O que os fogos nos mostram (mas que ninguém vê)
Consumada a tragédia, concluído o combate que se impunha às chamas que engoliam uma parte do nosso abandonado país, entrámos naquela fase em que se exigem as explicações e os apuramentos de responsabilidades. É aqui que os dantescos fogos permitem iluminar uma faceta que já não é nova mas que é transversal a todos os segmentos da nossa sociedade, uma faceta do nosso caráter, da massa com que somos feitos e com que nos propomos edificar esta sociedade e que complacentemente admitimos que faça parte dos seus procedimentos diários.
Quando se exige ao governo que responda pelo que aconteceu, porque simplesmente não sobeja outrem a quem exigir explicações, o governo encolhe os ombros e aponta para outras entidades — entidades tuteladas pelo próprio governo —, diz que lhes endereçou muitas perguntas e que espera respostas. A ministra da Administração Interna emociona-se, chora junto das vítimas e dos deputados, diz que foi o momento mais difícil da sua vida e espera que dela tenhamos pena. Que estado de coisas é este a que chegámos? Será que perdemos por completo a noção do ridículo?
Pedir a demissão da ministra não é o suficiente, lamento. Quando em março de 2001 caiu a ponte de Entre-os-Rios, o então ministro Jorge Coelho demitiu-se e isso não adiantou de nada. Hoje, julho de 2017, mantem-se a generalidade das pontes sobre o rio Douro em risco de derrocada devido à extração de areias. E Jorge Coelho, nos entretantos, tornou-se alto quadro da construtora Mota Engil, principescamente retribuído pela sua ímpar competência. Falta responsabilização neste país, mas falta responsabilização a sério. O que não faltam são lavagens de mãos à Pilatos. Disso estamos bem servidos e é exatamente disso mesmo que uma simples demissão de ministro se trata.
Agora mesmo, o estado, que é o principal e último responsável pela tragédia de Pedrógão Grande sob todos os pontos de vista, aponta o dedo a entidades que ele próprio criou e tutela. Endereça-lhes perguntas e a comunicação social faz eco desta novela. Mas o que nos interessa a nós, cidadãos, que o estado tenha milhares de entidades, de institutos, de organizações, de observatórios e de comités?! Deixa, por isso, de ter que ser responsabilizado? Deixa, por isso, de não ser o responsável pelo que acontece?
Mas serve o presente texto para dizer claramente que este modus operandi não é exclusivo do estado, está em todo o lado, em todas as empresas e organizações. As mais relevantes empresas do país subcontratam a terceiros boa parte das suas responsabilidades deixando em mãos alheias o controlo e supervisão das competências dos funcionários que nelas operam. Qualquer responsabilidade num qualquer acidente mais ou menos grave que ocorra durante as atividades da empresa principal é imediatamente sacudida para essas empresas secundárias de colocação de mão de obra que, no limite, abrem falência e reabrem com outro nome deixando a culpa morrer solteira.
Tudo isto é muito claro e todos nós, mesmo os mais desatentos, conhecemos bem esta realidade que começa logo no pessoal que vai fazer a limpeza diária às instalações do sítio onde trabalhamos. Para além de baixar os custos com pessoal diminuindo os vencimentos reais, o processo de subcontratação tem esta consequência absolutamente vil: a desresponsabilização. A única novidade, ao que parece, é termos uma ministra que chora para não ser responsabilizada.