O que não passa na televisão não acontece
Em meados do século XVIII o filósofo George Berkeley colocou a seguinte questão: “Se uma árvore cair no meio de uma floresta e não houver ninguém por perto para ouvir, ela fará barulho?”. Filosoficamente, a questão é interessantíssima. Porém, passo por cima da mesma e, em face do que ocorreu no último fim-de-semana, proponho a seguinte reformulação:
Se uma árvore cair no meio de uma floresta e o evento não passar na televisão, será que realmente aconteceu?
— Amato, séc. XXI
Reparem que agora a questão já não se coloca no indivíduo cuja presença se pressupõe como fundamental para se poder ouvir o som, para se poder provar que o som foi efetivamente produzido. Por outras palavras, se não existir um indivíduo para experienciar o evento, este não ocorre.
Com efeito, agora a questão está num exercitar de maiorias. Se a maioria não observar o evento, este não ocorre. Não interessa se cem mil pessoas foram a uma manifestação: se esta não passar na televisão e, desse modo, não chegar à maioria da população, é como se não tivesse acontecido.
No último sábado ocorreu uma manifestação gigantesca que mobilizou mais de uma centena de milhar de pessoas de todo o país. Praticamente não passou na televisão, tendo sido completamente abafada por comentários sobre futebol e sobre o jogo de mais logo da seleção portuguesa. Certos jornais começaram por falar em duas mil pessoas e depois “emendaram” para “alguns milhares”. No domingo ocorreu uma aglomeração de algumas centenas de pessoas — estarei a ser generoso — que foi amplamente difundida pelos media e teve direito a diretos vários. O resultado deste exercício nojento a que se convencionou chamar de “jornalismo” foi que os velhotes da minha rua só notaram e só falaram da segunda manifestação, tendo ignorado a primeira. Ah: resta dizer que a primeira manifestação era de apoio à escola pública e a segunda de apoio aos contratos de associação dos colégios privados.
“Se uma árvore cair no meio de uma floresta e o evento não passar na televisão, será que realmente aconteceu?”
As experiências sociais do último fim-de-semana sugerem que não, ou que, pelo menos, a árvore que caiu não era árvore, era assim uma espécie de erva aromática.