrar permanentemente a sua laboração deixando numa situação de incerteza, de desemprego imediato ou a prazo milhares de trabalhadores.
Mesmo sobre a faixa costeira de Leça da Palmeira, a refinaria havia sido construída como um grande projeto de autonomia energética e de desenvolvimento do país e, durante muitos anos, assumiu-se como uma unidade de refinação ímpar na península ibérica, laborando com uma eficácia que outras unidades espanholas não conseguiam acompanhar. Quando a indústria do concelho de Matosinhos foi sendo, paulatinamente, destruída, quando o setor da pesca foi sendo dizimado entre o final da década de oitenta e o início da década de noventa, a troco de uns sacos de dinheiro fácil da União Europeia, a refinaria de Leça da Palmeira resistiu como um pilar sólido, não apenas do concelho de Matosinhos, mas de toda a região norte, um pilar de emprego com perspetivas e direitos, um pilar de desenvolvimento económico, de produção e de retribuição efetiva em impostos para a nação fruto de uma atividade abundante e permanentemente lucrativa.
Por ventura, o problema da empresa seria esse mesmo: empregar muitos trabalhadores com direitos que já nem se equacionam no panorama do trabalho em Portugal, dar lucros e pagar impostos. O que está na moda é empresas muito tecnológicas que empregam meia dúzia de estagiários e pagam os impostos noutro país. Se calhar, o problema era este.
Do mesmo modo, estas memórias que tenho da refinaria encontram apenas paralelo com o apetite voraz das várias administrações camarárias PS em explorar aquela zona de implementação da Petrogal para imobiliário apetecível à beira mar. Desde sempre, praticamente, desenvolveu-se uma vontade permanente em fechar a refinaria, erguendo-se as bandeiras ambientais de conveniência e questões de segurança para as populações que a própria autarquia autorizou que se implantassem em redor da fábrica. Por mais do que uma vez, foi a união e a resistência dos trabalhadores da fábrica, dos operários que lhe davam vida, que impediu que a refinaria fosse encerrada e, desse modo, obrigaram o país a continuar a retirar fartos dividendos da sua atividade, ainda mais nas fases não muito longínquas em que o preço dos derivados do petróleo estiveram em alta.
O capital, todavia, dispõe de recursos ilimitados para levar o seu barco a bom porto. Os sucessivos governos, sempre ao serviço do poder burguês, foram privatizando a empresa, alienando capital e participações, contribuindo e patrocinando gestões cada vez mais ruinosas, que fizeram com que a empresa fosse perdendo mercado e que foram justificando que a mesma fosse reduzindo gradualmente a sua produção. Agora, com uma pandemia caída do céu e as pressões europeias a propósito da descarbonização, a tanga do momento, que mais não são do que uma descarada reorganização do poder económico e do controlo das fontes energéticas no seio da união em favor, como sempre, da Alemanha, decidiu-se encerrar a refinaria de Matosinhos e concentrar a pouca produção restante na refinaria de Sines em vésperas do Natal. A União Europeia, sempre generosa, avança, tal como outrora, com maços de notas para indemnizar trabalhadores e calar qualquer fogacho de protesto.
Há aqui algumas questões que gostava de sublinhar.
Primeiro, gostava de sublinhar que Portugal é o único país pertencente à União Europeia que encerra uma refinaria de petróleo. Em Espanha e na Alemanha, particularmente, nenhuma refinaria será encerrada. O nosso futuro estará, pois, entre o idealismo impossível de uma sociedade movida a eletricidade e o pragmatismo de uma situação de maior (total) dependência energética relativamente ao exterior. Estaremos aqui, se estivermos de boa saúde, para observar as consequências desta decisão.
Segundo, que novamente vamos alegremente enganados no canto da sereia da União Europeia. Depois de terem votado os nossos campos ao abandono, para sermos obrigados a importar tudo o que comemos, depois de nos obrigarem a abater a nossa frota pesqueira e nos porem a comer peixe espanhol, depois de nos forçar a desindustrialização do país e de nos condenarem a sermos um país de serviços e sem autonomia e soberania económica, tudo a troco de grandes sacos de dinheiro, novamente achamos todos muitíssimo bem que, a troco de uns fundos para a ecologia e descarbonização, que acabemos com um dos últimos exemplares de indústria que ainda detínhamos. Os jornais praticamente não deram importância ao assunto que passou praticamente despercebido para a maioria dos portugueses.
Terceiro, que o povo, claro está, vai sofrer amargamente com esta decisão, mesmo que hoje ache muito bem, mesmo que não tenha a mínima noção do que se está a passar e que ache que a política não tem interesse nenhum. A refinaria de Matosinhos da Petrogal implicava quase dois mil empregos diretos, mas implicava muitos mais indiretos, todos eles que se desmultiplicavam em consumo que sustentava muito comércio e restauração na zona norte do país. A este propósito as declarações do ministro Matos Fernandes foram de uma leviandade arrepiante e, mais geralmente, a forma como patrocinou a resolução desta situação ficará marcada na história deste governo e da economia do país como um exemplo de má gestão, não tenho a mais pequena dúvida sobre o assunto.
Quarto, que esta tragédia tenha acontecido com um governo PS ao leme, não me causa nenhum espanto. Como tenho aqui referido e como os meus leitores não podem ignorar, a minha opinião sobre os governos PS é tão negativa como a que tenho dos governos mais à direita, completamente serventuários do capital, contribuindo ativamente e continuamente para o desequilibrar da balança económica contra o povo proletário. O que nunca poderia imaginar é que o fim da Petrogal de Matosinhos viesse a ser ditado por um governo apoiado pelo Partido Comunista Português e pelo Bloco de Esquerda. Isto nunca poderia imaginar e deixa-me absolutamente desolado. Mesmo depois de todas as diferenças que mantenho com a direção que a esquerda, em geral, tem tomado nos últimos anos, mesmo depois de todas as incongruências, de todas as traições ao ideário revolucionário, nunca poderia imaginar que a Petrogal de Matosinhos, símbolo derradeiro de uma região e de um país, pudesse ver o seu fim decretado por um governo suportado parlamentarmente pelo PCP e pelo BE. Morrerei com esta espinha atravessada na garganta.
Este Natal será mais triste para alguns. Será vivido sob o signo da incerteza e da insegurança e não sobejará grande ânimo para antecipar o ano novo que há de chegar. Os próximos Natais, todavia, serão muito tristes para muitos, mesmo que, passados um, dois, dez anos, eles já não saibam ou já não se lembrem porquê.