Nas sombras da pandemia
Deixem-me dizer-vos o que aí vem, o que já vai em preparação adiantada nas sombras da pandemia. Deixem que deixe isto aqui escrito, registado para memória futura e correndo o risco de se revelar, mais tarde, depois do desfecho da coisa, estar completamente a leste do paraíso.
O que é interessante no capitalismo, esta organização da vida que escolhemos, é precisamente esta sua natureza cíclica mas, simultaneamente, impossível de prever exatamente, impossível de responder ao quando? e ao como? E, em verdade, sabíamos perfeitamente que à crise ou às crises — talvez assim sejamos mais precisos — de 2011 seguir-se-iam outra ou outras. Disso não sobrava qualquer dúvida. Todavia, dando de barato a nossa impotência preditiva para responder à primeira questão, relativamente à segunda era mais expectável que as crises surgissem do rebentar da bolha imobiliária, que vinha enchendo assustadoramente transversalmente no mundo ocidental, associada, no nosso país, à outra bolha que, por aqui, persistia num crescimento que parecia não ter sustentabilidade: o turismo. Pois o que pouca gente esperava era que a próxima crise tivesse origem num mero vírus da gripe.
E aí está, os estados, em geral, vão replicando no momento atual as respostas dadas por eles próprios em 2011. Claro que há diferenças, há um estilo, uma linguagem, idiossincrasias e um contexto próprios, mas a substância das medidas é inegavelmente a mesma: injeções de capital nas empresas quer através de linhas de crédito, quer através da torneira da segurança social, sempre abundante para acudir a burguesia. Esqueçam os juros: isto é dinheiro do qual o estado não voltará a ver a cor.
A isto acresce a situação de estado de emergência, a verdadeira novidade na atuação do governo, que é como que uma carta branca para o despedimento, para o abuso, para a falcatrua laboral, para a ausência de responsabilidade social no que concerne o trabalho, um verdadeiro regime de exceção à lei e à democracia.
Em simultâneo, à promoção de um clima de consumo exacerbado, de histeria mediática impulsionadora desse mesmo consumo, juntou-se uma permissividade grosseira na agiotagem, no inflacionamento dos preços da generalidade dos bens. Todos os institutos, agências e organismos de supervisão criados para o efeito revelam descaradamente o seu papel decorativo no contexto do sistema.
Não tenham, todavia, pena do estado. Quando isto começar a dar para o torto, que é como quem diz quando se começar a fazer o rescaldo da pandemia, quando tudo voltar a uma certa normalidade no que ao funcionamento da sociedade diz respeito, então aí o plano será outro. Aí, os holofotes mediáticos concentrar-se-ão nas imparidades, nos buracos orçamentais, nos desequilíbrios das contas públicas e das balanças comerciais e, então, bem convencidos da necessidade dos nossos sacrifícios para a salvação do país, assistiremos a uma nova versão do brutal aumento de impostos de Gaspar, Passos e Portas, a uma sempre renovada necessidade de flexibilizar a economia e o trabalho para gerar mais competitividade e emprego e o resto. Todos nós conhecemos esta ladainha do costume de princípio a fim.
Quando erguermos novamente a cabeça veremos um país destroçado em emprego, em custo de vida, em poder de compra; veremos um povo com as suas poupanças delapidadas, com os seus direitos novamente reduzidos, com as suas reformas de novo adiadas e minguadas, com as suas perspetivas novamente revistas. Vamos ver os serviços públicos, em particular a saúde, ainda mais mirrados e isto passar-se-á mesmo após a pandemia nos ter mostrado o quão determinantes e importantes estes são. O povo assistirá a tudo isto, só não sentirá o cheiro daqueles milhões de euros de superavit anunciados no último orçamento de estado. Esse refinado odor terá sido já, por essa altura, exclusivamente aspirado pelas ávidas narinas da burguesia do país.