O Natal de Hipácia de Alexandria
Há um filme que eu acho que todos os cristãos deviam ver e não consigo imaginar uma melhor ocasião para o fazer do que o Natal. Chama-se Ágora e tem a soberba Rachel Weisz como atriz principal.
Ágora traça um retrato aproximado do advento do cristianismo no império romano e do que se terá passado na cidade de Alexandria, a cidade farol do conhecimento na era pré-cristã. Alexandria foi fundada de raiz, no norte do Egito, por Alexandre, o Grande, muito antes dos romanos. Alexandre quis edificar uma cidade nova que contivesse todo o conhecimento do mundo, onde todos os sábios pudessem estudar e formar novos sábios, criando novo conhecimento. Assim, a cidade de Alexandria foi construída em torno de dois monumentos essenciais e indissociáveis: a grande biblioteca, que ambicionava conter nos seus escritos toda ciência humana, sede dos grandes sábios que lá acorriam para beber do seu conhecimento, e o alto farol, cujo objetivo era iluminar as mentes dos homens e o seu caminho e não as suas embarcações.
Rachel Weisz oferece uma superior interpretação da personagem Hipácia de Alexandria, presumivelmente a primeira mulher cientista de que há registo no mundo ocidental.
A ascensão do Cristianismo ao poder no império romano fez-se como em tantos outros casos semelhantes, antes e depois: através da ignorância. Os cristãos aproveitaram-se de um ponto fraco de quase todas as sociedades e, em particular, das sociedades clássicas, que era a sua iniquidade muito acentuada. Essa iniquidade, essa diferença tão abismal entre os cidadãos e os escravos, entre os ricos e os pobres, serviu de alavanca à mobilização das massas incultas contra o sistema "pagão" vigente. Os resultados foram catastróficos, como não poderia deixar de ser. A biblioteca foi destruída, os pergaminhos queimados, os cientistas perseguidos e mortos, milénios de conhecimento destruídos de um dia para o outro. A própria Hipácia conheceria um fim horrível, torturada e mutilada, cortada aos pedaços, até à morte por apedrejamento. Os seus restos mortais haviam de ser, então, queimados numa fogueira. Morreu assim a primeira cientista mulher de que há registo, uma mulher brilhante e corajosa cujo pecado terá sido erguer a sua voz contra a ignorância que invadia as esferas da sociedade.
Muitos historiadores consideram a morte de Hipácia como o símbolo do fim da Era Clássica que terá lançado as bases para o início de uma idade de trevas e de insciência que se prolongaria por quase dois mil anos. Resta-nos apenas imaginar o que se terá perdido em termos de conhecimento com a destruição de bibliotecas, as queimadas de livros e a perseguição de sábios do período clássico. Apenas podemos imaginar. Mas quando não sabemos explicar coisas tais como, por exemplo, como é que os egípcios conseguiram erguer as pirâmides ou como os sumérios puderam administrar tão vasto território, estaremos seguramente na pista de conhecimento irremediavelmente perdido.
Nenhuma religião na história dos homens que conhecemos consegue chegar aos calcanhares do cristianismo no que diz respeito ao atraso intelectual a que votou a humanidade no seu conjunto. Este é um feito assinalável e que deve ser conhecido para que, nos dias de hoje, não nos deixemos enganar, uma vez mais, por falsos profetas guardiões da moralidade. É que a história teima em repetir-se e nós não podemos ser melhores se não conhecermos o nosso passado.
Nós, que nos sentimos tão poderosos com a arrogância dos nossos smartphones e tablets, corremos um risco muito maior do que o que julgamos de mergulhar no mais profundo obscurantismo de um dia para o outro. O que sabemos nós, afinal? Em que bases é que assenta esta sociedade em que vivemos? Somos muito facilmente manietados pelo que nos rodeia e agimos como meras cobaias de laboratório. Estamos nas mãos de quem nos governa.
É isto que retiro do filme Ágora: a possibilidade assustadora da história se repetir. Vejo claramente fragmentos dessa repetição todos os dias. Como terá sido possível que grandes civilizações tenham desaparecido sem deixar o mais pequeno rasto? Como ainda hoje não conseguimos explicar tantas evidências do passado? A resposta está algures aqui, na ignorância absurda e inimaginável a que pequenas minorias conseguem votar as grandes massas de população, uma e outra vez, ao longo da história da humanidade.
Lembremo-nos de Alexandria. Lembremo-nos de Hipácia.
Sempre.