O clamor
Existe um clamor nas sociedades, um clamor que fermenta e cresce a cada dia, em cada comentário, a cada ideia partilhada, em cada dedo de conversa trocada. Existe um clamor por menos estado, por menos impostos e por uma sociedade mais liberal do ponto de vista económico. É um clamor que se percebe em parte, mas apenas em parte.
É um clamor que se desmonta a muito custo pois, por mais argumentos inteligentes que possamos jogar no debate, é algo que nasce de dentro, de um certo instinto primário e não necessariamente de uma qualquer articulação intelectual. Mas é um clamor que se extingue no momento preciso, a que todos aliás chegamos eventualmente, em que se nos deparamos numa situação de necessidade: um desemprego duradouro, uma catástrofe natural destruidora de bens ou até mesmo uma doença justificativa de tratamentos médicos dispendiosos e/ou continuados.
Nesse momento preciso, perdemos a noção do alimento que nutria esse clamor que nos consumia. Nesse preciso momento entendemos até outras coisas menos triviais que, até aí, não conseguíamos perceber. Entendemos, por exemplo, como é que um homem com um euro de salário pode ser mais rico do que um com mil. Percebemos bem. Só que aí já é tarde demais. Olhamo-nos ao espelho e não reconhecemos a face. Apenas vemos um mendigo.