O escape de que precisamos para continuarmos a viver como vivemos
Guardarei para sempre as palavras de Greta Thunberg à chegada a Lisboa, vinda das Américas, depois de atravessar o Atlântico de barco:
Queremos que as pessoas no poder façam o que tem que ser feito.
Foi qualquer coisa assim, perdoem qualquer coisa na minha tosca tradução. A sua natureza rudimentar não impede, todavia, a compreensão do seu conteúdo: queremos que as pessoas no poder (the people in power) façam o que tem que ser feito (do what has to be done).
São palavras que compõem e se destacam num discurso redondo, que se justifica a si próprio e que não contém rigorosamente nada. Exige-se às “pessoas no poder” que “façam o que tem que ser feito”, seja lá o que isso for, porque alguma coisa tem que ser feita e porque as “pessoas no poder” podem fazê-lo, porque estão no poder, provavelmente. “O que tem que ser feito” não é dito. “As pessoas no poder” são tantas e tantas que confere à afirmação uma generalidade ainda maior. Muitas — das “pessoas no poder” — abraçam Greta e discursam com ela nas muitas ocasiões em que Greta fala. Também vimos isso em Lisboa.
Por não dizer nada, este discurso é extremamente poderoso. São palavras que representam milhões e milhões, uma sociedade de inconsequentes, de ignorantes, de gente que fala simplesmente porque pode mas que não acompanha o discurso com qualquer vestígio de conhecimento, de inspeção ou raciocínio lógico. Se o fizessem, havia muita coisa para pôr em causa, muitos inimigos reais ganhariam forma e deixar-se-ia de falar nas “pessoas no poder”. Falar-se-ia deste modo de vida, do consumismo, na sobre produção e sobre exploração dos recursos do planeta, nesta economia de acumulação de lucros e onde as pessoas são apenas ferramentas descartáveis e, enfim, de um momento para o outro, houvesse, repito, um mínimo de células cinzentas a trabalhar em conjunto, e todo o sistema capitalista mundial que governa as sociedades seria posto em causa.
Infelizmente, pedir às massas populares que façam um melhor uso do seu intelecto do que o que é exigido para jogar joguinhos repetitivos no smartphone ou no tablet é pedir demais, é almejar a utopia. E, deste modo, Greta Thunberg, em vez de ser o símbolo de uma juventude mais interveniente e que exige fazer parte do pulsar das sociedades, reduz-se simplesmente a uma advertiser, a uma vendedora — uma excelente vendedora — de carros elétricos, ao serviço dos interesses momentâneos do capitalismo, esse mesmo que destrói diariamente os nossos recursos e o nosso planeta.
Não tenho nada contra Greta Thunberg. Absolutamente nada. Aliás, ao contrário de alguns que começam agora a desiludir-se com o percurso da jovem, eu nunca esperei nada de uma rapariga de 16 anos que já não frequenta uma escola há sabe-se lá quanto tempo. Eu não espero que uma rapariga de 16 anos, que tem absolutamente tudo a aprender, me ensine a viver a vida, me dê princípios e me diga o que fazer ou o que é certo ou errado. Não. Desculpem lá. Bem sei que isto de pôr a juventude a mandar nos adultos, os filhos a dizer aos pais o que fazer está muito na moda, mas não, não compro. Isto está tudo ao contrário.
Mas a aclamação da Greta não se explicará com apenas um argumento, será, antes, uma mistura de duas ou mais coisas. Porque se a Greta gritasse algo muito mais consequente como «Abaixo o capitalismo», a sua epopeia terminaria ainda antes de começar, porque ninguém quer esse tipo de conversa, porque todos gostamos muito do capitalismo, de um telemóvel novo por ano e de todas as outras gadgets e das Black Fridays, das febres de comprar necessidades que não tínhamos ontem. A Greta, no fundo, é aquele escape de que precisamos para nos sentirmos melhor. É completamente segura, não ofende, nada de mal acontecerá, nenhuma revolução a sério surgirá dali, mas faz-nos sentir bem, limpa-nos a consciência, dormimos melhor à noite. Afinal, é uma menina que está a tentar salvar o mundo, não é?